14 abril 2009




hoje à noite, na cinemateca portuguesa, passa o filme 'dead ringers' / 'irmãos inseparáveis', um dos filmes mais perturbantes da minha experiência cinéfila (não gosto de terror, slash movies e afins).

para além de ser uma das obras primas absolutas do senhor david cronenberg, é também o palco negro para uma assombrosa performance de representação por parte de outro senhor: jeremy irons, de sua graça.

nos anos noventa, fui um compulsivo coleccionador de experiências 'cronenberguianas', em particular dos seus filmes dos anos setenta e oitenta.

'dead ringers' foi exactamente o primeiro filme após o ponto de viragem para produções mais ambiciosas, com a caução de estúdios mais importantes e com orçamentos mais significativos, representado pelo célebre 'the fly' / 'a mosca'. contudo, e não obstante gostar de filmes desta segunda fase da sua carreira (como 'madame butterfly' ou 'crash'), é nos seus primeiros anos de cinema (antes ainda, havia realizado pequenos filmes e episódios de séries para televisão) que encontramos, na minha humilde opinião, o seu corpo de obra mais homogéneo:

the fly (1986)
the dead zone (1983)
videodrome (1983)
scanners (1981)
the brood (1979)
fast company (1979)
rabid (1977)
shivers (1975)

em pouco mais do que uma década, david cronenberg assina oito filmes que, como poucos, têm o condão de nos assustar até à medula. com parcos meios e de forma semi-artesanal - dir-se-ia entre a série Z e a série B -, ilustra de forma magistral alguns dos medos contemporâneos mais agudos (da corrupção do corpo às imparáveis pragas por contágio, passando pela ameaça das novas tecnologias sobre a natureza, quebrando irreparavelmente o equilíbrio ancestral).

é um cinema sobre o medo, filosoficamente portentoso quando encena a relação entre corpo/natureza e máquina/artifício, céptico das construções sociais e da firmeza dos valores ditos civilizacionais, ferozmente individualista e com um permanente subtexto sobre a sexualidade humana, enquanto modo de corrupção e enquanto elemento simbólico. sim, um cinema político e metafórico, como, no fundo, grande parte da melhor ficção científica e grande parte do fantástico que vale a pena. mas não é exactamente uma coisa, nem outra. nem tão pouco thriller ou cinema de terror. antes, uma original simbiose de géneros, tornando-o aquilo que é: um sub-sub-género cinematográfico por si mesmo. sinal, em nosso entender, da enorme qualidade autoral de david cronenberg.

se puderem, hoje mais à noite, não percam. 'dead ringers' / 'irmãos inseparáveis' trata dos abismos da alma e desse território interdido e malsão que todos escondemos debaixo do tapete..