30 abril 2008

caro vasco,

'esta praça é o meu amor em estado de sítio', escreveste nesse tratado sobre o silêncio que nos rebenta por dentro, dissimulado por um juramento com pronúncia napolitana que fazemos a nós próprios - 'omertà' é o preço a pagar pela nossa aceitação nessa espécie de sociedade alternativa e é também, como tantas vezes acontece, uma forma de sobrevivência.

tal como essa praça,
tal como o teu livrinho especioso,
tal como as tuas palavras nele inscritas,
assim este blog é apenas e só
uma espécie de amor, que calhou ser meu, 'em estado de sítio'.

nem todos sabem dizer.
mas tu sabes.

aceita um abraço concreto de um metafórico rapaz,
que calhou viver em mim.


gi.

ben christophers, 'my beautiful demon'

29 abril 2008

a rapariga de azul
tinha dois arco-irís no lugar dos pés.

na igreja,
rezavámos por nossos avós,
e por nossos outros corações
espalhados pelo mundo-em-nós.
tínhamos a nítida sensação
de sermos os únicos a reparar.

esperar milagres, isso sim!
olhar ao alto, como não?
agora olhar para uns pés humildes..
ainda acabava em processo de destituição
da nossa querida linhagem auto-atribuída,
final terrível para tão ínclita geração.

e assim milagre maiúsculo? zero
de diálogo divino nem resquício.
perceberam bem
ou voltamos ao início?

a rapariga de azul era pobre e triste
os pobres topam-se a milhas, dizeis bem,
mas não se esqueçam vós que orais
a condição de quem nasceu nessoutra belém.

os milagres estão ao pé dos mais simples.
uns pés de uma rapariga de província,
os pés de uma rapariga de azul,
(o vosso coro:
uns pobres pés, pode lá isto ser?)
eram pobres os pés e pobre a rapariga,
mas os arco-irís que neles nasciam,
milagre acontecido e a acontecer,
não os trocava por nenhum de vós
e olhem que juro pelo mais sagrado
que naquela igreja, naquele fim de tarde,
eram só três dos meus amados avós.

nunca vão entender estes poemas,
pensarão: pobre pateta este joão.
em verdade vos digo:
antes pateta e com dois arco-irís nos olhos
que ser como tu, meu triste e baço e piedoso concidadão.

(e ao chamarem-me pobre
fazem de mim mais nobre
sem precisar de azular,
mas azul fraco,
o que nasceu vermelho,
mas vermelho forte.
esqueçam-se de vós,
olhem: culpem a sorte..)

estação de inverno: 26-ª estação

hoje, a vigésima sexta estação de inverno.


a poesia de chumbo e claustrofóbica de vasgo gato, incendiário moderno.

um regresso à matriz da 'estação de inverno', com canções escuras como certas noites da alma: ben christophers, momus, the apartments (diabólicos mestres de cerimónias, que merecerão palco mais vasto, nos próximos programas).

e cohen e dylan, a rematar - que é para não ficar pedra sobre pedra.

sol de abril lá fora, mas cá dentro a chuva ainda cai.


já disponíveis todos os 25 podcasts das estações de inverno emitidas até à data.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

24 abril 2008


sebastien tellier, 'sexual sportswear'



sebastien tellier, 'roche'
http://www.youtube.com/watch?v=XVnRzEjpUmE

uma revolução por minuto (bom feriado)

chuva


hoje chove muito, muito,
dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado vê a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor
uma carta à mulher com quem vive
e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele
e se parece com a sua sombra
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher
entra em casa pela janela e não pela porta
por uma porta entra-se em muitos sítios
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo
mas não no mundo
nem numa mulher / nem na alma
quer dizer / nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim
como hoje / que chove muito
e me custa escrever a palavra amor
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa
e só a alma sabe onde as duas se encontram
e quando / e como
mas que pode a alma explicar

por isso o meu vizinho tem tempestades na boca
palavras que naufragam
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na
mesma noite em que ele amou
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá
como o silêncio que existe entre duas rosas
ou como eu / que escrevo palavras para regressar
ao meu vizinho que vê a chuva
e à chuva
ao meu coração desterrado



juan gelman*
'no avesso do mundo'
trad. colectiva da casa de mateus, revista por ana luísa amaral
quetzal
1998

[in: http://canaldepoesia.blogspot.com]


* prémio cervantes 2007

on wannabeing..

ground control to major tom

or

the writer-to-be to the publisher-to-be


the wannabe's corporation rules!

claro

escuro

23 abril 2008


foto: yann arthus-bertrand


'digamos que é um rei que deixou cair a coroa'

a. m. pires cabral

22 abril 2008

havia já sete noites que sonhava com elas. não de forma caótica, mas, pelo contrário, de forma marcialmente organizada, como que obedecendo a um ritmo exterior, fulgurante - naquele sentido mais incomum da palavra. sonhava com elas, com método, régua e esquadro, uma por dia (melhor dizendo, uma por noite). em cada noite, assim que adormecia (era o que lhe parecia) logo embarcava num carrossel tingido pelas cores próprias do que é vivo - uma espécie de revisitação dos lugares interiores, romaria estival pelos verões antigos do seu coração. uma, depois outra, depois mais uma, depois mais outra. cada uma delas ocupava uma noite e, como nos antigos haréns que imaginara no tempo em que aladino e sandokan eram ainda sinónimos de maravilhas por vir, havia uma cadência, uma ideia de ordem, uma espécie de paradigma que, uma vez interiorizado, encontrava o seu próprio sentido. era assim que elas apareciam, com uma regularidade infalível. acordava de manhãzinha invariavalmente exausto, extenuado. era como fazer amor numa espécie de plano interior - obrigava a muito mais coisas do que a forma mais pedestre de fazer amor. todos os dias, melhor todas as noites, uma princesa ocupava o seu espaço, sem pedir licença, usando as suas credenciais, aquele salvo-conduto para a vida que damos a quem entregamos (ou entregámos um dia) o coração. sete eram elas para sete noites. ao contrário do plot bíblico, não havia domingo, o que obrigava a um esforço desumano, sobre-humano, infra-humano - talvez qualquer coisa ainda por inventar mas desesperadamente humana. a cada uma, um cenário interior diferente, obrigando, na noite seguinte, a mudar o cenário, o enquadramento, os actores secundários, a iluminação, todo o set e todo o mood. mas não havia equipa, nunca havia equipa alguma. neste métier 'estamos sózinhos com as coisas que amamos'. e com as coisas que amámos. com ambas. assim passavam os dias, assim se passavam as noites, sempre sempre sempre com um frenesim subterrâneo, como aquele mar a que os marinheiros experimentados chamam 'mar de azeite': à superfície uma calma exasperante, mas, sob essa fina camada de falsa serenidade, correntes subaquáticas letais. calma de morte, por assim dizer. um corropio, um frenesim, como um dia um político de águas profundas (lá está..) crismou a actividade quotidiana do seu transitório líder. lembrava-se de ter lido isto nos jornais e, ao pensar nisso, ocorria-lhe o facto de os jornais poderem ser oráculos alternativos (ideia desvairada, ao mesmo tempo, como todas as que fazem estremecer).

o livro não era mau, pensou ela. um bocadinho teen talvez, nos seus arroubos emocionais. um estilo algo gongórico (como gostava-abominava esta palavra) a polvilhar a intriga, algum psicologismo exarcebado. mais secura e mão firme, um chicote que amestrasse os fantasmas do escriba, meia-dúzia de cortes cirúrgicos e talvez este livrito fosse não só uma coisa que lhe agradava mas também uma coisa que agradasse aos outros. estava farta de coisas que só a ela agradavam. quer dizer, admitia que tinha uma certa graça ver o mundo do cimo de uma árvore, mas, que diacho, descer cá baixo, roçar as calças pelos tojos e urtigas, beber o vinho dos lírios, sujar as mãos de carvão, dar pulos no ar, trincar maçãs, todas essas coisas tinham o seu encanto. a beleza devastadora do trivial, quando vista de cima, é igual ao seu inverso - como tornar objectiva a relação entre uma coisa e outra, como qualificar uma como melhor ou pior, como estabelecer comparações entre o que se não conhece, o que se não experimenta, o que se não vive? por isso mesmo sempre costumava embirrar com sujeitos com opiniões fortes e convicções pretensamente inabaláveis. olhava para eles com uma certa pena, que, vista de fora, resvalava logo para uma atribuída (mas injusta) arrogância. diziam-lhe que era por ser uma mulher bonita, com aquelas feições esculpidas e um perfil clássico (mais um pouco e a palavra era cinematográfico. ou menos um pouco). a altivez não vinha daí, da sua pose exterior. a altivez não existia, mas, para saber isso, era preciso conhecê-la. e para a conhecer era preciso não ter medo dela. ou não a desejar como ela costumava ser desejável - um troféu inacessível tornado acessível por razões que ninguém procurava exactamente saber.

quando o carro parou, aquela luz azul-acinzentada própria de certos dias de inverno, quando o dia passa testemunho à noite, tomou o seu papel principal. como nos filmes dos quais se diz: 'a natureza ou a paisagem é actor principal'. debaixo de um candeeiro de lata, a imitar pobremente mas com um resquício de dignidade candeeiros de outros tempos, ela era agora uma imagem de hopper (mas de um hopper alternativo, um hopper do basfond - sorria para si própria com estes trocadilhos de linguagem). uma mulher, ainda bonita, recortada contra a meia-luz, envolta na névoa, gabardine garbosa, um periclitante equilíbrio entre o guarda-chuva, o livrinho na não, o cigarro displicentemente arrumado por entre os lábios. o livro de contos que ocupava o seu mundo tinha uma capa negra e, a custo, deixava ler qualquer coisa como 'novos contos de inverno'. ou talvez 'nove contos de inverno'. num bolso lateral da gabardine, espreitava outro livro. parecia ser algo como 'têmporas de cinza' e, desta feita, virtude da mancha gráfica, era possível descortinar o nome do seu autor: 'a. m. cabral'. parecia ser assim, pelo menos.

quando parou o carro, ele sabia o que fazia. e sabia que sabia. uma mulher assim, com aqueles livros - que ainda não sabia quando tomou a decisão de abrandar e parar serem exactamente aqueles - não se encontra todos os dias. uma mulher que cheirava a inverno e que, iria perceber não muito mais tarde, sabia a inverno. sempre fora assim, desde miúdo: antes de ter as experiências físicas, terrestres, já o resultado estava nele gravado. seguia cegamente esta espécie de instinto que lhe fazia gostar (ou não) das outras pessoas, sem saber porquê. saber sabia, não sabia era explicar isso, por isso, no mundo normal, era como se não soubesse. no caso das mulheres, era ainda mais fino este seu sétimo sentido. não gostava de falar disso, por pudor. porque o cheiro e o sabor de uma mulher não é articulável. pensava na improbabilidade do que acabara de pensar e sentir e fazer, em micro-segundos; ainda mais, nos pensamentos que o assaltavam durante a curta viagem de carro que acabara de ser interrompida. andava a sonhar com as suas ex-namoradas, com as mulheres da sua vida, uma por dia. ou melhor, pensava para consigo, uma por noite. como se desesperadamente participasse num concurso cujo prémio máximo era saber enfim qual era a certa. ou, e não podia deixar de afastar esta hipótese, como se, de uma maneira oblíqua, se estivesse a despedir. talvez perturbado por este pensamento, a mulher sob o candeeiro, à beira da estrada naquele bairro da cidade sem grande movimento àquela exacta hora, talvez aquela mulher que, mesmo ao longe, se via estar a ler havia captado a sua atenção. naquela zona, ele sabia-o perfeitamente, as prostitutas invadem duas ou três ruas curiosamente recatadas. essa possibilidade bailava nele próprio em paralelo com tudo o resto. mas, talvez mesmo por isso, pensou na beleza de se apaixonar para sempre por uma prostituta que lia contos de inverno. talvez assim os sonhos nocturnos terminassem, talvez assim as suas antigas mulheres descansassem e o deixassem descansar, talvez assim, nessa negação sublime da estatística e do determinismo, ele sentisse coisas novas. ou, simplesmente, se sentisse enfim ele próprio.

o carro arrancou. um desportivo dos anos 50. cromado e vermelho sangue nos sítios certos. ele acendeu-lhe o cigarro, apesar do vento. reparou que ela lia o seu livro, aquele que se esforçava por dizer: isto sou eu, isto sou só eu. e quanto mais dizia, mais os leitores e os críticos e os editores e os tradutores e os revisores e essa malta toda diziam: bem pensado! uma persona que é o autor, nada mais do que o autor, em exercício de exposição sem rede. bem inventado, sim senhora. quanto mais lhes damos a verdade, maior a lenda que criam à nossa volta. como se isso fosse impossível, como se escrever o que somos fosse um exercício inverosímel, um acto impossível, uma boutade manifestamente artificiosa.

- esperei por ti toda a minha vida.
foram estas as primeiras palavras que ela me dirigiu. e foram estas as palavras que mudaram a minha vida.
vou contar-vos uma história. a história dela. a minha história também.
é uma história de inverno, com uma mulher-fatal, cigarros renitentes, descapotáveis em sangue-vivo, livros a sair dos bolsos.
esta história obviamente nunca aconteceu.
tal como eu não existo, sou apenas um personagem à solta, que se escapou da algibeira do meu criador.
em cada ponta dos meus braços um coração que escreve.
e a noção exacta de que nunca acreditarão na história que vos vou contar.

foi assim
era inverno
e eu chamo-me_________.


--

estação de inverno: 25ª estação




hoje, a vigésima quinta estação de inverno.


de regresso ao formato mais habitual, damos a palavra a a. m. pires cabral e aos seus diálogos poéticos crivados de Deus e morte.

lembraremos, muito suavemente, a sétima legião - esse grupo seminal que nos legou um punhado generoso de canções feitas de granito e mar.

e apresentaremos, em rima com o programa anterior, um fado de camané que é, como dizer?, a-s-s-o-m-b-r-o-s-o.


já disponíveis todos os 24 podcasts das estações de inverno emitidas até à data.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

21 abril 2008




yeah, nothing but (winter) flowers.
love is
meaning.
meaning is
everything.

love itself is
also
identity.

then:
an identity with a meaning
is everything.

thus:
love
is
are
am
i.

love is the absolute i.
or the closest thing we got.
we shall not forget,
as someone once forgot.
- let's not.

18 abril 2008

bom fim-de-semana

la dolce vita.
aquilo que todos devíamos dar uns aos outros.


sebastien tellier, 'la dolce vita'

16 abril 2008

'Morreu Pedro Bandeira Freire, fundador do cinema Quarteto
16.04.2008 - 12h56

Pedro Bandeira Freire, fundador do cinema Quarteto, morreu hoje, com 68 anos, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, confirmou ao PÚBLICO a sua editora Guerra e Paz.'



um abraço e até sempre.
[o resto fica entre nós]


galaxie 500, 'when will you come home'
entrego a minha voz ao coração do vento
e quanto mais água dos meus olhos corre
mais fogo acendo
eu não me entendo
eu não me entendo

e por ti já gastei o pensamento
ai amor, ai amor, se o tempo
já gastou, já gastou o nosso tempo
eu não me entendo
eu não me entendo

a primavera do meu tempo
já gastei a primavera do meu tempo
já fiz da boca jardins de vento
e não me entendo
e não me entendo
eu não me entendo



letra: manuela de freitas,
para voz e alma de camané.

15 abril 2008

estação de inverno: 24ª estação




hoje, a vigésima quarta estação de inverno.


uma edição especial, integralmente dedicada a camané - príncipe da densidade, mestre da melancolia.

a poucos dias do lançamento do seu 5-º disco de originais, revisitamos os 4 álbuns anteriores, num périplo cronológico pela sua obra e numa digressão afectiva pelas avenidas, ruelas, becos e veredas da (dele e nossa) alma.

3 mãos bem cheias de canções perfeitas - que, por acaso, são fados.


já disponíveis todos os 23 podcasts das estações de inverno emitidas até à data.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

14 abril 2008


george harrison, 'my sweet Lord'


but it takes so long,
my sweet Lord.

13 abril 2008





Pedro Bandeira Freire
Fundador do cinema Quarteto em estado considerado grave em Santa Maria
13.04.2008 - 11h09 Lusa



O fundador do cinema Quarteto, Pedro Bandeira Freire, que há três dias sofreu um acidente vascular cerebral, está hospitalizado no Serviço de Medicina Intensiva de Santa Maria (Lisboa) em estado considerado grave, disse fonte médica. A morte de Pedro Bandeira Freire chegou a ser anunciada por uma fonte próxima do proprietário do cinema Quarteto - também realizador, dramaturgo e poeta -, informação que foi desmentida pelo filho, que admitiu o internamento do pai em estado considerado grave, escusando-se a adiantar outros pormenores por preferir manter reserva da vida privada. Há cerca de um mês, Pedro Bandeira Freire, 68 anos, entregou as chaves do Cinema Quarteto, que fundara em 1975, depois de, em Novembro passado, aquele complexo de quatro salas ter sido encerrado pela Inspecção-Geral das Actividades Culturais, que detectou falhas ao nível da segurança. Fundador da livraria Opinião, Pedro Bandeira Freire foi autor de vários livros de poesia e teatro, tendo publicado em 2007 o volume de memórias "Entrefitas e Entretelas". Foi ainda letrista, jurado em festivais de cinema nacionais e estrangeiros (como Berlim) e colaborador da imprensa, rádio e televisão, exercendo inclusivamente funções de consultor de cinema na RTP. Estreou-se na realização com a curta-metragem "Os Lobos" (1978) e foi actor em "A Crónica dos Bons Malandros" (1984), filme realizado por Fernando Lopes com base no livro homónimo do jornalista e escritor Mário Zambujal. Foi ainda argumentista em "A Balada da Praia dos Cães" (1987), longa-metragem de José Fonseca e Costa a partir do romance com o mesmo nome de José Cardoso Pires.

--

Vê lá se fazes o imenso favor de te aguentares por cá.


E, rapaziada da Lusa, não escrevam sobre quem ainda não morreu, por muito mal que esteja, sem a delicadeza de não abusarem do pretérito perfeito - "foi autor"? não será "é autor"? Vem tudo no "livro de estilo do bom-senso", da "editora cabeças-que-pensam".

O livrinho acima é uma delícia, e logo em Português. Uma biografia na primeira pessoa, a rebentar de ternura e feérie. Um livrinho do caraças, escrito pelo Pedro e a propósito do qual bem se pode dizer: 'bigger than life', à moda das Avenidas Novas, versão segunda metade do século vinte. Leiam-no.

11 abril 2008

the little match girl

Most terribly cold it was; it snowed, and was nearly quite dark, and evening-- the last evening of the year. In this cold and darkness there went along the street a poor little girl, bareheaded, and with naked feet. When she left home she had slippers on, it is true; but what was the good of that? They were very large slippers, which her mother had hitherto worn; so large were they; and the poor little thing lost them as she scuffled away across the street, because of two carriages that rolled by dreadfully fast.

One slipper was nowhere to be found; the other had been laid hold of by an urchin, and off he ran with it; he thought it would do capitally for a cradle when he some day or other should have children himself. So the little maiden walked on with her tiny naked feet, that were quite red and blue from cold. She carried a quantity of matches in an old apron, and she held a bundle of them in her hand. Nobody had bought anything of her the whole livelong day; no one had given her a single farthing.

She crept along trembling with cold and hunger--a very picture of sorrow, the poor little thing!

The flakes of snow covered her long fair hair, which fell in beautiful curls around her neck; but of that, of course, she never once now thought. From all the windows the candles were gleaming, and it smelt so deliciously of roast goose, for you know it was New Year's Eve; yes, of that she thought.

In a corner formed by two houses, of which one advanced more than the other, she seated herself down and cowered together. Her little feet she had drawn close up to her, but she grew colder and colder, and to go home she did not venture, for she had not sold any matches and could not bring a farthing of money: from her father she would certainly get blows, and at home it was cold too, for above her she had only the roof, through which the wind whistled, even though the largest cracks were stopped up with straw and rags.

Her little hands were almost numbed with cold. Oh! a match might afford her a world of comfort, if she only dared take a single one out of the bundle, draw it against the wall, and warm her fingers by it. She drew one out. "Rischt!" how it blazed, how it burnt! It was a warm, bright flame, like a candle, as she held her hands over it: it was a wonderful light. It seemed really to the little maiden as though she were sitting before a large iron stove, with burnished brass feet and a brass ornament at top. The fire burned with such blessed influence; it warmed so delightfully. The little girl had already stretched out her feet to warm them too; but--the small flame went out, the stove vanished: she had only the remains of the burnt-out match in her hand.

She rubbed another against the wall: it burned brightly, and where the light fell on the wall, there the wall became transparent like a veil, so that she could see into the room. On the table was spread a snow-white tablecloth; upon it was a splendid porcelain service, and the roast goose was steaming famously with its stuffing of apple and dried plums. And what was still more capital to behold was, the goose hopped down from the dish, reeled about on the floor with knife and fork in its breast, till it came up to the poor little girl; when--the match went out and nothing but the thick, cold, damp wall was left behind. She lighted another match. Now there she was sitting under the most magnificent Christmas tree: it was still larger, and more decorated than the one which she had seen through the glass door in the rich merchant's house.

Thousands of lights were burning on the green branches, and gaily-colored pictures, such as she had seen in the shop-windows, looked down upon her. The little maiden stretched out her hands towards them when--the match went out. The lights of the Christmas tree rose higher and higher, she saw them now as stars in heaven; one fell down and formed a long trail of fire.

"Someone is just dead!" said the little girl; for her old grandmother, the only person who had loved her, and who was now no more, had told her, that when a star falls, a soul ascends to God.

She drew another match against the wall: it was again light, and in the lustre there stood the old grandmother, so bright and radiant, so mild, and with such an expression of love.

"Grandmother!" cried the little one. "Oh, take me with you! You go away when the match burns out; you vanish like the warm stove, like the delicious roast goose, and like the magnificent Christmas tree!" And she rubbed the whole bundle of matches quickly against the wall, for she wanted to be quite sure of keeping her grandmother near her. And the matches gave such a brilliant light that it was brighter than at noon-day: never formerly had the grandmother been so beautiful and so tall. She took the little maiden, on her arm, and both flew in brightness and in joy so high, so very high, and then above was neither cold, nor hunger, nor anxiety--they were with God.

But in the corner, at the cold hour of dawn, sat the poor girl, with rosy cheeks and with a smiling mouth, leaning against the wall--frozen to death on the last evening of the old year. Stiff and stark sat the child there with her matches, of which one bundle had been burnt. "She wanted to warm herself," people said. No one had the slightest suspicion of what beautiful things she had seen; no one even dreamed of the splendor in which, with her grandmother she had entered on the joys of a new year.



by Hans Christian Andersen

in http://www.classicreader.com


[dedicado a todas as 'pequenas vendedoras de fósforos' que encontrei na vida - dos seres mais bonitos que um homem pode encontrar.]

um requiem & uma carta de amor & o desespero & tudo, como nunca foi filmado

[spoiler: contém o final do filme]








spike lee's '25th hour'
[magistral filme, sublime filme]

10 abril 2008



não importa se for longe,
hei-de encontrar-te.


it's a promise.

09 abril 2008



you belong to no one
you are so easy to be around
well my kind's been around forever
and i claim to be one of the few
but the lost cause of words walks away with my nerves
cause i'm gay as a choir boy for you

you got hair that recalls me of rivers
runs softly while you dream of you
but your heart is so cold that it shivers
'cause that i know is i'm nothing to you

and i followed you into the party
that no one invited me to
but alone i made love to my 40
and played make-believe it was you

but i watched you forget your belongings
and belongings you've got quite a few
i filled up your bag with my longings
and searched through this whole, wide city for you

and we'll walk 'neath the street lamps forever
you'll say you remind me of you
it's so damn cliche that it's clever
it's so fucking false, you think that it's true

'cause i heard that you forgot that you were (a) lover
and lovers you've got one or two
but you can't tell one from the other
now, mama, now you're nothing to you

and it's down by the riverside (wasting away)
and it's down by the riverside (beating the clay)



two gallants, 'nothing to you'.


volume no máximo.
em certos dias acordamos zonzos, mal-dormidos, com aquela sensação febril de que passámos a noite em claro, a cabeça num turvelinho, o peito em corrida disparada, os sentidos à espera de qualquer coisa (ou já à espera de coisa nenhuma). mexemos o chá dos doentinhos com meia colher de açúcar e uma torrada quase seca, que logo nos lembra o quão frágeis somos. esquecemos essa evidência, mas ela não se esquece de nós, de nos relembrar esta nossa humanidade com caixa baixa. feita de órgãos, circuitos sanguíneos, pele, coisas vivas (com todas as características que têm os sistemas vivos, nem todas particularmente entusiasmantes, para usarmos um eufemismo). mexemos na chícara-chávena-copo-whatever e imaginamos, como no filme do spike lee, mil e um comboios em andamento. lembramos como aqui chegámos, todos os caminhos, linhas de ferro, estações de província e gares majestosas, os cruzamentos de linha, as entradas e saídas, os transbordos. uma rede complexa, interligada, irreplicável. e teria bastado apenas e só escolher algures uma outra opção e, não juramos mas pressentimos, o lugar onde agora nos sentamos seria, com elevada probabilidade, outro. os caminhos mentais em rewind e fast forward, mapas de metro com dezenas de linhas, centenas de estações, milhares de cruzamentos. tudo a mexer na nossa cabeça, as luzes psicadélicas a impedirem a racionalidade de falar mais alto. para trás, para a frente, para o lado. como aqueles potentíssimos super-computadores que numa fracção de tempo ínfima fazem milhões de cálculos, a nossa cabeça mapeia e visualiza e assinala com um jogo feérico de luzes bêbedas todas as possibilidades, todas as veredas, todos os atalhos - e todas as suas combinações. como se não bastasse, a cadeira roda, como nos barbeiros de antigamente (dizem-me aqui as vozes interiores): deixa o passado que te trouxe até ao presente e embarca no presente que te conduzirá ao futuro. repete-se a vertigem, as luzes a explodir, imagens de computadores militares, em luz verde escura sob fundo negro, traçando caminhos, dando coordenadas sem parar, o tempo em aceleração imparável, tic tac tic tac tic tac. como não estar cansado, desolado? nem sequer numa noite de sono somos senhores de nós mesmos, nem sequer uma simples instrução (dorme! descansa! desliga!) o nosso espírito e o nosso corpo obedecem. frenesim, frenesim, uma mar de perguntas: e se tivesses insistido? desistido? resistido? resistido mais um bocadinho? insistido menos um bocadinho? nunca desistido? mais cedo? mais tarde? o chá está frio, a torrada mastiga-se a custo. nada nos sabe a nada. tudo nos sabe a nada.

primavera, so they say. bastards.

08 abril 2008


jeff buckley, 'lover, you should've come over'


alguma vez teria que ser.
a minha canção preferida de jeff buckley, 'um rapaz daqueles'.. (vocês sabem do que é que eu estou a falar).

estação de inverno: 23-ª estação




hoje, a vigésima terceira estação de inverno.


a botânica do coração, segundo joana serrado - instável osmose entre os reinos animal e vegetal.

e todo um programa dedicado a 'americana & alt. country', dando voz a uma tribo de modernos e melancólicos cowboys.

para escutar de janelas abertas e volume bem alto.


já disponíveis todos os 22 podcasts das estações de inverno emitidas até à data.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

07 abril 2008

nem todos aqueles que
saem da minha cama saem de dentro de mim
nem todos os que
saem de dentro de mim chegaram sequer a lá entrar



bénédicte houart, in 'vida: variações'

04 abril 2008

no texto de introdução da newsletter da loja de discos flur (textinhos não raro brilhantes - um abraço, a ti que os escreves!), saída hoje mesmo, diz assim:

'o combate moral sobre quem merece mais amor
é boa parte do entusiasmo que se vive com a música.'


os meus olhos bailaram, flirtaram com as palavras e descobriram..

o combate moral sobre quem merece mais amor
é boa parte do entusiasmo que se vive.


e bailaram, e flirtaram, e descobriram..

o combate imoral sobre quem merece mais amor
é boa parte do que se vive.


..

bom fim-de-semana!
heartbreak
is a word i absolutely master

tired of such heart matter
i decided to split the word
into, not exactly rocket science,
a heart / & / a break (or whatever)

now the link's broken, it's an evidence

instead of straight coffee, let's have this complex heart of mine
but (very important, folks) keeping on the loop the word 'break'
whose meaning is a kind of urgent stop, there's no need to deny.
maybe by breaking words we may somehow start another take
in this silly-and-yet-overwhelming-sitcom so called life.

do you still remember the true reason behind the fake reason why?
ninfas,
musas,
crisálidas,
duendes,
gnomos,
fadas,
seres alados,
animais terríveis inventados,
seres marinhos temíveis,
fantasmas novecentistas,
velhos medos medievais,
toda a tradição oriental,
animismos africanos vários,
pesadelos das índias,

afinal,
tudo, tudo, tudo,
o que se quiser cá pôr.
será deslumbramento ou pavor?
talvez só monstros desse lago
que em todos fica no lado interior
(duvido de que tais monstros existam,
mas é mera opinião de amador,
acho antes que vivem desde sempre,
por debaixo e mesmo à esquerda,
nessa outra coisa bem maior)

03 abril 2008

lá fora tudo arde

perde-se a tarde.

pior é cá dentro

perde-se setembro.

resta a manhã, nem lá nem cá
mas
quem quer andar ao deus-dará?
lembro-me bem desse tempo sem e.mail,
computador, browser, messenger, blogs
lembro-me bem desse tempo de papel,
desenhado a tinta com cor, cheiro, textura
lembro-me bem do tempo em que se desenhava a palavra amor,
seus contornos, sublinhados, traços,
até as sombras e a parte escura.
lembro-me bem da fisicalidade desse escrever,
agora em que a electrónica é nossa senhora
em que os dedos são já só bites e baites,
em que em vez das noites certas, temos só the right nights.
às vezes apatecia viajar no tempo,
reaparecer numa fila dos correios
ansiosos pela espera da nossa vez,
comprar selos,
inundar os lábios de cola,
fazer da carta a semiótica de uma reencontrada pureza
voltar são e salvo à criança que fomos (infância à mesa)
um cavaleiro reinvestido
da távola redonda que resta:
escola dos sentimentos altos,
gestos elevados, carácter nobre.
deixar para trás este futuro que anuncia 'e.ouro'
mas nunca deixa de ser moderado cobre.

tinta, papel, dedos,
coração em risco de comoção
escrever como dantes, sem medos,
arder de amor no frio
e morrer branco e puro
em cada ínfima inundação.

01 abril 2008

retrovisor: dois clássicos do jardim & um obrigado







um obrigado por terem feito a diferença, nestes 18 meses.
como não sei dizer de forma eloquente, deixo quem sabe 'cantar por mim'. todos vós foram, em certos dias, através do vosso feedback, dos e.mails, dos comentários (mesmo quando não respondo..)

my light.

50.000

cinquenta mil.
- já falta pouco para apanhar o pedro mexia :-)!

flores para todos vós, que por aqui vão passando.

sois demasiado gentis, é como vos digo.


muito grato.

estação de inverno: 22-ª estação




hoje, a vigésima segunda estação de inverno.


as cicatrizes interiores de teresa rita lopes, numa elegia comovente por todas as mães.

e os junior boys, mostrando que electrónica e melancolia podem ser declinações de um mesmo verbo.


já disponíveis todos os 21 podcasts das estações de inverno emitidas até à data.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]