Liz & Dick: a fúria deste amor
texto integralmente escrito por Vasco Câmara
nas páginas do Jornal Público, suplemento Pública, no dia 19 de Setembro de 2010
(com o meu devido agradecimento e humilde vénia)
A paixão deles foi adúltera, escandalosa, atormentada, eterna. As suas vidas inauguraram a celebrity culture dos reality shows. Mas só agora Elizabeth Taylor revela as cartas que Richard Burton lhe escreveu: My blind eyes are desperately waiting for the sight of you.
Já tinha havido a sequência do banho de Cleópatra, que Richard Burton espreitara (a sua personagem, Marco António, não fazia parte da cena), mas Dick estava decidido a não se envolver com Miss Tits. Casado com Sybil, impressionava-o os milhões de Elizabeth Taylor, a comida que vinha directamente de Los Angeles para a Cineccità em Roma nesse ano de 1962 (chili do Chasen's, de que ela gostava), as tits - que traziam de volta ao filho do mineiro as fantasias de adolescência com as "galdérias" no seu País de Gales -, e por isso um affair, ele que era especialista em flirts sem consequências, até nem faria mal à sua carreira. Mas, galês que se prezava, não abandonaria a família.
Depois houve a cena do beijo, quando Marco António com a sua mini-túnica entrou nos aposentos da rainha do Egipto. Vários takes, e os beijos cada vez maiores na Cineccità...
Joseph L. Mankiewicz, realizador - Imprimam a cena (mas a cena continuou).
Joseph L. Mankiewicz - Vocês importam-se que eu diga "corte"?... (e a cena continuou).
Joseph L. Mankiewicz - Interessa-vos que já seja hora de almoço? E a cena acabou. Richard Burton pediu uma cerveja, Liz tirou a peruca. Mas tinha começado le scandale, e eles não saíam dos jornais e revistas - em Hollywood, na mesma altura, Marilyn Monroe mergulhava nua para dentro de uma piscina, na rodagem daquele que seria o seu filme incompleto, Something's got to Give, mas Marilyn não teve muito tempo de vida para tirar Liz Taylor das capas das revistas.
I list after your smell and your paps and your divine little money-box and your round belly and the exquisite softness of the inside of your tights and your baby-bottom and your giving lips & half hostile look in your eyes when you're deep in rut with your little Welsh stallion.
Burton, um furioso de Shakespeare e da língua inglesa (era o mínimo que nos devia, com a voz que tinha...), foi escrevendo com esta fogosidade à amante e depois mulher, a quem passou a chamar Ocean, My little Jewish tart (porque Liz se tinha convertido ao judaísmo no casamento com Eddie Fisher, que na altura de Cleópatra ainda era o marido) ou Dearest Scrupelshrumpilstilskin.
Foram estas cartas que tornaram possível Furious Love, depois de Liz Taylor as ter mostrado a um editor da “Vanity Fair”, Sam Kashner, e à biógrafa Nancy Schoenberger.
O resultado, publicado em Julho nos Estados Unidos, é algo que está entre a biografia de um romance concretizado em dois casamentos (um de uma década, outro de menos de um ano) e dois divórcios; pinta o retrato de uma era e de um perfil de estrela de cinema que teve nesses anos o seu canto de cisne - afinal, nos anos 60 começavam a surgir actores iguais aos espectadores e a dimensão bigger than life de Taylor Burton não era flor que se cheirasse na era hippie; e ensaia, até, a "tese" - embora não possamos chamar ensaio a este livro - do pioneirismo do casal Elizabeth Taylor/Richard Burton: eles foram um reality show. Brangelina? Não, LizandDick.
Voltando a esse ano, 1962, Cineccittà. Os paparazzi - já se chamavam assim, dois anos antes Federico Fellini filmara La Dolce Vita e dera o nome de Paparazzo a um fotógrafo, o que passou a designar, como dizer, uma ambição, uma atitude... - acamparam fora dos estúdios ou seguiam o casal Via Venetto abaixo e acima.
Richard era casado, com Sybil. Liz com Eddie Fisher, o homem que "roubara" à sua amiga Debbie Reynolds para se consolar do estado de viúva inconsolável devido à morte, num desastre de avião, do grande amor da sua vida, o produtor Mike Todd. Mas Eddie - e aqui entramos por um pedaço de psicologia sexual que Furious Love tacteia - já tinha sido domado, e Liz precisava de novas e maiores emoções. Burton era uma melhor versão de Mike Todd, era a sua alma gémea sexual. E havia o álcool.
My blind eyes are desperately waiting for the sight of you. You don't realize of course E. B. how fantastically beautiful you have always been, and how strangely you have acquired an added and special and dangerous loveliness. Your breasts jumping out from the half-asleep languid lingering body, the remore eyes, the parted lips.
Liz and Dick
1962, Roma, um resumo: tentativa de suicídio de Taylor dentro de uma camisa de noite Christian Dior, depois de Burton lhe ter dito que nunca poderia abandonar a mulher, Sybil.
Eddie Fisher com uma pistola apontada à mulher adúltera, mas depois a dizer "descansa que não te mato porque és bonita de mais".
A foto que lançou Le Scandale (expressão de Richard Burton), na ilha de Ischia, baía de Nápoles, onde iriam ser filmadas cenas de Cleópatra: os dois a beijarem-se num iate alugado, maços de cigarros ao pé dos pés descalços - o momento inaugural da celebrity culture tal como a conhecemos hoje? Foi ainda como adúlteros que filmaram, depois de Cleópatra, filme que levou toda a gente às salas para testemunhar o momento do "crime", The VIPs (1963), de Anthony Asquith, em que faziam um casal socialite que chegava ao aeroporto de helicóptero (tal como tinha chegado a Ischia).
De novo gente a inundar as salas, num filme que começa com Orson Welles a fazer de produtor de cinema chamado Buda e já com perfil de Buda, o que hoje pode acrescentar uma consciência irónica a um daqueles filmes que tentavam lutar contra o tempo nos anos 60, adiando ingloriamente o final de uma era juntando uma série de estrelas num cenário (um aeroporto) e inventando uma serôdia ficção entre elas.
Foi durante a rodagem que Burton pediu o divórcio à mulher, mas o divórcio entre Liz e Eddie só seria decretado em 1964, ano em que Elizabeth e Richard passaram então a ser um casal segundo a lei dos homens. Era o segundo para Richard, o quinto para Elizabeth. Burton fazia nessa altura uma temporada com Hamlet, estava em Toronto, e num dos curtain calls prometeu ao público que "não haveria mais casamentos". Promessa que não conseguiria cumprir, como hoje sabemos.
LizandDick, conjugalidade, resumo (1964-1973; 1975-1975): Taylor adorava os ímpetos alcoólicos de Burton, e segundo Furious Love precisava de uma boa cena de luta conjugal em público - isto é, animalidade. Que podia ser selada com um Van Gogh.
Elizabeth comia, bebia e arrotava como na taberna dos galeses, antídoto (entramos de novo pelos pedaços de psicologia de Furious Love) à sua beleza algo delicodoce - o apetite pelo foie gras, pela galinha frita e pelo puré de batata ou pelo Bloody Mary dava-lhe um suplemento de realidade, tornava-a mais carnal, dizem os autores do livro. Era uma forma de rasgar o que tinha sido desde miúda, desde que era child actress, o corpete em que estava metida desde Lassie - e como se quisesse estilhaçar também grandes planos como os de A Place in the Sun e aquele romantismo dorido com Montgomery Clift.
Na rodagem de A Noite de Iguana (1964) de John Huston, ela foi acompanhar o já marido à rodagem, no México, e não ficava atrás de nenhum dos homens - a fasquia era alta: havia Burton e havia Huston, e havia Ava Gardner, que se já não era o mais belo animal do mundo ainda era um homem no que toca à bebida.
Liz puxava por Richard: "Bebe ou ficas um chato." Liz aguentava a bebida, Richard, que não tinha a musculação narcísica que a mulher desenvolveu em anos e anos de treino no studio system, não. Uma linhagem de que se orgulhava - filho do proletariado - e que ao mesmo tempo o estigmatizava socialmente, e um talento para uma arte que quase não respeitava - ainda achava que ser actor era estar em perda, como se não fosse coisa suficientemente de homem -, faziam de Burton um torturado. Os complexos de culpa por ter abandonado a mulher não ajudavam.
It's no use pretending that you are an ordinary woman. Quite clearly, like this pen, you are not. I don't mean for a second that you are in any way comparable with a pen. And yet you are, like this divine pen you are heavy and light at the same time... How [to] watch the puritanical face relax into slow lust? How to watch that watch catch its breath, and, for a speck of a speck of a millionth of second, become the animal that all men seek for in their women? And since we're talking of pens and you, how [to] watch the ink splurge out of your pen... reach[ing] out from the inner depth of the divine body. Will you, incidentally, permit me to fuck you this afternoon? Yours trully (you have just come into the room), R. B.Em 1965, Vincente Minnelli colocou-os como homem e mulher adúlteros em pleno Big Sur, em The Sandpiper - e com Eva Marie Saint a fazer de mulher abandonada da personagem de Burton na qual muitos viram um retrato de Sybil, a mulher de quem o actor se divorciara.
A personagem de Taylor, uma mente livre, vivia em pleno milieu de beatnicks, nudistas, e etc., mas, para quem vivia rodeada de jóias e de dólares na vida real, transformar-se em ícone da contracultura dos 60s era tarefa inglória.
E não tinha o corpo andrógino que começava a estar na moda. O filme foi olhado com desdém e com desconfiança por um (novo) público emergente. Era um sinal de que um mundo estava a acabar. Mas antes disso houve um golpe de rins, Quem Tem Medo de Virginia Woolf (Mike Nichols, 1966): Liz engordou, "envelheceu" para fazer de Martha, e Richard permitiu todo o espaço à mulher para brilhar fazendo de humilhado George.
Jeu de massacre
Quem Tem Medo de Virginia Woolf permitiu aos dois darem azo à sua fisicalidade: como se, ao bater em Richard/ George, Liz pacificasse a sua necessidade de luta. E Martha/Liz começa logo a abrir com o seu What a dump!, imitação de uma line famosa de Bette Davis. Foi o segundo Óscar para ela (o primeiro, em 1960, foi com Butterfield 8), mas não haveria nenhum para Burton. Só que, por mais bravado que exista na Martha da actriz, quem foi ao cinema não via as personagens, via Liz e Dick, que nunca poderiam desaparecer naquilo que interpretavam.
E o mesmo aconteceu com A Fera Amansada (1967), de Franco Zefirelli, versão feliz e rocambolesca, via Shakespeare, da turbulência conjugal dos Burtons. Com a incontinência de calão que Liz alardeava. E foi outro sucesso.
Os biógrafos falam na série de filmes que fizeram juntos como um espelho que não os deixava.
E quanto a ela, a Liz, como uma espécie de inversão da actriz do Método: como se tivesse aprendido a escolher os filmes por aquilo que estava a acontecer na sua vida, sim, mas sobretudo acabando por ser empurrada na vida pelo imaginário das personagens e dos filmes. Joseph L. Mankiewicz: "Ela era o oposto da maioria das outras estrelas... para ela, viver era uma espécie de actuação" - provavelmente estaria a lembrar-se (isto somos nós a perpetuar o mito...) de uma cena de ciúmes de Cleópatra por causa de Marco António, em que Taylor teria gritado... Sybil.
O golpe de rins que foi Quem Tem Medo de Virginia Woolf e o sucesso comercial e artístico da empreitada não vieram escamotear que se foram o primeiro casal reality show, o show estava a acabar: eles foram os últimos de uma espécie.
Na obsessão de concorrer com os Onassis nas jóias - Furious Love informa-nos que a expressão spending money like the Burtons passou a designar os perdulários; na forma como viviam foram do mundo - e quase literalmente, porque uma parte da vida familiar dos Burtons, eles e os filhos dele e os filhos dela, foi vivida a bordo de um iate, o Kalizma, que ia de porto em porto, sulcando o Mediterrâneo, por exemplo, para compras - eles que detestavam andar de avião e assim sentiam a sua vida mais protegida. John Guielgud, que entrou no Kalizma, contou que a vida dos Burtons era cuidada por "14 marinheiros portugueses".E quando não era o Kalizma, quando teve de ir para obras, foi a vez do Beatrice and Bolívia, que ancorou no Tamisa quando os Burtons passaram uma temporada em Londres, alugado por 21 mil dólares por mês, porque Liz não queria que os seus cães fossem submetidos ao programa obrigatório de quarentena antes de entrarem em território britânico - a imprensa não perdoou: "O canil mais caro do mundo." E os diamantes. O Krupp - que fez a princesa Margarida abrir os olhos em choque, "é tão grande, que vulgar", e Liz abrir os olhos de gulodice: "É, não é, maravilhoso!" O La Peregrina, o Ping-Pong, o Taylor-Burton, que só podia ser usado, regras da seguradora, 30 dias por ano. As lutas, o álcool, as desintoxicações de Richard...
Em 1970, para a cerimónia dos Óscares, os Burtons fizeram a tournée mediática necessária para promover Anne of a thousand days (Charles Jarrott), hipótese de Burton receber, finalmente, o Óscar que lhe faltava. Quando deixaram o iate que os protegia, perceberam que Hollywood mudara. A MGM estava à venda, e a tanga de Johnny Weissmuller, e os sapatos vermelhos que Judy Garland usara no Feiticeiro de Oz, e o guarda-chuva de Gene Kelly de Serenata à Chuva. Pormenor relevante: Steven Spielberg começava a filmar a sua primeira curta.
Números: 20 por cento da população tinha menos de 30 anos e constituía 73 por cento do público de cinema. Os movie brats vinham a caminho, e os rostos e corpos de DeNiro, Dustin Hoffman, Diane Keaton, Ellen Burstyn ou Jane Fonda eram de outra natureza. Burton não ganhou o Óscar, e ainda por cima foi Elizabeth Taylor, que aceitara participar na cerimónia esperando que esse seria o ano do marido, que teve de entregar o Óscar do Melhor Filme a O Cowboy da Meia-Noite, de John Schlesinger, símbolo da "nova Hollywood" e o primeiro filme com a classificação X (para adultos) a ganhar um Óscar. Para a velha guarda de Hollywood, eram ainda os protagonistas de Le Scandale - e do filme que iniciou o princípio do fim para a 20th Century Fox, como um pavão que abre o leque para uma última vez; para a contracultura que tomava conta de Beverly Hills, eram um casal duvidoso. Alguém os descreveu nessa altura como "dois campeões de pesos pesados exaustos de tanta briga mas incapazes de se deixarem". Estavam no limbo.
So My Lumps You're off, by God! I can barely belive it since I am so unaccustomed to anybody leaving me. But reflectively I wonder why nobody did so before. All I care to God is that you
Depois deixaram-se. Em Julho de 1973, Elizabeth fez um anúncio público: era melhor para os dois, e para o amor deles, que se separassem. Um ano depois, o divórcio, "diferenças irreconciliáveis".
Em 1975, voltaram a cair nos braços um do outro, se bem que nunca tivessem deixado de se contactar à distância, ela preocupada com os efeitos do álcool nele, ele acorrendo aos hospitais onde ela era internada com as suas crises de saúde. E em Outubro de 1975, Liz retribuiu a Dick a promessa de casamento sem divórcio. Dearest Hubs, how about that! You really are my husband again, and I have news for thee, there bloody will be no more marriages... or divorces, either. Também se enganou.
Nove meses depois, separavam-se para sempre.
Ainda subiram a um palco juntos, em 1983, fazendo o Private Lives, de Noel Coward, ao qual toda a gente acorreu para ver a história de um casal separado que se reencontra (na peça, as personagens, mas o que o público queria ver era Liz e Dick outra vez). Quem viu tem na memória um momento de puro camp, como a caricatura do que tinha sido uma história de amor vivida em público.Elizabeth Taylor receberia ainda mais uma carta de Richard Burton. Ele tinha-a enviado a 2 de Agosto de 1982. Três dias depois, ausentou-se da sala na casa que partilhava com a sua quinta mulher, Sally Hay, queixando-se de dores de cabeça. Morria nessa noite, vítima de hemorragia cerebral. Elizabeth recebeu a carta dias depois da morte de Burton. Foi a única carta que Taylor não disponibilizou a Sam Kashner e Nancy Schoenberger. Vamos ler o que eles contam, no final de Furious Love: "Era uma carta de amor a Elizabeth, e nela ele dizia-lhe o que ele queria. Elizabeth estava em casa e ele queria regressar a casa. Desde essa altura ela mantém essa carta na mesa-de-cabeceira."
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Até anteontem. Ou até à eternidade.