31 outubro 2010


por variadíssimas e bem precisas razões que não importa aqui abordar, 2010 foi ano de um furioso regresso aos livros, às leituras. foram, têm sido, estão a ser, dezenas de títulos, despachados, devorados, deglutidos, saboreados, cuspidos, regurgitados, processados, sublimados - ou tão-só simplesmente lidos. pelo menos duas mãos destes livros são obras portentosas, já aqui referidas ou a referir, quando, lá mais para a frente, fizermos os balanços do ano.

por ora, interessa dizer coisas simples. por exemplo: o livro que mais me marcou terá sido 'pergunta ao pó' / 'ask the dust', de john fante, edições ahab.

uma pequena nota de rodapé para dizer que esta pequena editora do porto, as edições ahab, é o sonho de qualquer bibliófilo. tem um catálogo, pequeno e em suave progressão, como que a acompanhar o ritmo dos seus leitores fiéis, que é uma maravilha de bom-gosto editorial e de atenção a autores e obras de culto tão merecido como subterrâneo, enfim, um prazer precioso em tempos de carestias várias.

ora, qual é o meu espanto, quando ontem, numa pequena deambulação por umas livrarias, dou de caras, sem o saber, com a recentíssima publicação de mais um livrinho do senhor john fante.

chama-se o livro: 'a primavera há-de chegar, bandini'. e, para quem leu 'pergunta ao pó', para quem conhecer já esse arturo bandini, comovente e bigger than life personagem e alter-ego do autor, há-de perceber o riso aberto de contentamento que me inundou o rosto. como quando reencontramos um amigo perdido e do qual morremos de saudades; como quando encontramos o rosto de quem amamos; como quando nos dizem: 'a primavera há-de chegar, também para ti!' - e sentimos que o querem mesmo dizer. e que o querem mesmo dizer a nós. e que acreditam mesmo no que estão a dizer.

o título deste livro é uma pequena sinfonia poética. e a tradução foi feita, decerto com esmero e amor, por rui pires cabral - um dos nossos poetas contemporâneos preferidos, como saberão os mais atentos a estas nossas 'canções de inverno'.

editora ahab e john fante: como dizer o que quero dizer? obrigado!


david sylvian, eterno gentleman taking polaroids, aqui no início dos golden eighties, ao leme dos seus japan. 'nightporter' é o título, poético, lindo, para uma canção que é, diz diz diz, beleza pura. o look - glamour tão new age. as palavras, diz diz diz, lentas, lânguidas, líquidas. a melodia minimal, quase infantil, directa à pele que nos traz colados por debaixo. diz diz diz. disse.

lenga-lenga insana e um rio-mar, feérico e nocturno, a crepitar.

30 outubro 2010



meu coração ou
estúpida bomba
de deflagração

inverno dentro
inverno fora
e outra que fora
a vida
e outra que fora
a estação

ou tu,
febril e divina,
minha quieta
inquietação.

28 outubro 2010


no dia em que regressa a lisboa a banda que um dia foi simplesmente 'a melhor banda pós-tudo' aqui fica a homenagem ao senhor stuart staples e aos seus bravos e resistentes rapazes através de um videozinho que tem tudo o que é preciso dizer sobre uma canção que conjuga a noite que cai sobre os amantes essa recorrente ilustração gráfica no entanto sempre aquém do que alguém pretende exactamente dizer falar sempre de daniel auteill esse actor da nossa predilecção ou da luminosa beleza da vanessa paradis a senhora johnny depp há longos anos aqui um sim um casal deus meu made in heaven com toda e inteira propriedade o preto e branco é de facto belo como se entre as cores exteriores do cenário e as cores interiores das personagens existisse aquela osmose triste de quando os cinzentos e os negros assumem as rédeas e começam a tingir tudo aquilo em que tocamos agora falo eu e entra assim uma antoniana figura de estilo através destes golpes e contra-golpes com que massacro desamarro reivento a língua em que escrevo eu o daniel a vanessa como tu aí desse exacto lado precisamos de menos espartilhos e de mais especiarias em vez de palavras fechadas fazer desmaterializar a tristeza e reduzi-la a um dna que temos e que não admitimos ter os tindersticks tem a ver o quê com isto exactamente podemos perguntar tu também e ela e ele que ali em cima têm ainda medo de nos olhar nos olhos sabendo que nós somos o espelho deles tão reais e tão fragilmente irreais como todas as ideias soltas que se soltam das grilhetas convencionais neste arremedo de texto e o que é outono pergunta-me o herberto talvez o hotel de la gare como uma visão a epifania que afinal trazemos em nós e aqui é al berto o que quer dizer que és tu outra vez que me saltas ao caminho que me assaltas os sentidos tudo é feérie réverie santas padroeiras dos franceses esclarecidos e entretanto todos sabemos que o orçamento teremos papa fumo branco mesmo se por entre fachadas a ruir e o cheiro amargo de todos os fins-de-festa teremos orçamento graças a uma provável abstenção e reparas que é tal e qual como na vida que vamos levando graças a nossa abstenção essa espécie videirinha de arbusto que cobre o nosso próprio chão escondendo a beleza que nunca despontará ou então sim doutor cem por cento e o resto é esta melancolia cavernícola e ao mesmo tempo digital e esta fome e esta sede e esta estuporada e musical forma de escrever que é como tudo mera poeira cósmica lixo ensimesmado à procura de mundo e eu e eu e eu e eu e tu e tu lá dentro tão lá dentro a sonhar a sonhar-te a sonhar-me
dra. house, ao jardim das amoreiras

a 'dra. cem por cento' acabou a consulta com as seguintes palavras:
- quer um bom conselho? saia daqui e vá tomar um copo de vinho, homem!

e eu lá fui. afinal, não é por acaso que esta senhora tem como cognome 'dra. cem por cento'.

estava bem bom o dito cujo. não era um tinto de estalo, mas ele há dias em que um bom whisky sour também faz verdadeiros milagres. então quando é com receita médica, nem vos conto..

27 outubro 2010



à hora de almoço, na rua dos soeiros,
por entre os carros em marcha lenta,
frugais nos alimentos para o corpo,
exigentes nas palavras e nos sonhos.
i.pod era para mim palavra nova
tal como essoutra, de brincar: i.trip,
anglicismos hoje em dia universais.
os minutos cronometrados
na marcha devastadora que só nós sabíamos,
os atropelos de mãos e lábios e tudo,
um inverno improvável lá fora,
como improvável era aquele estar ali,
vagabundos de coração ao alto,
irmanados pela música do jens,
de bacharach e david
- fools for love, todos nós.

por estes dias, os mais distraídos acordaram para a existência de um grande fotojornalista / repórter de guerra, de nacionalidade portuguesa, por razões funestas e que, com bastante probabilidade, colocaram um ponto final no trabalho de duas décadas a cobrir alguns dos mais perigosos teatros de guerra do mundo.

a partir da áfrica do sul e quase sempre em regime independente, ainda que trabalhando para vários jornais norte-americanos de primeira linha, este rapaz foi descoberto pelo instinto predador de alguns media e pela humana curiosidade de alguns outros meios de comunicação.

ontem, nas páginas do "público", pudemos ler um retrato sobre o percurso do joão. entre coisas normais e coisas menos normais - desde logo a mui peculiar ética de trabalho e personalidade de alguém que vive em zonas de perigo, mas que teme pelo bem-estar da sua família (que vive na áfrica do sul) -, duas referências captaram a minha atenção.

uma frase proferida por um dos quatro membros do grupo de repórteres de guerra que co-fundou, há quase vinte anos, (dois deles, entretanto, já falecidos..), sobre um outro acabado de ser atingido a tiro: "the boys are not untouchable anymore" - cito de memória. exactamente como quando crescemos e tomamos consciência do tempo, da morte, da finitude - efeito irreparável na consciência, a não ser pelos mistérios da fé.

e, principalmente, registei o testemunho de um amigo próximo e colega de profissão: "o joão, onde está, é sempre o preferido das crianças e dos animais."

digam lá: conhecem algum elogio mais bonito? esqueçam a espuma dos dias, por um bocadinho. que diz isto de um homem? talvez que é um Homem.

(vê lá se te pôes bom, pá.)


ou de como o que se afigura como uma limitação, um problema, tem, por vezes, o alquímico poder de nos (fazer) reiventar a nossa própria vida. a beleza de sabermos que, contra as modernas probabilidades e os mais deterministas psico-socio-antropologismos, todos temos a possibilidade de "segundos actos". e de "terceiros". e por aí fora.

um livro de viagens que é um prazer imenso. e, ao mesmo tempo, uma poderosa reflexão.

corram a lê-lo, sim?

25 outubro 2010

love is a foreign language

hoje.
4 anos. quase 2000 posts. tantas estações.

quantas vidas.

..

naquele dia soubemos
que falávamos de coisas distintas
falando do mesmo,
que entre o dito e o entendido existe
um vazio sobre o qual se constrói
o auto-engano indeliberado em que vivemos.

a forma na qual nos apercebemos
já não tem importância nesta altura.
o que realmente desassossega,
o urgente, é saber que não sabemos
quantas vezes não teremos compreendido.


..

um homem vivo levanta a foto
de um homem que já morreu
e, ao contemplá-la, a sua mão tirita
por pensar que, ao morrer, será outra

a mão que, bem viva, tiritará
ao erguer e contemplar a sua foto.
o fractal repetir-se-à até à náusea
a não ser que o olhar do homem

olhe ao contrário e se aferre à imagem
tal como um poeta faz à palavra;
acreditando que ao morrer será outro

o que, vivo, se aferrará à sua
tal como se fosse um salva-vidas
a flutuar no mar dos afogados.

..

o teu corpo ocupa um espaço no tempo.
o teu corpo dura um tempo no espaço.

como um mapa anterior ao território
ou uma palavra que não se pode escrever
somos o meio pelo qual não se justificam
dois fins que são recíprocos em nós.

viver é segurar-se a ambos os extremos,
demorar dois sentidos que ao cruzar-se
restituem o presente até à ausência
desde a qual o teu corpo se desfaz.

..

este poema só é um poema
porque tu me disseste que me amas.
se este poema não fosse um poema
e tu me tivesses dito que me amas
teríamos um problema. assim,
se este poema fosse mesmo um poema
e não me tivesses dito que me amas
a ordem entre os dois não existiria.
poema e amor, tudo se equilibra
quando escrevo que dizes que me amas
exactamente como estes versos
que existem quando dizem que nós
nos amamos neles para além
da troca impossível com a morte.

..

diz-lhe tu. ouvir-te-á com mais atenção.

diz-lhe que assim não vai a lado nenhum,
que chega uma idade em que a ilusão
por conseguir viver como se quer
nem dá para um prato de lentilhas.

que confie na voz da experiência
e concorra a uma vaga de professor:
então já vai ter tempo de escrever
essas coisas que escreve e que ninguém percebe.
e que corte o cabelo, por amor de Deus,
que assim parece um vagabundo
à procura da sua sombra pela noite.
que repare nos filhos do Guillermo.

diz-lhe tu, meu amor. sabes que eu
fico enervado só de pensar nisso.

..

mexes as coxas como se soubesses
que és a herdeira de uma história repetida.
balanças as ancas com a certeza
de quem sabe que a moda
é a primeira coisa a passar de moda.
mas também te perguntas se é só por pena
que o rapaz do balcão te sorri
e achas que a tua vida é só uma ilha
aos olhos distantes dos outros.
certo dia queimaste os teus peluches
só para ver como ardiam com eles
o princípio e o limiar da tua tristeza
,
mas, apesar de tudo,
danças com a energia secreta da pedra,
com um antigo dom de fonte ou lábio.
apesar de ti, mostras o umbigo e ris:
sabes que a poesia também precisa de ti.
..

mesmo em frente à praia do sul,
na Ericeira, puseram uns bancos
onde as pessoas se sentam a ver o mar.
há espuma de gasóleo esta manhã,
e um saco assusta os banhistas
que querem ver nele uma alforreca.
algumas tardes também eu me sento
a enganar-me com corpos que derivam
despojados, afinal, da função
que modelou a forma que confundo.
é então que vislumbro o teu rosto
a rir contra o sol do meio-dia,
escondido atrás do chapéu de palha
que agora nos recorda aquele verão.
diz-me: "vamos. é hora de voltar.".
de repente, nenhum de nós os dois
é o mesmo. a caminho do carro
a nossa felicidade é esse cão
que está a ladrar ao mar desde a beira.

..

(..)
que a vida é exactamente isso:querer apenas medir com um metro
a largura inatingível do desastre.


carlos contreras elvira
in 'matrioshkas', editora arcádia (babel), 2010

24 outubro 2010

22 outubro 2010

21 outubro 2010


a rotina das descontinuidades e a descontinuidade que há nas rotinas são sinais cifrados em que convém reparar. digo eu. por exemplo, esta manhã. na exacta intersecção do alcatrão com o cimento - ambos vincadamente urbanos -, acontece finalmente o encontro que os céus adiavam. ali, por debaixo da luz azul-dourada, junto às escadas de acesso do parking, lá estavam eles: o homenzinho dos cães de laçarote colorido (procurem bem e hão-de encontrá-lo num poema antigo..) e o salvador dali de campolide. aos mais atentos a estes meus escritos, não escapará decerto que falta ainda o bukowski de campolide, para completar o quadro. eu não sei se isto faz alguma espécie de sentido. mas gosto de acreditar que há mundos paralelos - aqui mesmo está um, que me liga a ti que me lês -. nesta outra ordenação do universo, há mundos que se interligam. o pequeno quadro desta manhã é apenas um. como se a grande arte fosse uma irmandade de anjos espalhados pela cidade - wenders em lisboa? does make sense.
às vezes, o paraíso - escreveu a ana luísa amaral. entendo-a tão bem.

ela disse: sou uma cidade esquecida.
ele disse: sou um rio.

ficaram em silêncio à janela
cada um à sua janela
olhando a sua cidade, o seu rio.

ela disse: não sou exactamente uma cidade.
uma cidade é diferente de uma cidade
esquecida.

ele disse: sou um rio exacto.

agora na varanda
cada um na sua varanda
pedindo: um pouco de ar entre nós.

ela disse: escrevo palavras nos muros que pensam em ti.
ele disse: eu corro.

de telefone preso entre o rosto e o ombro
para que ao menos se libertassem as mãos
cada um com as suas mãos libertas.
ela temeu o adeus, disse: sou uma cidade esquecida.
ele riu.

filipa leal
in "A Cidade Líquida e Outras Texturas", Deriva Editores

20 outubro 2010



alpha, 'come from heaven'

à primeira, obra prima. é um disco de uma beleza lancinante. fusão perfeita entre classicismo e modernidade. tem duas canções sublimes - o amor supenso pelo espaço e pelo tempo, como se visto "por ela" e visto "por ele" - que rimam entre si, para além do que possa ser (d)escrito. duas canções que condensam os crooners do século xx e os blips do século xxi. "sometime later" e "somewhere not here" . escutá-las, em repeat contínuo, dá vertigens.. a grande arte é assim: comove, deslumbra, dobra-nos e desdobra-nos. muda-nos para melhor também.

19 outubro 2010

um sonho

esta noite
sonhei que te oferecia
um palco cheio de palmas.

quando te contei,
sussurraste mansamente
ao meu ouvido:

oferece-me antes um vestido..
tecido com saliva.. (mas verdadeira!)
e lágrimas.. (daquelas falsas!)

18 outubro 2010


na semana passada, faleceu o senhor malcolm allison, mítico treinador da equipa acima, campeã nacional, no já longíquo ano de 1981/1982.

verdadeira figura 'bigger than life', teve a arte de conduzir à vitória uma equipa constituída pelos onze bravos leões acima retratados (e mais uns quantos, claro está, que não aparecem nesta foto).

nesses tempos, o sporting tinha na frente de ataque os seguintes jogadores: o letal manuel fernandes, o felino jordão e o mágico antónio oliveira.

passo por cima de equipas maravilhosas do sporting - já nem vou tão longe, por exemplo, às famosas equipas dos anos quarenta e cinquenta, que dominavam o futebol nacional. a mim, bastava-me ter uma equipa que estivesse à altura desta.

trinta anos depois, o sporting é um sonho que teima em não dar certo. falta o quê? génio, qualidade, loucura, emoção, carácter, coragem. um treinador meio-louco e meio-visionário, jogadores bravíssimos, um tridente demolidor, um presidente à altura. nada disto, por si ou em conjunto, garante vitórias. mas a ausência de alguns destes atributos, torna virtualmente impossível o sucesso. então quando falta tudo, estamos mais do que conversados.

..manuel fernandes and he scores!
.. oliveira, oliveira goes on, oliveira - what a player - passes the ball to jordão, oh my God, what a movement!
..and manuel fernandes strikes again, unbelievable, ladies and gentlemen. it seems that the lions from lisbon have done it again!
.. big mal is the man!

o actual sporting é um atentado a tantas e tantas memórias. porque roubarem-nos o nosso amor - qualquer amor - é criminoso.


como uma deusa, passeando pela brisa da tarde*.
(*mário de carvalho)

esta noite sonhei que te oferecia um palco cheio de palmas.
quando te contei, segredaste mansamente ao meu ouvido:
oferece-me antes um vestido.. tecido com saliva e lágrimas.

everybody knows this is homeland.

15 outubro 2010

o teu sorriso ontem vestido,
o teu vestido líquido, quase vertido,
- vertigem de traço bem definido.

o teu rosto e o teu dorso,
o teu gosto e o teu rasto,
- céu de outubro ou pleno agosto?
cadernos andaluzes

IV. alhambra, setembro de 2010

a tabuleta, foi assim que a li (ou tresli):

"ao entrares aqui, esquece as agruras do mundo,
as injustiças do tempo e as desilusões dos homens.
porque este é o verdadeiro palácio, a chave do reino,
intemporal estrela que iluminará os céus dos teus descendentes."

nesses dias largos [como os braços do meu avô],
namorando noites serenas [como o rosto da minha avó],
protegido do mundo, e de mim próprio, [como no quarto da minha tia],
olhando só o futuro risonho [como tu, outrora]

só eu e o tempo, planando neste plano espaço,
semeando luminosas palavras.

umas (as palavras)
e outro (eu ou o tempo? eu ou o espaço?)
à procura de um laço
e de um regaço.

14 outubro 2010

da caça.

num mundo em que os 'head hunters' são quase plenipotenciários demiurgos, que dizer desses e dessas 'heart hunters' que nos saltam ao caminho, que nos assaltam os sonhos?


quando a modernidade mais incendiária bebe no classicismo mais elegante o resultado pode ser assim.

como se jay jay johanson fizesse aqui de michael nyman que faz de mozart que faz de deus que faz de Deus.

porque tudo é tudo, quando visto pelo ângulo certo.

and i used to be..

12 outubro 2010


talvez
esse obscuro objecto de desejo:
o formidável anti-lirismo
dos teus olhos.



lambchop, is a woman

tão bonito, mas tão bonito. tão terno, mas tão terno. tão zen, minimal, que quase parece música de um outro mundo. melódico, cifrado, cheio de palavras que quase não se entendem - pela peculiar utilização da língua inglesa, pelos complexos jogos semânticos.. e, no entanto, é tão fácil perceber que eles falam de jardins. de flores. de coisas assim.
e sim, 'is a woman'. ou 'is a man'. porque nada mais importa, tantas vezes. demasiadas vezes. ou então tão demasiadas poucas vezes (num português talvez  imperfeito, mas que roça a perfeição do que queremos dizer e não sabemos exactamente como dizer).

11 outubro 2010

talvez a imortalidade também seja isto:
fechar um livro, embriagado ainda
pelas palavras-bisturi,
e sentir os braços tremer,
a pele arrepiar-se,
o sangue a carburar em silêncio e fúria.

a transfusão de sangue entre autores e leitores
não é, em certas tardes, bonita de se ver.
mas, como junto a tantas camas de hospital,
há operações simplesmente necessárias.

nunca pensei aproximar médicos e poetas,
num poema.
mas uns e outros têm, à sua maneira,
o dom da vida.

faltam aspas, claro,
mas não é o meu melhor dote
exercer a pontuação mais exacta.

os médicos juram defender a vida,
discutindo acesamente a morte consentida
- basta ler jornais para o sabermos.

os poetas não pensam nisso, aposto.
mas deviam.
também eles prolongam certas vidas,
para além da última oportunidade.

sem juramento ético,
alegam o quê estes miseráveis?

a grande irmandade do desespero
não aceita desistências.

10 outubro 2010

ou de como a poesia é uma aproximação in progress ao silêncio. ou de como a poesia é uma espécie de cinema-verité da linguagem.

09 outubro 2010

08 outubro 2010


"so now, i would like to say: people can change anything they want to. and that means everything in the world. people are running around, following their little tracks, i am one of them. but we all got to stop just following our own little mousetrail. people can do anything. this is something i'm beginning to learn. people are out there doing bad things to each other. it's because they're being dehumanized. it's time to take the humanity back in the center of the ring, and follow that for a time. greed, it ain't going anywhere. they should have that on a big billboard across times square. without people, you're nothing. that's my spiel."

joe strummer, leading man of the clash

(com a devida gratidão e um abraço ao amigo nuno guronsan, do blog espaço cinzento, onde encontrei esta espécie de 'credo').

..

e andamos nós a ousar a poesia, quando a prosa é tão bela. e tão urgente.

cuidem-se. e cuidem uns dos outros.

cadernos andaluzes



III. la posada de manolo

no topo do mundo, segredavas-me ao ouvido,
instalados nesse maravilhoso pátio
de onde avistávamos o mundo, inteirinho,
como se pela primeira vez, outra vez.
o sol caía sobre as nossas cabeças despenteadas,
o ar próprio da estação inundava-nos daquele
estranho júbilo a que, em dias serenos,
bem podemos chamar paz.
no topo do mundo, como outrora decerto,
os limites do mundo eram automáticos,
o que a vista alcançava,
nem mais, nem menos, nem diferente.
a justa medida é uma ciência, e das finas,
como esse espinhoso caminho
que é sempre o do equilíbrio
(como desenhar os contornos de algo assim abstracto?).
no topo do mundo, existiam cores, aromas,
todos os sentidos fundidos a frio e a quente
como se alta cozinha molecular e sápida cozinha caseira
se encontrassem finalmente, num nec plus ultra improvável.
do prédio ao lado, coisas da vida que nunca entenderemos,
saía o som perfeito de uma juvenil orquestra sinfónica
ensaiando a preceito alguma grande gala.
star wars, indiana jones, bandas sonoras cinéfilas assim,
inundavam ruas, praças, veredas - até o topo do mundo
que neste preciso momento recupero e reivento
para fugaz deleite de dois ou três leitores.
em toledo, na posada de manolo,
recebi uma lição nada menosprezável:
até às cidades feias deves dar a tua oportunidade.
em toledo, no topo do mundo,
tudo isto aconteceu de verdade,
como se este poema enxuto de metáforas
fosse um quase relato da vida tal e qual.
tudo isto aconteceu. ou quase tudo.
não me segredaste ao ouvido,
porque não estavas lá.
sózinho, no topo do mundo,
- que triste e certeiro remate para um poema.

ou para uma vida.

07 outubro 2010


ontem, na rtp2 (ainda se chama assim? nunca sabemos neste mundo veloz e puramente transitório..), uma entrevista de circunstância com lloyd cole, alguém de quem sempre gostámos muito (como autor/intérprete de canções e também como pessoa), com base no que fomos espreitando em entrevistas avulsas, ao longo dos anos, e também com base noutro tanto que fomos simplesmente intuindo.

está, por estes dias, em portugal, com o seu "small ensemble", mostrando o mais recente disco ("broken record") e, apostamos, revisitando aquelas duas dúzias de superlativas canções que nos ofereceu, desde os meados dos anos oitenta.

a entrevista foi, como quase sempre acontece nestas peças - encomendadas para dar ideia de que há preocupações com essa coisa fugidia e sempre em movimento que é a cultura -, desenxaibida, insípida, a roçar o banal. como quando temos em frente dos olhos uma coisa preciosa, mas não conseguimos (ou não estamos para) dar por isso. foi o que me ocorreu.

no entanto, já no finalzinho da pequena conversa, o rapaz cole deixou-nos duas coisas importantes.

uma, quando disse que "vocês não sabem o que é andar por esta cidade, lisboa, querer usufruir simplesmente, e ter a cabeça o tempo todo preenchida por uma canção.. às vezes, quem me dera não escrever canções.". não sei se percebem exactamente o que ele quer dizer. eu, infelizmente?, acho que percebo..

a outra, a segunda coisa, foi a resposta à pergunta: "lloyd cole, ao fim destes anos todos, pode dizer-se que está em paz?". resposta: "não diria que estou em paz (comigo próprio). conhece aquela expressão.. cessar-fogo? é isso.." (sorriso suave).

enfim, pequenos apontamentos, próprios de um final de dia. ou então era apenas a minha velha amiga, a semiótica, a dar sinal de si.

..

baby, you're too well-read.
baby, you're too well-spoken.
baby, you're far too clean.
baby, you're too pristine.
when i cry, do you feel anything?

- said the mirror that evening.

claro que, olhando para este blog, desde sempre a música guiou os meus passos. a música, entre todas as artes, é aquela com que é possível constuir uma identificação mais instantânea, menos processada. e, ao mesmo tempo, permite-nos uma adesão física e emocional e cerebral - ao mesmo tempo.

ao longo dos tempos, entre as centenas de bandas e cantores que admiro, existiram ciclos especiais, fases em que um determinado artista, uma banda, se tornou uma espécie de alter-ego, um outro eu, de certa maneira.

não admira, portanto, que tenham existido, à vez ou em simultâneo, o joão dylan. o joão cohen. o joão drake. o joão cave. o joão cale. o joão buckley. o joão cole.

contudo, alguns destes alter-egos assumiram, por vezes, uma força muito grande, ali, exactamente ali, onde se encontram o deslumbramento estético e a dimensão emocional / ética (sem abusar da força da palavra).

neste sub-grupo de personas minhas, podemos encontrar algumas referências óbvias: o joão violent femme, o joão smith, o joão caetano (ou joão veloso..), o celebérrimo (modéstia, rapaz!) joão blake. todos estes foram desmultiplicações desta pessoa que sou e/ou das pessoas que fui sendo.

hesito entre o qualificativo a atribuir aos rapazes ali de cima. as electrónicas subtis, os bleeps elegantes, os loops sofisticados, o bom gosto lento e lânguido, a memória dos crooners mais românticos, a forma de mostrar ao mundo que é possível fundir, a quente, modernidade e classicismo - tudo isto encontramos na música, nas canções, dos junior boys. é deles que falamos e desta nossa pequena, mas fiel, paixão, ao longos dos anos, pelas estupendas canções que vão partilhando com o mundo.

não admira, portanto, que me ocorra a expressão: joão, aka junior boy. não é a mais conseguida formalmente, concedo. mas é inteira na propriedade com que se me cola à pele (interior).

rapazes: às vezes é bom nunca se passar a senior. e é bem verdade que i'm no kind of man, when i'me here with you..
esta manhãzinha, cruzei-me, mais uma vez, com o 'bukowski de campolide'.
pergunto-me, vezes sem conta, com quem se terá ele cruzado, quando se cruza comigo? provavelmente with nobody.

06 outubro 2010


como quando lemos algo que não se parece com nada que tenhamos lido antes.
como quando conhecemos alguém que não se parece com ninguém que tenhamos conhecido antes.
como quando nos sentimos alguém que não se parece com nada daquilo que fomos antes.


'il pleure dans mon coeur comme il pleut sur la ville'

paul verlaine

passar o dia às voltas com 'morte na pérsia', livro de viagem que é bem mais do que isso, escrito por annemarie schwarzenbach, nos anos trinta.

tocante, naif, desesperado, melancólico, negro, livre, ensimesmado, terno, assustador, desolado.

razão tinham os 'bossanovistas': tristeza não tem fim, felicidade sim.

ou de como a pérsia é lisboa, oitenta anos depois.

05 outubro 2010



to each one of us its own kind of republic.

04 outubro 2010

esquecer - diz ele

muita gente pergunta-me:
porque escreves tanto?
- por acaso alguém se lembra
de perguntar a outro alguém:
porque respiras?

muita gente pergunta-me:
porque lês tanto?
- por acaso alguém se lembra
de perguntar a outro alguém:
porque é que tens necessidade de afecto?

muita gente pergunta-me:
porque vives assim, recluso?
- por acaso alguém se lembra
de perguntar a outro alguém:
porque não praticas mais a dor?

ontem, li bukowski, outra vez.
amén.





the divine comedy, a short album about love

deste disco bem se poderá dizer que o amor está aqui todo. ou porventura que estes 32-minutos-32, na versão original de 7-canções-7 deste disco, são simplesmente dos mais perfeitos da música popular moderna. ou ambas as coisas.
em 1997, neil hannon e a sua rapaziada, editam o que viria a ser considerado um clássico absoluto da pop mais orquestral, de finais do século XX.
a obra de scott walker, a memória de tim hardin, e toda a herança dos mais finos escritores de canções, combinadas de forma arrebatada.
um disco sublime, a roçar a perfeição pop - whatever it means.

03 outubro 2010



o domingo era uma coisa pequena
- uma coisa tão pequena
que cabia inteirinha nos teus olhos

eugénio de andrade

(como esta minha ideia louca, lenta, linda
de te fazer feliz
por pura osmose semântica)

01 outubro 2010

Billie Holiday, The Tiffany Club, Los Angeles, 1951 - Bob Willoughby


como esta minha ideia louca
de te fazer feliz
por pura osmose semântica.

cadernos andaluzes


II. coitadinho dele

adoro a vida que tenho, não me esqueço de o dizer a mim própria, a cada manhã que Deus me concede. bem sei que sou pouco exigente, para os dias que correm. uma velha pateta, sofrida, pobremente vestida - decerto que é assim que me retratam, virando costas com a displicência e a alegria que a juventude, a beleza física, o dinheirito no bolso, normalmente trazem consigo. quem os censura? não eu. não eu. todos os dias carrego comigo, como esta cidade que me viu nascer, viver e onde provavelmente morrerei, a memória dos dias de antigamente. como quando, a partir desta cidade, os mouros ou lá o que eram, dominavam parte importante do que hoje é este país. provavelmente tenho sangue deles, talvez sim. nunca estudei, não sei explicar estas coisas, o ar torrado que os rapazes, em nova, diziam que eu tinha. esplendor (aprendi com um senhor, no outro dia, esta palavra) - ou não será esplendor sentirmo-nos jovens e amadas pelos rapazes da terra? cada qual sabe de si, mas, para mim, isso foi o melhor que tive, até hoje. agora a vida é outra, num rame-rame próprio dos velhos, dos que não contam para as contas. graças a Deus que o tino ainda ficou aqui na cabecinha. e é por isso, se querem saber, que ainda me mantenho viva. todos os dias, à força de pernas e braços, desço do bairro e instalo-me nas ruas mais movimentadas, onde vendo os chocolates, os rebuçados, os doces, que turistas (muitos) e companheiros de luta (poucos) me vão comprando. no dia em que parar, não duro duas estações, é como digo. a sorte de ter uma ocupação, a sorte de ter o que fazer, e o dinheirinho que sempre ajuda a manter a casa arrumada, uma roupita limpa, a pôr comida na mesa. coisas que quem me compra os doces provavelmente não entenderá, mas também para que é que seria preciso que entendessem, bem vistas as coisas? cada um na sua, aprendi com a senhora minha mãe (Deus a guarde, pobrezinha), que uns nascem para serem poucochinho, mas que talvez haja uma razão para isso. cala-te, mulher, que sabes tu da vida? tantas vezes o teu pai (Deus o guarde, pobrezinho) te deu nas mãos, por meteres o bedelho onde não és, nem nunca foste, chamada. cala-te, mulher. adoro a vida que tenho, já vos disse? podia ser melhor, claro que sim. para outros, mas não para mim. gosto de me levantar bem cedo, de cruzar as ruas com os turistas que querem ver o palácio em sentido contrário. não há lá nada, já morreu tudo, mas querem ver, dizem que é um monumento importante. não sei, nunca estudei, mal sei ler. dizem que sim, que é, e eu acredito. levanto-me cedo, desço do bairro, dou uns dedos de conversa a quem calha, monto a tenda devagarinho, numa sombra que dê jeito e traga gente, e sigo o dia, vendendo o que posso. uns euros aqui, uns euros ali, coisa pouca, mas honesta, como aprendi com quem já não está cá (Deus guarde as minhas tias e o meu homem, pobrezinhos). hoje, vi um rapaz a olhar para mim, tão triste, que nem queiram saber. coitadinho dele. apesar de estrangeiro, ninguém merece tanta tristeza. uma velha tonta, até ao fim, é o que é.