vens trabalhar, mãos nos bolsos, ar ligeiramente blasé (é assim que se escreve?), a rotina do conforto e o conforto da rotina, coisas da vida moderna em registo ligeiramente despreocupado. vinte minutos de carro, sempre de rádio ligado (que a música é o teu cigarro matinal), lugar na garagem, tranquilidade urbana na tua célula automobilizada, o mundo todo lá fora, café porque sim, café porque não, cumprimentas quem passa, o sporting já ficou lá atrás, discutido acesamente em torno do teu frugal pequeno-almoço com os companheiros de balcão, no café de bairro, um leve fluir (a reunião importante até foi desmarcada, cool my man), tudo é suavidade acetinada.
de repente. de repente, do teu lado esquerdo, enquanto caminhas, reparas que na longa parede de grafitis, há qualquer coisa nova. páras e lês. uma homenagem póstuma a um rapaz que morreu cedo e que adivinhas ter sido um dos deles. escreves 'que adivinhas ser', apagas, reescreves 'que adivinhas ter sido', e neste jogo semântico cabe todo a angústia humana. segues o discurso, apenas um pouco mais ensimesmado e dobrado sobre ti próprio, dizias que era uma homenagem. um fabuloso grafiti onde, do céu, o rapaz homenageado sopra e desenha nuvens branquíssimas contra um azulíssimo céu. dos lados, nos cantos inferiores, uns escritos quase em verso, prosa naif?, emoções à solta. sentes que o rapaz foi amado, respeitado, admirado, que deixou saudades fundas e amigos, talvez um amor para a eternidade. quem pode saber? apenas podes imaginar. impossível não sentir nada. por isso, chegas ao escritório e, depois do expediente matinal (mails, telefonemas e pouco mais), sentas-te a tentar escrevinhar qualquer coisa. as palavras atropelam-se, atropelam-te.. a metalinguagem, o inter-texto, coisas assim intrometem-se, estás aqui estás a tropeçar na tua amada semiótica.
voltas atrás, recuperas a narrativa. do lado de cá, do teu lado direito, enquanto caminhas, está agora um homem idoso, de cabelo cinzento e desgrenhado, com uma tez morena (própria da rua, dizes para contigo). sentado, agachado sob os arcos de um edifício, este homem pinta. um sem-abrigo que passa o tempo a pintar. ao seu lado, num pobre saco de plástico, adivinhas as formas de uns tubos com tinta, uns poucos pincéis, cartões que servirão de tela. tentas espreitar - mas não nasceste para espreitar, bem o sabes - os motivos que estão a ser pintados. parece-te uma pintura naturalista, paisagens, motivos urbanos, não percebes bem. o que percebes é que são decerto pontos de fuga, para ele e para ti. um homem a preto e branco que pinta quadrinhos a cor (que bela personagem para um conto, melhor pensar assim que no romance que prometeste a ti próprio e que, temes bem, nunca sairá das tuas cogitações)..
a vida é assim. entre a não-narrativa dos gestos que se repetem, morfina para a dor da dúvida, panaceia para o sentido que não se encontra em lado nenhum, e os acasos cheios de significado que explodem a todo o tempo, a teu lado, quando não são granadas de deflagração desfasada que, algum tempo depois, fazem o seu caminho de destruição nas tuas entranhas. ninguém as vê, ninguém as sente, só tu. mas isso sabes desde o berço mais tenro (sós contra o mundo, sós no mundo). isso tu sabes bem, mas - diabos - é como se todos os dias começasse tudo outra vez e nunca terminasse esse bailado das coisas metafóricas ('meu peito feito campo de batalha', não é zé mário?). e aqui está, a grande dama, a tua própria semiótica, anunciada umas linhas atrás, em todo o seu secreto esplendor. aqui está ela.
é assim. és um prosador do caraças. um caçador do caraças. um tipo porreiro, mata-borrão das dores do mundo, um turista acidental passeando nada suavemente pelas brisas da tarde, da manhã, da noite, da vida. escapa-te a razão para tal, mas alguma existirá. ou então não. e neste não (a palavra mais terrível, lá dizia o outro mestre da língua que te calhou em pátria) cabe toda a impossibilidade do mundo.
remexes nas algibeiras. olhas em volta, a tua mesa de trabalho, os papéis desorganizados, os caixotes por abrir, as paredes que lembram outros tempos, com os seus quadros cheios de referências passadas. procuras o futuro. e procuras um analgésico. és furioso, és violento, és rebelde, és um rapaz já pouco rapaz, mergulhado no inverno até ao mais ínfimo dos teus cabelos. esta frase saíu de onde? rais'parta, saiu de ti, sabes bem, não brinques. essa frase era uma espécie de desvio (o 'detour', do filme de jacques tourneur, fase americana - as coisas que tu sabes e que não servem para nada, davam um filme triste), evitavas, no fundo do fundo, escrever a resposta que sabes de cor: onde está o analgésico, porra? onde está o futuro, raios?
no quadro a cores do homem a preto e branco, um dia desenhado na mente fervilhante de um rapaz que grafitava paredes vazias, inventado pela memória de alguém, saído de ti próprio. é este o mistério da escrita. e da vida. tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é
fa(r)do.
facto.
haja saúde.
(joão césar monteiro, se estiveres aí em cima, dá um abraço meu a esse rapaz que os deuses cedo levaram. devia ser um tipo à maneira, para merecer aquela homenagem que hoje me saiu ao caminho e me dobrou em quatro.)
de repente. de repente, do teu lado esquerdo, enquanto caminhas, reparas que na longa parede de grafitis, há qualquer coisa nova. páras e lês. uma homenagem póstuma a um rapaz que morreu cedo e que adivinhas ter sido um dos deles. escreves 'que adivinhas ser', apagas, reescreves 'que adivinhas ter sido', e neste jogo semântico cabe todo a angústia humana. segues o discurso, apenas um pouco mais ensimesmado e dobrado sobre ti próprio, dizias que era uma homenagem. um fabuloso grafiti onde, do céu, o rapaz homenageado sopra e desenha nuvens branquíssimas contra um azulíssimo céu. dos lados, nos cantos inferiores, uns escritos quase em verso, prosa naif?, emoções à solta. sentes que o rapaz foi amado, respeitado, admirado, que deixou saudades fundas e amigos, talvez um amor para a eternidade. quem pode saber? apenas podes imaginar. impossível não sentir nada. por isso, chegas ao escritório e, depois do expediente matinal (mails, telefonemas e pouco mais), sentas-te a tentar escrevinhar qualquer coisa. as palavras atropelam-se, atropelam-te.. a metalinguagem, o inter-texto, coisas assim intrometem-se, estás aqui estás a tropeçar na tua amada semiótica.
voltas atrás, recuperas a narrativa. do lado de cá, do teu lado direito, enquanto caminhas, está agora um homem idoso, de cabelo cinzento e desgrenhado, com uma tez morena (própria da rua, dizes para contigo). sentado, agachado sob os arcos de um edifício, este homem pinta. um sem-abrigo que passa o tempo a pintar. ao seu lado, num pobre saco de plástico, adivinhas as formas de uns tubos com tinta, uns poucos pincéis, cartões que servirão de tela. tentas espreitar - mas não nasceste para espreitar, bem o sabes - os motivos que estão a ser pintados. parece-te uma pintura naturalista, paisagens, motivos urbanos, não percebes bem. o que percebes é que são decerto pontos de fuga, para ele e para ti. um homem a preto e branco que pinta quadrinhos a cor (que bela personagem para um conto, melhor pensar assim que no romance que prometeste a ti próprio e que, temes bem, nunca sairá das tuas cogitações)..
a vida é assim. entre a não-narrativa dos gestos que se repetem, morfina para a dor da dúvida, panaceia para o sentido que não se encontra em lado nenhum, e os acasos cheios de significado que explodem a todo o tempo, a teu lado, quando não são granadas de deflagração desfasada que, algum tempo depois, fazem o seu caminho de destruição nas tuas entranhas. ninguém as vê, ninguém as sente, só tu. mas isso sabes desde o berço mais tenro (sós contra o mundo, sós no mundo). isso tu sabes bem, mas - diabos - é como se todos os dias começasse tudo outra vez e nunca terminasse esse bailado das coisas metafóricas ('meu peito feito campo de batalha', não é zé mário?). e aqui está, a grande dama, a tua própria semiótica, anunciada umas linhas atrás, em todo o seu secreto esplendor. aqui está ela.
é assim. és um prosador do caraças. um caçador do caraças. um tipo porreiro, mata-borrão das dores do mundo, um turista acidental passeando nada suavemente pelas brisas da tarde, da manhã, da noite, da vida. escapa-te a razão para tal, mas alguma existirá. ou então não. e neste não (a palavra mais terrível, lá dizia o outro mestre da língua que te calhou em pátria) cabe toda a impossibilidade do mundo.
remexes nas algibeiras. olhas em volta, a tua mesa de trabalho, os papéis desorganizados, os caixotes por abrir, as paredes que lembram outros tempos, com os seus quadros cheios de referências passadas. procuras o futuro. e procuras um analgésico. és furioso, és violento, és rebelde, és um rapaz já pouco rapaz, mergulhado no inverno até ao mais ínfimo dos teus cabelos. esta frase saíu de onde? rais'parta, saiu de ti, sabes bem, não brinques. essa frase era uma espécie de desvio (o 'detour', do filme de jacques tourneur, fase americana - as coisas que tu sabes e que não servem para nada, davam um filme triste), evitavas, no fundo do fundo, escrever a resposta que sabes de cor: onde está o analgésico, porra? onde está o futuro, raios?
no quadro a cores do homem a preto e branco, um dia desenhado na mente fervilhante de um rapaz que grafitava paredes vazias, inventado pela memória de alguém, saído de ti próprio. é este o mistério da escrita. e da vida. tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é
fa(r)do.
facto.
haja saúde.
(joão césar monteiro, se estiveres aí em cima, dá um abraço meu a esse rapaz que os deuses cedo levaram. devia ser um tipo à maneira, para merecer aquela homenagem que hoje me saiu ao caminho e me dobrou em quatro.)
1 Comments:
.".são granadas de deflagração desfasada que, algum tempo depois, fazem o seu caminho de destruição nas tuas entranhas. ninguém as vê, ninguém as sente, só tu(eu). mas isso sabes desde o berço mais tenro (sós contra o mundo, sós no mundo)". assim é.
para quando a primavera? quando a vais finalmente assumir, se (te) rebentas a cada instante?
esquece o passado pendurado, não procures um analgésico futuro, sê um maravilhoso presente!
és (um prosador) do caraças...
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