30 abril 2009
29 abril 2009
vens trabalhar, mãos nos bolsos, ar ligeiramente blasé (é assim que se escreve?), a rotina do conforto e o conforto da rotina, coisas da vida moderna em registo ligeiramente despreocupado. vinte minutos de carro, sempre de rádio ligado (que a música é o teu cigarro matinal), lugar na garagem, tranquilidade urbana na tua célula automobilizada, o mundo todo lá fora, café porque sim, café porque não, cumprimentas quem passa, o sporting já ficou lá atrás, discutido acesamente em torno do teu frugal pequeno-almoço com os companheiros de balcão, no café de bairro, um leve fluir (a reunião importante até foi desmarcada, cool my man), tudo é suavidade acetinada.
de repente. de repente, do teu lado esquerdo, enquanto caminhas, reparas que na longa parede de grafitis, há qualquer coisa nova. páras e lês. uma homenagem póstuma a um rapaz que morreu cedo e que adivinhas ter sido um dos deles. escreves 'que adivinhas ser', apagas, reescreves 'que adivinhas ter sido', e neste jogo semântico cabe todo a angústia humana. segues o discurso, apenas um pouco mais ensimesmado e dobrado sobre ti próprio, dizias que era uma homenagem. um fabuloso grafiti onde, do céu, o rapaz homenageado sopra e desenha nuvens branquíssimas contra um azulíssimo céu. dos lados, nos cantos inferiores, uns escritos quase em verso, prosa naif?, emoções à solta. sentes que o rapaz foi amado, respeitado, admirado, que deixou saudades fundas e amigos, talvez um amor para a eternidade. quem pode saber? apenas podes imaginar. impossível não sentir nada. por isso, chegas ao escritório e, depois do expediente matinal (mails, telefonemas e pouco mais), sentas-te a tentar escrevinhar qualquer coisa. as palavras atropelam-se, atropelam-te.. a metalinguagem, o inter-texto, coisas assim intrometem-se, estás aqui estás a tropeçar na tua amada semiótica.
voltas atrás, recuperas a narrativa. do lado de cá, do teu lado direito, enquanto caminhas, está agora um homem idoso, de cabelo cinzento e desgrenhado, com uma tez morena (própria da rua, dizes para contigo). sentado, agachado sob os arcos de um edifício, este homem pinta. um sem-abrigo que passa o tempo a pintar. ao seu lado, num pobre saco de plástico, adivinhas as formas de uns tubos com tinta, uns poucos pincéis, cartões que servirão de tela. tentas espreitar - mas não nasceste para espreitar, bem o sabes - os motivos que estão a ser pintados. parece-te uma pintura naturalista, paisagens, motivos urbanos, não percebes bem. o que percebes é que são decerto pontos de fuga, para ele e para ti. um homem a preto e branco que pinta quadrinhos a cor (que bela personagem para um conto, melhor pensar assim que no romance que prometeste a ti próprio e que, temes bem, nunca sairá das tuas cogitações)..
a vida é assim. entre a não-narrativa dos gestos que se repetem, morfina para a dor da dúvida, panaceia para o sentido que não se encontra em lado nenhum, e os acasos cheios de significado que explodem a todo o tempo, a teu lado, quando não são granadas de deflagração desfasada que, algum tempo depois, fazem o seu caminho de destruição nas tuas entranhas. ninguém as vê, ninguém as sente, só tu. mas isso sabes desde o berço mais tenro (sós contra o mundo, sós no mundo). isso tu sabes bem, mas - diabos - é como se todos os dias começasse tudo outra vez e nunca terminasse esse bailado das coisas metafóricas ('meu peito feito campo de batalha', não é zé mário?). e aqui está, a grande dama, a tua própria semiótica, anunciada umas linhas atrás, em todo o seu secreto esplendor. aqui está ela.
é assim. és um prosador do caraças. um caçador do caraças. um tipo porreiro, mata-borrão das dores do mundo, um turista acidental passeando nada suavemente pelas brisas da tarde, da manhã, da noite, da vida. escapa-te a razão para tal, mas alguma existirá. ou então não. e neste não (a palavra mais terrível, lá dizia o outro mestre da língua que te calhou em pátria) cabe toda a impossibilidade do mundo.
remexes nas algibeiras. olhas em volta, a tua mesa de trabalho, os papéis desorganizados, os caixotes por abrir, as paredes que lembram outros tempos, com os seus quadros cheios de referências passadas. procuras o futuro. e procuras um analgésico. és furioso, és violento, és rebelde, és um rapaz já pouco rapaz, mergulhado no inverno até ao mais ínfimo dos teus cabelos. esta frase saíu de onde? rais'parta, saiu de ti, sabes bem, não brinques. essa frase era uma espécie de desvio (o 'detour', do filme de jacques tourneur, fase americana - as coisas que tu sabes e que não servem para nada, davam um filme triste), evitavas, no fundo do fundo, escrever a resposta que sabes de cor: onde está o analgésico, porra? onde está o futuro, raios?
no quadro a cores do homem a preto e branco, um dia desenhado na mente fervilhante de um rapaz que grafitava paredes vazias, inventado pela memória de alguém, saído de ti próprio. é este o mistério da escrita. e da vida. tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é
fa(r)do.
facto.
haja saúde.
(joão césar monteiro, se estiveres aí em cima, dá um abraço meu a esse rapaz que os deuses cedo levaram. devia ser um tipo à maneira, para merecer aquela homenagem que hoje me saiu ao caminho e me dobrou em quatro.)
de repente. de repente, do teu lado esquerdo, enquanto caminhas, reparas que na longa parede de grafitis, há qualquer coisa nova. páras e lês. uma homenagem póstuma a um rapaz que morreu cedo e que adivinhas ter sido um dos deles. escreves 'que adivinhas ser', apagas, reescreves 'que adivinhas ter sido', e neste jogo semântico cabe todo a angústia humana. segues o discurso, apenas um pouco mais ensimesmado e dobrado sobre ti próprio, dizias que era uma homenagem. um fabuloso grafiti onde, do céu, o rapaz homenageado sopra e desenha nuvens branquíssimas contra um azulíssimo céu. dos lados, nos cantos inferiores, uns escritos quase em verso, prosa naif?, emoções à solta. sentes que o rapaz foi amado, respeitado, admirado, que deixou saudades fundas e amigos, talvez um amor para a eternidade. quem pode saber? apenas podes imaginar. impossível não sentir nada. por isso, chegas ao escritório e, depois do expediente matinal (mails, telefonemas e pouco mais), sentas-te a tentar escrevinhar qualquer coisa. as palavras atropelam-se, atropelam-te.. a metalinguagem, o inter-texto, coisas assim intrometem-se, estás aqui estás a tropeçar na tua amada semiótica.
voltas atrás, recuperas a narrativa. do lado de cá, do teu lado direito, enquanto caminhas, está agora um homem idoso, de cabelo cinzento e desgrenhado, com uma tez morena (própria da rua, dizes para contigo). sentado, agachado sob os arcos de um edifício, este homem pinta. um sem-abrigo que passa o tempo a pintar. ao seu lado, num pobre saco de plástico, adivinhas as formas de uns tubos com tinta, uns poucos pincéis, cartões que servirão de tela. tentas espreitar - mas não nasceste para espreitar, bem o sabes - os motivos que estão a ser pintados. parece-te uma pintura naturalista, paisagens, motivos urbanos, não percebes bem. o que percebes é que são decerto pontos de fuga, para ele e para ti. um homem a preto e branco que pinta quadrinhos a cor (que bela personagem para um conto, melhor pensar assim que no romance que prometeste a ti próprio e que, temes bem, nunca sairá das tuas cogitações)..
a vida é assim. entre a não-narrativa dos gestos que se repetem, morfina para a dor da dúvida, panaceia para o sentido que não se encontra em lado nenhum, e os acasos cheios de significado que explodem a todo o tempo, a teu lado, quando não são granadas de deflagração desfasada que, algum tempo depois, fazem o seu caminho de destruição nas tuas entranhas. ninguém as vê, ninguém as sente, só tu. mas isso sabes desde o berço mais tenro (sós contra o mundo, sós no mundo). isso tu sabes bem, mas - diabos - é como se todos os dias começasse tudo outra vez e nunca terminasse esse bailado das coisas metafóricas ('meu peito feito campo de batalha', não é zé mário?). e aqui está, a grande dama, a tua própria semiótica, anunciada umas linhas atrás, em todo o seu secreto esplendor. aqui está ela.
é assim. és um prosador do caraças. um caçador do caraças. um tipo porreiro, mata-borrão das dores do mundo, um turista acidental passeando nada suavemente pelas brisas da tarde, da manhã, da noite, da vida. escapa-te a razão para tal, mas alguma existirá. ou então não. e neste não (a palavra mais terrível, lá dizia o outro mestre da língua que te calhou em pátria) cabe toda a impossibilidade do mundo.
remexes nas algibeiras. olhas em volta, a tua mesa de trabalho, os papéis desorganizados, os caixotes por abrir, as paredes que lembram outros tempos, com os seus quadros cheios de referências passadas. procuras o futuro. e procuras um analgésico. és furioso, és violento, és rebelde, és um rapaz já pouco rapaz, mergulhado no inverno até ao mais ínfimo dos teus cabelos. esta frase saíu de onde? rais'parta, saiu de ti, sabes bem, não brinques. essa frase era uma espécie de desvio (o 'detour', do filme de jacques tourneur, fase americana - as coisas que tu sabes e que não servem para nada, davam um filme triste), evitavas, no fundo do fundo, escrever a resposta que sabes de cor: onde está o analgésico, porra? onde está o futuro, raios?
no quadro a cores do homem a preto e branco, um dia desenhado na mente fervilhante de um rapaz que grafitava paredes vazias, inventado pela memória de alguém, saído de ti próprio. é este o mistério da escrita. e da vida. tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é
fa(r)do.
facto.
haja saúde.
(joão césar monteiro, se estiveres aí em cima, dá um abraço meu a esse rapaz que os deuses cedo levaram. devia ser um tipo à maneira, para merecer aquela homenagem que hoje me saiu ao caminho e me dobrou em quatro.)
de vez em quando, há que meter mãos à obra, sujar os punhos de renda, não ter medo do pó e das revelações, saber relativizar as surpresas que sempre surgem nos cantos mais recônditos da casa, ter mão nos atropelos da memória, ter cuidado com a arte do discernimento, usar fato-macaco na versão 'somos todos humanos', utilizar moderação no ímpeto revisionista, mas avançar na lida da casa. so be it.
28 abril 2009
estação de inverno: 65ª estação
hoje, terça-feira, a sexagésima quinta estação de inverno.
o retorno à raíz matricial da estação, com a revisitação da poesia de ana luísa amaral, a ilustríssima convidada da primeira edição da estação de inverno, em outubro de 2007. um pequenino dia de festa, que nesta casa cultiva-se a memória e honra-se a gratidão. desta vez, andaremos exclusivamente a navegar por entre os afectos torrenciais que estão a montante e a juzante - e entre uma coisa e outra, bem entendido - do livro 'coisas de partir' (editora gótica).
quanto a canções, antes do habitual mergulho nas correntes crepusculares, lugar um pequeno travelling por autores e projectos que, em língua portuguesa e a partir das margens, cultivam um certo 'desfasamento' face ao 'maistream', ao mesmo tempo que reconhecem a incontornável importância dessa coisa que são as palavras: a semi-electrónica àspera de bernardo devlin; o lirismo de rosto tradicional de j.p. simões; a poesia pungente de a naifa; a distopia futurista de o maquinista; e o cantautorismo sensível, à moda de samuel úria..
[disponíveis todos os podcasts de emissões anteriores.. aqui!]
[rádio zero: terças: 23h-24h; repete sábados: 14h-15h]
[ruc: madrugadas de domingo para segunda: 3h-4h]
27 abril 2009
26 abril 2009
25 abril 2009
como um arquitecto, voltando, anos depois, à mais magnífica catedral alguma vez eregida, ele comove-se, a partir de uma discreta porta lateral, com o que vê nos rostos - espelhos reveladores dessa metafísica particular que é a transcendência.
quer furiosamente acreditar que foi apenas instrumento providencial. mas nele ribombam tambores inclementes - todas as pedras que, anos atrás, havia usado. planos plenos de física improvável. técnicas ancestrais. skills e truques aprendidos em livros mil, de academias ilustres. todas as pedras, não menos.
e, por entre o desejo de transcendência e a infernal consciência das pedras e de si, ele - invejoso do arquitecto superior que, lá de cima, oxalá o censure em silêncio, oxalá.. - curva-se sobre si próprio, num esgar que dói só de ver.
sai da catedral, quebrado, sobrevivendo a essa dor de estômago resistente a qualquer almanaque, a qualquer composto químico, mesmo à melhor da melhor literatura. afasta-se em silêncio, tapando os ouvidos e fazendo por esquecer a memória das pedras. de cada pedra. das mãos. de cada dedo.
quer furiosamente acreditar que foi apenas instrumento providencial. mas nele ribombam tambores inclementes - todas as pedras que, anos atrás, havia usado. planos plenos de física improvável. técnicas ancestrais. skills e truques aprendidos em livros mil, de academias ilustres. todas as pedras, não menos.
e, por entre o desejo de transcendência e a infernal consciência das pedras e de si, ele - invejoso do arquitecto superior que, lá de cima, oxalá o censure em silêncio, oxalá.. - curva-se sobre si próprio, num esgar que dói só de ver.
sai da catedral, quebrado, sobrevivendo a essa dor de estômago resistente a qualquer almanaque, a qualquer composto químico, mesmo à melhor da melhor literatura. afasta-se em silêncio, tapando os ouvidos e fazendo por esquecer a memória das pedras. de cada pedra. das mãos. de cada dedo.
'pode matar-se tudo menos a nostalgia do reino'.
capítulo 71, 'rayuela', aliás 'o jogo do mundo', de julio cortázar.
capítulo 71, 'rayuela', aliás 'o jogo do mundo', de julio cortázar.
24 abril 2009
24 de abril
hoje é dia 24 de abril de 1974.
- e, se fosse mesmo, onde estarias tu, meu caro concidadão?
às, vezes, é bom pensarmos nestas coisas. just in case.
ou, como vi escrito algures, em letra impressa, durante a manhã:
'35 de abril sempre!'
feliz 35 anos.
fez-se o que se pode. fez-se muito, numa terra em que tão raramente alguém verdadeiramente sai de casa para fazer o que pode. não mais, mas também não menos do que aquilo que pode.
[nota: este espaço não é apolítico - isso é simplesmente uma construção mental. liberal nos costumes, conservador nos valores, ferozmente personalista e crente no gentlemanship gentil, na nobreza de carácter e na clarividência de espírito - de que lado bate o coração? do certo. é tudo o que vos posso dizer, é tudo o que vos quero dizer.]
- e, se fosse mesmo, onde estarias tu, meu caro concidadão?
às, vezes, é bom pensarmos nestas coisas. just in case.
ou, como vi escrito algures, em letra impressa, durante a manhã:
'35 de abril sempre!'
feliz 35 anos.
fez-se o que se pode. fez-se muito, numa terra em que tão raramente alguém verdadeiramente sai de casa para fazer o que pode. não mais, mas também não menos do que aquilo que pode.
[nota: este espaço não é apolítico - isso é simplesmente uma construção mental. liberal nos costumes, conservador nos valores, ferozmente personalista e crente no gentlemanship gentil, na nobreza de carácter e na clarividência de espírito - de que lado bate o coração? do certo. é tudo o que vos posso dizer, é tudo o que vos quero dizer.]
4 palavras + 1 sentido..?
algo me diz que estas quatro palavras ainda vão fazer sentido. qual é ele? deixo a tarefa para os cartógrafos das estrelas. pelo meu lado, sou apenas um municiador de afectos - por vezes, de factos.
vamos a elas?
humanity
openness
proximity
enthusiasm
e, pronto, à criptografia o que é da criptografia.
vamos a elas?
humanity
openness
proximity
enthusiasm
e, pronto, à criptografia o que é da criptografia.
i started out in search of ordinary things
how much of a tree bends in the wind
i started telling the story without knowing the end
i used to be darker, then i got lighter, then i got dark again
something to be seen was passing over and over me
well it seemed like the routine case at first
with the death of the shadow came a lightness of verse
but the darkest of nights, in truth, still dazzles
and i woke myself until i'm frazzled
i ended up in search of ordinary things
like how can a wave possibly be?
i started running, and the concrete turned to sand
i started running, and things didn't pan out as planned
in case things go poorly and i not return
remember the good things i've done
in case things go poorly and i not return
remember the good things i've done
done me in
bill callahan (aka smog)
[às vezes, como dizer, somos fulminados por uma canção. notem que fulminados é uma palavra composta por aglutinação e, subsequentemente, limada por contracção e, finalmente, polida por interpolação: vem de 'fatalmente' + 'iluminados'..]
23 abril 2009
21 abril 2009
imagino, não poucas vezes, que a vida era outra coisa:
avenidas rasgadas a perder de vista, à espera de noites
que, contravolta e redemoínho, fizessem da série de dias,
e de nós próprios neles, uma coisa exactamente assim,
como na primeira linha deste poema(?), assim bem diferente.
quero dizer, meu menino travesso sem juízo por inteiro:
uma coisa formidável, maravilhosa, uma epifania sem o
protocolo da igreja nem um qualquer desejo de perfeição.
apenas assim, dizia-te: estupenda. digna de um poema sério,
seria outro modo de dizer, talvez mais feliz e mais exacto.
em vez deste arremedo mal amanhado, terias aqui um soneto
esplendoroso e geometricamente cinzelado. ah, claro está,
um senão todavia: não seria eu, nem serias tu, caro leitor,
quem aí e aqui estaríamos. essa é a dúvida fundamental:
antes esta vida videirinha e possível, mas nossa, ou uma
vida fervilhante, vivida por outrem, num quase bilhete-postal?
ganhariam os perfeccionistas? decerto. mais aqueloutro museu.
perderíamos, todavia, o rumo. e tu, mais do que tudo..
e tu, mais do que eu?
estação de inverno: 64ª estação
hoje, terça-feira, a sexagésima quarta estação de inverno.
esta semana, a estação de inverno mergulha nas águas poéticas de carlos luis bessa, mais um representante de uma forma de escrever que, mansa mas sustentadamente, vem marcando a poesia portuguesa na viragem para este novo século. para continuarmos a usar metáforas marítimas, desta poesia e desta poética se pode dizer que, tal como o 'mar de azeite', também estas palavras revelam, sob uma aparente e desencantada placidez, correntes sanguíneas vivas, redemoínhos interiores - um fino e lúcido diário de bordo destes dias de espuma.
usaremos um conjunto avulso de poemas, a partir de três dos seus livros: 'lançam-se os músculos em brutal oficina' (&etc, 2000); 'em trânsito' (&etc, 2003); 'em partes iguais' (assírio & alvim, 2005).
quanto a canções.. o que é que esperam? por entre outras estrelas cintilantes - sim, navegamos com gosto questionável pelos reinos das metáforas -, um destaque pequenino para esse segredo mal guardado: os mercury rev*. uma daquelas bandas para usar sempre no bolsinho das camisas de meia-estação. micro-sinfonias melodramáticas? exercícios de lirismo psicadelista em 'slow motion'? ou só subtil, mas convulsiva, beleza? adivinharam: tudo isto (e o mais que não saberíamos dizer).
porque, como eles* dizem: 'all is one, all is mind, all is lost and you find, all is dream'..
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20 abril 2009
e assim ryan adams, no seu excelso disco 'heartbreaker', mostra como a lição de neil young foi bem aprendida. este rapaz é um aprendiz de feiticeiro que, de vez em quando, se transfigura e bem merece o cajado maior.. como nesta cançãozinha, de sua graça 'call me on your way back home'. um clássico de inverno para todas as estações.
notas soltas .1
por razões facilmente entendíveis, estes dois nomes cruzaram-se com o meu fim-de-semana, na sua vertente mais introspectiva digamos: john cheever (recensão da recente edição portuguesa de parte significativa das suas célebres 'short stories'; artigo sobre a sua esquinada biografia - ambos no 'ípsilon', jornal 'público') e j.g. ballard (obituário, via rádio, algures ao início da madrugada).
do primeiro, apenas conhecia a fama de notável contista; do segundo, conhecia um bocadinho mais, em especial aquela base comum que todos os que nos interessamos por estas coisas dos livros devem saber: a sua biografia atribulada na infância, as adaptações cinematográficas de relevo, as suas quase-distopias-psico-retorcidas.. um dia destes, tentarei dar às vossas obras um bocadinho da atenção que seguramente merecem..
vale a intenção, pelo menos.
17 abril 2009
15 abril 2009
de onde vem esse cansaço ontológico
que arde nas coisas mais incombustíveis?
de onde vem essa chama gasta que desgosta
e engana, imagem de luz sem substância?
de onde chegam todas essas palavras
laças, baças, que colidem e iludem?
de onde saíste tu, emoção desengonçada
e mansa, esfera vazia que esmaga?
de onde vem todo esse deslizar suave
para os braços do abismo mais doce?
de onde vem todo esse torpor,
esse desaguizado interior,
essa fúria inconsequente?
esse espúrio fulgor,
esse ácido rumor,
esse des(armado)amor?
deste desamor?
a propósito de estrelas
não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas
adília lopes
14 abril 2009
hoje à noite, na cinemateca portuguesa, passa o filme 'dead ringers' / 'irmãos inseparáveis', um dos filmes mais perturbantes da minha experiência cinéfila (não gosto de terror, slash movies e afins).
para além de ser uma das obras primas absolutas do senhor david cronenberg, é também o palco negro para uma assombrosa performance de representação por parte de outro senhor: jeremy irons, de sua graça.
nos anos noventa, fui um compulsivo coleccionador de experiências 'cronenberguianas', em particular dos seus filmes dos anos setenta e oitenta.
'dead ringers' foi exactamente o primeiro filme após o ponto de viragem para produções mais ambiciosas, com a caução de estúdios mais importantes e com orçamentos mais significativos, representado pelo célebre 'the fly' / 'a mosca'. contudo, e não obstante gostar de filmes desta segunda fase da sua carreira (como 'madame butterfly' ou 'crash'), é nos seus primeiros anos de cinema (antes ainda, havia realizado pequenos filmes e episódios de séries para televisão) que encontramos, na minha humilde opinião, o seu corpo de obra mais homogéneo:
the fly (1986)
the dead zone (1983)
videodrome (1983)
scanners (1981)
the brood (1979)
fast company (1979)
rabid (1977)
shivers (1975)
em pouco mais do que uma década, david cronenberg assina oito filmes que, como poucos, têm o condão de nos assustar até à medula. com parcos meios e de forma semi-artesanal - dir-se-ia entre a série Z e a série B -, ilustra de forma magistral alguns dos medos contemporâneos mais agudos (da corrupção do corpo às imparáveis pragas por contágio, passando pela ameaça das novas tecnologias sobre a natureza, quebrando irreparavelmente o equilíbrio ancestral).
é um cinema sobre o medo, filosoficamente portentoso quando encena a relação entre corpo/natureza e máquina/artifício, céptico das construções sociais e da firmeza dos valores ditos civilizacionais, ferozmente individualista e com um permanente subtexto sobre a sexualidade humana, enquanto modo de corrupção e enquanto elemento simbólico. sim, um cinema político e metafórico, como, no fundo, grande parte da melhor ficção científica e grande parte do fantástico que vale a pena. mas não é exactamente uma coisa, nem outra. nem tão pouco thriller ou cinema de terror. antes, uma original simbiose de géneros, tornando-o aquilo que é: um sub-sub-género cinematográfico por si mesmo. sinal, em nosso entender, da enorme qualidade autoral de david cronenberg.
se puderem, hoje mais à noite, não percam. 'dead ringers' / 'irmãos inseparáveis' trata dos abismos da alma e desse território interdido e malsão que todos escondemos debaixo do tapete..
estação de inverno: 63ª estação
hoje, terça-feira, a sexagésima terceira estação de inverno.
esta semana, a estação de inverno revisita os seus arquivos e recupera para o palco radiofónico a poesia de carlos de oliveira, notável prosador e admirável poeta da segunda metade do século xx português. partiremos de 'micropaisagem' e 'sobre o lado esquerdo', obras publicadas em meados dos anos sessenta, num portugal, por essa altura, pouco dado a laivos de modernidade. uma poesia que assenta ainda em canônes e influências algo clássicas, mas que assume também um 'subjectivismo' que cremos menos habitual nesses dias. a metafísica pagã(?) e uma certa faceta telúrica e crespuscular desta poesia são alguns dos traços mais fortes.
do lado musical, um muito suave destaque (sob a forma de duas canções para cada um deles) para três discos incontornáveis:
a) em 'sea change', o multifacetado beck assina o seu disco mais acústico e introspectivo, bebendo directamente na fonte de singersongwriters americanos como neil young, gram parsons, david ackles. um disco diferente, cheio de subtilezas e com uma discrição algo invulgar para os standards do seu criador. nós, na estação de inverno, claro!, gostamos muito..
b) os anos passam, mas o rapaz micah p. hinson continua a assombrar-nos. revisitaremos o seu disco de estreia, o irrepetível 'micah p. hinson and the gospel of progress'. outro que bebeu da fonte certa, em menino. e que, apostando num registo de dark-folk-rock, nos leva pela mão por um percurso emocionalmente devastador. um disco para a história, apostamos..
c) finalmente, a revisita que já se impunha a essa pérola pop em língua francesa que é a banda sonora do filme 'as canções de amor', de christophe honoré. nesta, alex beaupain (o mago por detrás destas canções em estado de graça) mostra como é possível beber na tradição pop mais anglo-saxónica e, ao mesmo tempo, dar-lhe um tratamento especial, criando uma identidade musical que, acima de tudo, é um enorme prazer. quem sabe, sabe..
é assim a estação de inverno. directo ao coração, ao cérebro e aos sentidos. porque não há tempo a perder, amigo/as.
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'sobre o lado esquerdo', documentário sobre carlos de oliveira
13 abril 2009
a vós, auto-proclamados génios da música pop, eu vos castigo: tereis que escutar esta canção mil vezes. no final, dir-me-eis se, afinal, esse vosso suposto génio, feito de velocidade, memória-a-falhar e uma tremenda falta de mundo, é verdadeiramente qualquer coisa que mereça de nós mais do que um pequeno rodapé na pequena história. fico à espera.
estranhos ossos para tão estranho ofício..
se as saudades matam, então são sete as vidas.
aqui no estúdio,
este alinhamento, oh boy,
saudades vossas, tantas, oh boy.
a cada um
a sua via-sacra.
esta tem canções mil.
e milhões de palavras.
uma galáxia, um trevo de sete folhas, um secreta alquimia qualquer,
que______________________
e tudo voltar ao branco matricial.
aqui no estúdio,
este alinhamento, oh boy,
saudades vossas, tantas, oh boy.
a cada um
a sua via-sacra.
esta tem canções mil.
e milhões de palavras.
uma galáxia, um trevo de sete folhas, um secreta alquimia qualquer,
que______________________
e tudo voltar ao branco matricial.
em 1972, eric rohmer dirige o último dos seus célebres 'contos morais', um ciclo de 6 filmes (uma curta, uma média e quatro longas metragens) que dão vida a 6 pequenos contos por si próprio escritos na década anterior. 'l'amour l'après-midi' encerra com virtuosismo uma das suas suas famosas 'obras em painel' - desmultiplicação por vários filmes de uma mesma temática, ainda que sem ligação directa entre eles.
nesta série de 'seis contos morais', e já o referimos antes, o realizador procura mostrar os dilemas subjectivos (daí a palavra 'morais'), de consciência, dos seus personagens, os quais se caracterizam em regra por:
a) uma sofisticação elegante e bem articulada dos seus edifícios de valores, como se vivessem para demonstrar a tese que construíram de si para si próprios (em termos de valores e de costumes);
b) uma permanente necessidade de justificação, quer pela reflexão (usando aqui o facto de serem, também em regra, narrados na primeira pessoa - artifício brilhantemente usado para nos mostrar, espectadores, os meandros interiores do personagem principal de cada filme), quer pelo diálogo, quase filosófico, que mantêm com outros personagens;
c) um choque com o mundo, através da introdução contextual de factos novos no seu edifício pessoal bem arrumado e quase inexpugnável, conduzindo-os a uma espécie de 'acid test' em relação às suas próprias convicções mais íntimas e, no caso, colocando em causa, pelo relação directa, a 'praxis' estabelecida como adequada ao seu próprio interesse, tal como definido no permanente diálogo filosófico que consigo mesmos travam;
d) normalmente, esta 'dúvida', de natureza existencial (mas aqui o existencial é essencialmente de origem relacional) é sempre anunciada por alguém do sexo oposto. num mundo heterossexual, é, pois, e em última análise, das escolhas, angústias e vicissitudes amorosas entre homens e mulheres que nascem as fissuras nos edifícios metafóricos que cada personagem principal (e narrador) defende no início de cada filme, para logo perceber que tais fundamentos são muito menos operativos do que julgaria, desde que o destino apresente a oportunidade certa;
e) em termos de desfecho, o discurso (a tese?) é bem mais ambígua - para isso, necessário é ter presente os 6 filmes e as formas específicas como as personagens principais arrumam os (ou são arrumadas pelos..) episódios por si vividos, no tempo do filme.
escrito assim, podemos correr o risco de dar a ideia de que se trata de um cinema também ele de tese, altamente intelectualizado. o curioso é que o resultado final é de uma leveza e fluidez formal que nos atira para os antípodas de um cinema argumentativo. trata-se, antes, de filmes que nos distraem e interpelam; que, ao mesmo tempo, são prazer quase lúdico 'enquanto duram', e fonte de intensa reflexão, 'a posteriori'.
sem dúvida que é um 'cinema da palavra', na medida em que esta é omnipresente, mesmo nos poucos planos mais contemplativos. daqui até falarmos de uma cinema de linguagem e de como esta é decisiva para a construção filosófica da nossa própria pessoa vai um passo curto. portanto, e em suma, através de uma construção meticulosa, sofisticada, dir-se-ia que ferozmente desenhada a regra e esquadro, resulta um cinema em estado de graça, capaz de colocar em película e de nos iluminar certos ângulos mais sombrios da vida moderna que todos bem conhecemos (sujeito ou objecto? escolhemos ou somos mero resultado de um sistema complexo e em larga medida exógeno? justificamos meramente a forma como vivemos? ou vivemos de acordo com um edifício abstracto e anterior à acção? etc.), mas que nem todos sabemos (ou queremos sequer) articular.
que o faça através das relações amorosas eis a chave que, ao mesmo tempo, torna este cinema contingente e profundo. nas relações em geral (maxime, nas relações amorosas), tudo vai e vem, poucas conclusões marmóreas se podem inferir, mas quando temos um padrão (a partir dos painéis da nossa vida, no tempo; tal como os painéis sob a forma de filmes, dentro de um ciclo temático, tal como professado por eric rohmer) alguma coisa começa eventualmente a ganhar nitidez.
que, repetimos, nos dê prazer enquantos o (e nos) pensamos - eis a primeira dádiva genial de eric rohmer. a segunda é a sua incontornável humanidade. a terceira a sua extrema elegância enquanto experiência total (estética, visual, diálogos, 'acting', etc.). um cinema que, em vez de 'bigger than life', parece mesmo 'life itself', é um cinema quê..?
..que merece ser visto. e que merecer ser vivido.
porque eu sou também filho de eric rohmer. é impossível viver para contar, sem incorporar em nós próprios esta majestosa obra de altíssima relojoaria humana.
09 abril 2009
para o senhor joão não se esquecer não
gostaria
gostaria
de vir a ser um grande poeta
e que as pessoas
me pusessem
muitos louros na cabeça
mas aí está
não tenho
gosto suficiente pelos livros
e penso demais em viver
e penso demais nas pessoas
para estar sempre contente
de só escrever vento
boris vian
gostaria
de vir a ser um grande poeta
e que as pessoas
me pusessem
muitos louros na cabeça
mas aí está
não tenho
gosto suficiente pelos livros
e penso demais em viver
e penso demais nas pessoas
para estar sempre contente
de só escrever vento
boris vian
bill callahan
ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço de mais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar
ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem
ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer
ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça
ainda não há camas só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração
antónio josé forte
07 abril 2009
e assim o projecto 'headless heroes', guiado pela voz de alela diane (sim, essa mesmo..), transforma a corrente de electricidade estática de 'just like honey', dos jesus and mary chain, nesta espécie de suave e bucólica modinha folk.
estação de inverno: 62ª estação
imagem: blog 'poesia ilimitada'.
hoje, terça-feira, a sexagésima segunda estação de inverno.
as palavras de *tiago araújo, a partir do seu livrinho 'livre arbítrio', uma das mais recentes edições dessa quase subterrânea editora averno. gente de imaculado bom gosto; gente de coragem, à sua delicada maneira.
musicalmente, um programa algo caótico. energia rock and roll e electrónicas viscerais; e lugar especial para o santo padroeiro do 'groove', esse músico genial que foi o senhor curtis mayfield - outro que teve um sonho.
falsas partidas, tardes que se dissolvem por entre vidraças escuras, a perfeição da arquitectura de inverno a ceder à ferrugem dos dias. como diria o tiago*: já é tarde e, no entanto, ainda é cedo demais..
[disponíveis todos os podcasts de emissões anteriores.. aqui!]
[rádio zero: terças: 23h-24h; repete sábados: 14h-15h]
[ruc: madrugadas de domingo para segunda: 3h-4h]
06 abril 2009
hoje, à saída do almoço, cruzo-me com uma mão-cheia de personagens castiças, aqui do bairro onde trabalho. não é o bairro, dizem que genialmente, erigido pelo gonçalo m. tavares, esse rapaz que nunca se cansa de escrever e editar e ser pai de várias crianças e passear por aí - tantas são as vezes que nos encontramos por essas ruas. é apenas um bairro lisboeta, nem popular nem burguês, antes uma mistura luso qualquer coisa, porventura mais definidora da nossa matriz enquanto nação arraçada e de manga pouco arregaçada. mas, dizia eu, entre esses personagens, um salta-me à vista, pelas incontornáveis semelhanças com o poeta charles bukowski. logo digo, num repente inspirado, para quem me acompanha: 'aqui está o bukowski de campolide'. que graça. agora, horas depois, penso melhor. afinal, quem me garante que outros, noutros tempos, noutras geografias, não se viraram para um personagem curioso de uma certa rua americana e, entredentes, disseram: 'olha, aqui está o baudelaire que merecemos; o sade estadunidense em registo urbano-decadente; o maldoror com cheiro a whisky de segunda e a inteligência de primeira..'. pois é. as palavras, às vezes, matam. pelo ridículo e pela leviana leveza. mea culpa, mea culpa.
em 1988, a inglaterra continuava, como sempre, à espera da 'next big thing', expressão que dura até hoje, impulsionada por uma imprensa musical agressiva e saudosista dos tempos em que o império britânico majestosamente dominava os charts e os afectos da música pop rock.
nesses dias, no retrovisor confundiam-se ainda as sonoridades do rock mais progressivo, do glam rock britânico, do movimento punk, do new wave já a roçar as electrónicas de consumo livre, dos urbano-depressivos da corte 'joydivisiana', do pós-punk anguloso, dos novos e obscuros românticos da 4AD, do dance-rock embrionário da factory, da ascensão do indie mais assumido e cristalino.. um pouco mais para trás, toda a estirpe de bandas que fizeram a transição dos sessenta para os setenta, herdeiros dessa swinging london (the kinks e tantos outros) e, claro, os sempiternos beatles e stones, à cabeça da excelsa armada inglesa. britania rules, bem poderia ser, por esses dias, o lema. claro que, nos outros quadrantes, o mundo não parou, mas o frenesim criativo britânico era evidente. chegados aos anos oitenta, na ressaca de tantos movimentos, de tantos sub-movimentos, o síndroma era agora o de orfandade desses rapazes, marcantes como talvez nenhuns outros nessa década, os mui venerados the smiths, com as suas palavras orgulhosamente sofisticadas, a sua capacidade de estilhaçar emoções de adolescentes em todo o lado, o superlativo manto de guitarras em filigrana.
estamos em 1988. e o movimento que ficou conhecido como madchester (de manchester + a loucura desse ambiente efusivo que anteciparia as raves do virar da década de 80 para 90 e que estavam quase, quase a chegar..) bate à porta. bandas como the happy mondays, inspiral carpets, the stone roses e tantas outras, hoje semi-esquecidas, foram então arautos e linha avançada dessas canções apostadas em abanar com o cinzento das cidades inglesas, através de uma forma positiva e dir-se-ia imediatista, hedonista, indulgente de olhar, fazer e sentir a música pop rock. os the stone roses lançam então este single ('elephant stone'), inaugurando um período de 2 ou 3 anos em que madchester foi grande..
depois, depois viria o shoegazing, o britpop e, do outro lado do atlântico, o grunge. antes de movimentos vindos das periferias (o hip hop mais mainstream, o house, o trip hop de bristol, o grime londrino, a soul eletrónica, etc.) virem estilhaçar a teoria dos movimentos dominantes. nada foi como dantes. lá, em terras de sua majestade, como do outro lado do mundo. a cultura do do it yourself, o apogeu da cultura clubbing moderna, o ressurgimento dos undergrounds, a americana, a new weird folk, o low fi, o slow sad core, o drum and bass, o pós-rock vieram, entre 1995 e 2000 mudar tudo. nada mais foi como dantes, uma vez que, em consonância com as novas possibilidades tecnológicas, com o acesso democratizado aos meios de produção e com a revolução que foi a internet, passámos a ter múltiplos géneros musicais em saudável coexistência, baralhando influências e influenciados, rasgando fronteiras de géneros, lançando crossovers atrás de crossovers. mas isto é falar já do presente..
voltando atrás: o ano era 1988. e o palco começava a ser deles. senhoras e senhores, the stone roses.
05 abril 2009
03 abril 2009
02 abril 2009
em 1988, peter greenway, em plena fase de apogeu criativo - que quanto a exuberância sempre foi constante -, legou-nos o filme 'drowning by numbers' - traduzido, para o circuito de exibição nacional, como 'maridos à água'.
1. filme excessivo e barroco; filme esplendoroso, herdeiro do crossover artístico mais clássico e de certa maneira a rondar os territórios da videoarte moderna, de cariz mais classizante; filme semiótico e críptico. a começar pelo nome, esse devaneio semântico que só pode ser a expressão 'drowning by numbers'.
gosto especialmente do título português. mais do que ilustração literalista do arremedo de enredo (como sempre, nada plano, mas não no sentido moderno da narrativa pulverizada, do culto da elipse, etc. - antes da relação fundadora entre verdade e verosimilhança do que estamos a ver), é um título sociologicamente seminal. afinal, que outra coisa poderia ser, às portas da última década do século passado, senão a anunciada derrota de uma certa masculidade dominante - para mais, importante detalhe, no seio da família tradicional. podia ser 'homens à água', mas não, 'maridos à água' ficou.
2. este é um texto sobre nada. demonstração diletante, mas também pedagógica, de que estamos no apogeu do vazio, como bem diria um dos filósofos da modernidade. afinal, quase que vos enganei.. e de uma tradução perdida nas suas próprias entre-telas pareceu quase, quase sair uma tese.
é assim. cuidado, amigas e amigos. nem sempre, nestes reinos dos blogues, quem escreve bem faz dessa actividade algo de verdadeiro. não no sentido da epistemologia do conhecimento e da verdade, mas sim naquele parâmetro tão simples e tão interpelante que é o discernir os trigos metafóricos dos joios figurativos. pirotecnia de blog, há muita. hiperbolização do estilo e lôas ao mesmo, quem pode atirar a primeira pedra? mas, como dizia o mestre morrissey, desses sim excelsos, the smiths:
'cause the music they constantly play
says nothing to me about my life.
é substituir 'música' por 'outras músicas'..
3. a banda sonora é excepcional. o mal-amado michael nyman atinge, neste trabalho, um nível superlativo. a partir de mozart, decomposto e recomposto (não sei dizer melhor, lamento), cria um conjunto de painéis musicais inebriantes, feéricos, harmónicamente belíssimos. afinal, nisto como noutras coisas (e lembro-me da arte culinária), a qualidade dos ingredientes base e a mão do artista/cozinheiro serão sempre os factores verdadeiramente alquímicos.
4. e, pronto, com amizade nos despedimos, por ora. até amanhã, se calhar em caminho.
01 abril 2009
"de vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. e então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
no segundo caso, o homem que não dorme pensa: 'o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração.'"
carlos de oliveira
[um dia destes, num rádio digital perto de si, a sair de uma qualquer estação, a poesia do senhor carlos de oliveira.]
sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.
carlos de oliveira
no segundo caso, o homem que não dorme pensa: 'o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração.'"
carlos de oliveira
[um dia destes, num rádio digital perto de si, a sair de uma qualquer estação, a poesia do senhor carlos de oliveira.]
sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.
carlos de oliveira
lisboa, sociedade de geografia, 19h00 do dia 31 de março de 2009. está prestes a começar a sessão de lançamento do livro 'marcello caetano - o homem que perdeu a fé', uma edição da esfera dos livros e da autoria da minha querida prima manuela goucha soares.
dentro de momentos, a sala, apinhada de gente ilustre do jornalismo, de algumas letras, de muitíssima gente amiga e de muitas pessoas, como eu, da família da autora, vai assistir a uma demonstração de virtuosismo retórico, por parte do senhor ministro da defesa, professor nuno severiano teixeira, fazendo elogio da autora e da obra agora apresentada.
é bom rever a família, nestes momentos, por contraponto a outros momentos bem mais tristes em que nos reunimos, como todas as famílias. e é bom rever todas estas caras com que me fui cruzando, ao longo dos anos, em aniversários, jantares, encontros, em casa da minha prima, do seu irmão e meu primo, dos seus pais e meus primos-tios. pessoas que piscam o olho, dizem estridentes 'olá, estás bom?', todas aquelas coisas que as pessoas, nestas circunstâncias felizes, dizem e nas quais nós quase acreditamos..
mas, perguntam vós e perguntam bem, qual o ponto deste 'post'? eu que raramente enveredo por este género de diário factual ou memorialístico dos meus dias, o que é que vos quero dizer?
o rapazola civil que sou eu, esteve lá, claro está, em-modo-social-ligado. mas o gi, que também sou eu, também se viu igualmente por lá. e, por entre mil detalhes que ainda fazem o seu caminho interior, um houve que me chamou mesmo a atenção.
na plateia de honra, na lista de agradecimentos, familiares de marcello caetano. penso que alguns filhos, primos, sobrinhos, netos. no rosto das pessoas de mais idade, impecáveis como antigamente se sabia ser impecável, víamos uma natural emoção. uma não escondida alegria. e eu via também, por detrás desses olhos que viram tanto, um mundo que não existe mais. o mundo em que o professor marcello caetano - e eles próprios - viveu, os tempos de ilustre lente na universidade, o tempo em que os destinos desta nossa nação lhe estavam entregues; depois, os tempos de mudança de regime, aquele dia 25 de abril, no largo do carmo, o exílio no brasil, onde alguns deles, hoje aqui presentes, terão estado, acompanhando esses dias menos felizes.
é isto uma exaltação ideológica de alguma coisa? não, meus amigos, nada mais distante disso. apenas uma verificação de humanidade, de que ela está em todo o lado. e de que eu continuo a sentir uma empatia imediata com todos aqueles que viveram no topo da árvore e que, como as estações trazem a queda de frutos e folhas, acompanharam esse existencial bailado descendente do professor marcello caetano, do seu mundo irrecuperável, de todo um sistema de valores em que acreditavam. a ideologia, em muitos aspectos nos antípodas do que defendo, não tem lugar aqui. mas a humanidade tem lugar em toda a parte. like it or not.
um outro aspecto que me tocou: a referência pelo insigne apresentador da obra a essa ambivalência que a obra agora publicada reforça: ao ser líder de um país e, ao mesmo tempo, um homem de família, da universidade, com amigos e relações sociais amplas, o professor marcello caetano foi 'obrigado' a experimentar a necessidade de extirpar a emoção, de certa forma condição do seu papel enquanto dirigente do regime, em estreita conjugação com a experiência pessoal do sofrimento (logo, de cariz emocional), inerente ao homem, ao marido, ao amigo. disto, percebo eu bem, amigos. e não vou explicar porquê, peço desculpa..
em suma: aprende-se em todo o lado, o tempo todo, com toda a gente.
e, uma vez mais, um abraço apertado à autora da obra, cujos quase 3 anos de preparação do livro, em circunstâncias pessoais bem difíceis, acompanhei, mesmo que à distância. bem o merece.