és como a flor de laranjeira / que apesar de invisível aos olhos / penetra nas narinas do moribundo / e é delícia, tudo na vida / por uns segundos
antonio gamoneda - in 'o livro do frio'
31 agosto 2010
em 1988, os irmãos timmins, sob o nome cowboy junkies, gravaram, usando som directo, numa velha igreja algures no Canadá, um disco que viria a ser considerado seminal - chamaram-lhe simplesmente "the trinity session", nome do local onde o disco foi registado ("church of the holy trinity").
"misguided angel" é uma das canções do disco, a faixa número 2 e, talvez, a minha preferida. ouçam a canção com atenção, acompanhando a letra. quando a canção se aproxima do fim, a música pára e margo timmings, a mana que canta, faz um compasso de espera e atira-nos com o verso "misguided angel, love you 'til i'm dead".
5 segundos que ainda hoje arrepiam. mas, claro, podemos sempre optar por ser modernos e mandar os irmãos timmins passear. afinal, é só mais um disco.
talvez a banda mais influente de toda a década de oitenta. seguramente, a mais influente, nessa mesma década, para a definição do meu próprio gosto pessoal.
sad and sour. sad and sweet. just beautiful - no intellect, pure emotion.
escutai: sois uma desilusão mansa, uma tristeza funda. tendes toda a vossa escala de valores terrivelmente avariada. sois a quintessência da vossa espécie: um transístor queimado, uma lâmpada fundida que pensa que a forma é tudo. escutai: sois semiótica pura, fotograma cristalino destes tempos impuros. ide, ide, ide. estais bem para estes tempos, um emparelhamento formidável entre contexto e sujeito(s). ficai, desse lado, com o tom e com a mensagem, que o receptor, deste lado, já não está cá. ide, ide, ide.
e com esta canção os the national encerram o seu mais recente disco, 'high violet'. grande canção, naquele jeito que a banda vem apurando de nos contar 'coisas de adultos'. os the national são isso mesmo - uma banda de indie rock para gente que está a chegar (ou já chegou) à idade em que passamos a ver os mecanismos do relógio. mesmo quando não queremos ver. mesmo quando não queremos saber. grande canção, triste e dura. grande canção, triste e linda.
perguntam-me, por vezes, vozes interiores: porquê tanto rohmer, meu rapaz? é tudo deleite estético? ou antes terapia narrativa? é o quê? tudo isso também, meu senhor. mas, acima de tudo, talvez lhe possa dizer, caro cavalheiro, que o cinema de rohmer sempre me fez sentir em casa. e isso é confortável, daquela maneira em que nos faz sentir menos freaks. dito de outro modo: é também uma forma de mostrar o que me vai acontecendo: por detrás de uma fina película ficcionada, as placas tectónicas mexem-se. talvez sejam invisíveis, improváveis, inverosímeis, para si - mas são apenas, quando decantadas pelo olhar, um fiel retrato do que os dias vão trazendo. a espuma dos dias, melhor dizendo. acho que entendo. se assim é, não queria estar na tua pele. meu senhor, não tem importância, estou habituado à estranheza e ao sublime, de certa maneira. também não queria estar exactamente na minha pele. mas estou. vá-se lá fazer o quê, caro cavalheiro? assim é, rapaz, assim é. lá virá o dia em que verás o teu raio verde - até lá, aguenta as marés, sem te afogares. é isso que te posso dizer, do alto dos meus oitenta e cinco anos. ou noventa e dois.
'l'ami de mon amie' é o sexto e último opus da série 'comédias e provérbios', de eric rohmer.
(as palavras luzem. mas convém não minimizar, mesmo para quem domina magistralmente as artes retóricas, o instintivo poder de todos os 'esplendores na relva'. tenho dito.)
dizias que gostavas de poemas.
escrevi-te, numa tarde, mais de cinco.
são muito bonitos, disseste,
hei-de mostrá-los ao meu namorado.
nunca mais confiei nos versos
nem no gosto feminil.
josé miguel silva
in "vista de um pátio seguido de desordem", editora relógio d'água, lisboa, 2003
ed harcourt, trinta e poucos anos, é um enorme escritor de canções. claro que nem todos gostam das canções do rapaz ed, ou não fosse ele um fiel e inspirado cultor de uma pop sinfónica, aqui e ali arrebatada, não raro arrebatadora. herdeiro, pois claro, dos scott walker desta vida (vide post anterior), devoto, quase apostamos, dessa constelação composta pelos singsongwriters mais fervilhantes. ao quinto disco, 'lustre', ed harcourt continua a fazer das suas. exemplo da sua arte de bem carpinteirar melodias deveras catchy e de escrever letras delicadas e intensas, é esta canção, 'haywired'. não conhecemos quase nada da biografia do rapaz, mas sabemos que é casado e desconfiamos que quem aparece na capa do disco é a sua 'sagrada família'. e, mais uma vez, quase apostamos que o refrãozinho abaixo tem destinatário bem concreto.. afinal, ed
it's not easy to be happy, get away with it
it's not easy to be happy, get away with it
era isto, não era, que (te) querias dizer? eu sabia.
esta noite, muito provavelmente, o meu serão será passado a visionar (verbo tão anos oitenta..!) o quinto capítulo da série "comédias e provérbios", do senhor eric rohmer, de seu nome "le rayon vert". confesso que não sei se a palavra certa é ver ou rever. é que os filmes de eric rohmer têm tantos detalhes, que nunca sabemos se vimos 'a versão definitiva'. e são tão especiais que mudam, ao longo da vida. quero dizer: o nosso olhar, que vai amadurecendo, sendo - ver poema abaixo - tingido pelas cores e matérias de que a vida é feita, vai mudando. o filme assume assim uma variável geometria evolutiva, como se fosse um ser vivo ou, teoria nada disparatada, um espelho do que nós próprios somos, a cada momento.
os beach house, duo que cultiva uma dream pop etérea, assinaram aqui um singlezinho para a eternidade. o disco de onde a canção foi retirada chamava-se 'devotion' - receita sempre apropriada para todos os desastres e, ao mesmo tempo, fórmula mais do que mágica para algumas coisas sublimes..
arriscar ou não arriscar a devoção, d.a.r.l.i.n.g.? - that is also the question.
e continua a mini-maratona rohmeriana, desta feita com 'les nuits de la pleine lune'. confiem em mim: não é um bom filme para se ver ao final da tarde de uma segunda-feira. ou, pelo menos, não o é se vocês, num arrebatado exercício de poesia 'en abyme', forem eu próprio..
adoro i pregiudizi, i luoghi comuni
mi piace pensare che in Olanda
ci siano sempre ragazze con gli zoccoli
che a Napoli si suoni il mandolino
che tu mi aspetti un po’ in ansia
quando cambio tra Lambrate e Garibaldi.
talvez, a par dos silvas de manchester (leia-se os The Smiths), a banda que mais amamosamamosamamosamamos - a banda que mais somos..
(e Deus sabe QUANTO gostamos de TANTA gente).
entre 1981 e 1987, eric rohmer assinou mais um dos seus sofisticados painéis, no caso uma série de 6 filmes, sob o título-mote de 'comédias e provérbios'. 6 tratados sobre a natureza humana (as emoções, digamos assim), nesse fino (des)equilíbrio entre o plano das ideias e o plano das acções, entre o que se diz e o que se faz. as personagens dos filmes de eric rohmer têm uma imensa capacidade de articular princípios, construindo edifícios aparentemente robustos, mas que não têm real correspondência no mundo (relacional) real. ou que, quando têm, parecem conduzir essas mesmas personagens a um estado de suspensão. como se o arcaboiço intelectual, quando aplicado às emoções, conduzisse, regra geral, a uma desoladora vitória de pirro; como se, sob a capa de um frenesim verbal e até quotidiano, apenas encontrássemos um jogo inconsequente. em regra, nunca se chega a lado algum nestes filmes, mas o prazer que se retira do seu visionamento é sublime - a sofisticação e a elegância são sempre adquiridas; a reflexão íntima, a posteriori, igualmente garantida. ontem, de tarde, com um copo de gin tónico ao lado, vi três filmes seguidos, por ordem cronológica de produção: "a mulher do aviador", "o bom casamento" e "paulina na praia". no primeiro filme, todos falam imenso e todos acabam exactamente no mesmo sítio, perdendo todas as oportunidades (menos o aviador, essa não-personagem que, afinal, é o único que parece ser capaz de, de facto, tomar uma decisão e seguir viagem..); no segundo, vemos como todos estamos sujeitos a construir castelos de areia - com a nuance de que quanto mais inteligentes e auto-confiantes, maior a desilusão potencial..; no terceiro, todos pregam imenso a virtude das escolhas certas teóricas e todos se enganam nas escolhas reais (todos não! a adolescente pauline é a única que mantém a tramontana e que é consequente - e é a que fala menos, curiosamente..).
cinema deste já não se faz. tal como aquela frança, de inícios de oitenta, plena de renaults quatro L, também já não existe. ou melhor: existem - um e outra invisíveis, bem dentro de nós.
os poetas só lâmpadas acendem. eles próprios - extinguem-se -.
emily dickinson
de vez em quando, aparecem cometas - puro senso comum. no universo da música, existe um céu próprio para todos os cometas que até hoje cruzaram os céus dos melómanos. nesta muito particular dimensão cabem, por exemplo, aqueles discozinhos caseiros, gravados em sistema 'do it yourself meets low fi meets an exploding heart'. perfume genius é o alter ego de um miúdo americano. este ano, chegou-nos o seu disco de estreia, cremos, de sua graça 'learning'. nem sempre damos aos grãos de areia a importância devida. mas, para as leis da física, um grão de areia é tão meu irmão como tu, que me lês. learning the hardest way, bem poderíamos dizer. ao menos, com música, ao menos, com alma, ao menos, com urgência. somos todos a kind of perfumed genius, cruzando os céus, enquanto ardemos.
the walker brothers, que não eram irmãos, mostram aqui, já na fase final da sua carreira, onde é que tantos nomes que tanto amamos foram beber essa peculiar pungência que encontramos nos 'crooners ultra-românticos'. scott walker, esse homem fora do sítio, alma mater deste grupo que fez canções épicas e epidérmicas como poucos mais, tem tido uma (não-)carreira errática. fugiu do mundo e das luzes, quando tinha uma voz assim, um lirismo assombroso na escrita de canções, uma gravitas que nos pôe em respeito, logo à primeira audição. tem lançado discos bissextos, no limite do conceptual-inaudível, obras sobre as quais dizer que são pintadas em tons negros é ser solar. scott walker, ontem, como the walker brothers, anteontem, são um cenotáfio à vacuidade dos nossos dias e à imensa máquina de triturar em que nos tornámos. ou de como a fuga, por vezes, é uma sublime e desesperada forma de ética. porque a sobrevivência é uma ética. 'between the lines' devíamos todos saber ler, como cantam estes já antigos 'irmãos'. brother, where art thou?
em 1968, van morrison gravou 'astral weeks'. discos assim salvam vidas inteiras. e refundam outras tantas.
ou de quando a beleza é pura transcendência e a transcendência é pura metafísica.
make it rain - disse ele.
e as estrelas de paris obedeceram.
manuel de freitas
no tempo das suaves raparigas, às vezes a vida torna-se (quase) insuportável
de tão furiosamente bela, mesmo se esculpida por impossibilidade e ausência.
eu, que de mim há séculos não sei, rodeio-me de feminis enredos ou regaços
forma de me esconder do mundo, de mim próprio, de tudo o que é contingência.
quero o absoluto, quero o amor, o erotismo que dá vida, ouro, prata, quero tanto o
que é impossível, o que ata e desata, o que desatina e desbarata, o que me mata.
quero a vida salgada, a ternura que é brasa, quero o mundo como minha casa,
quero o final da perda continuada, das pessoas que dizem adeus, acabar com
esta personagem que é só caravana que passa (antes ser cão ou ser tua poeira
cósmica, sublime e devassa), quero o amor absoluto, a flor na ponta da espada,
quero respirar o tempo que passa, quero suor erótico na ponta do meu cabelo,
alcançar estrelas, mandar-me de cabeça, renascer de novo com outro coração,
matar de vez esta fome, esta sede, a insana loucura desta temível sofreguidão.
em 1987, david sylvian gravou 'the secrets of the beehive', um dos discos da minha vida. se a partir de um disco quisesse conquistar uma pessoa concreta (exercício meramente hipotético, já se sabe..), sem, contudo, trair a minha própria essência, este disco bem poderia ser o bilhete-banda-sonora-de-identidade mais que perfeito para tão humana empreitada.
era no tempo das suaves raparigas
e era ainda e para sempre esse agosto
que de areia esculpia flores vestidas
de claridade salgada, acre como mosto.
era no tempo das suaves raparigas
andorinhas anunciando a alvorada
semeando palavras como espigas
preparando a colheita mais desejada.
era no tempo das suaves raparigas
forma poética e, bem sei, algo brutal
de declinar no plural a que me obrigas
aquilo que só pode existir no singular.
era no tempo das suaves raparigas
e novecentos era ainda tempo presente
- tudo trocaria: agosto, espigas, mosto
por esse, de mim ausente, teu rosto
(e contudo em mim tão presente).
eu sei, eu sei, estou hiper-activo nas teclas. o velho fenómeno de compensação, afastado que está o chocolate. e não fumo (quase). e bebo pouco. vai daí, teclar é mesmo compensação directa. só pode ser. por exemplo, de repente, nesta porcaria de escritório, lembras-te de uns olhos a olhar para ti. e lembras-te, o verbo é outro mas ainda está por inventar, lembras-te (fica este) de dizer que não sabes se há um sentido, um desenho inteligente, um fito, um propósito, que há sempre a opção de não acreditar e começar aqui mesmo, hoje e agora, a partir isto tudo, o que inclui a minha vida e a tua, o coração e o corpo, as mesquinhas danças profissionais, e tudo o mais que, suspeitamos, serve para pouco. mas, lembras-te, logo a seguir de atirar algo como há sempre a outra possibilidade. e que desdenhar essa possibilidade é abandonar a possibilidade de uma beleza ética e estética e o que tu quiseres, mais vocês todos, mais eu todo - sei lá, todos. de repente, lembras-te do rosto e dos olhos - esses instrumentos divinos - e dessa tua expressão isso foi tão bonito. e brilhavas no escuro, como uma derradeira luz no deserto urbano, uma espécie de farol e eu uma espécie de barco em mar agitado e eu olhava para dentro de ti - e se pudesse, por osmose, mergulhava em ti, cindindo-me em milhões de partículas, atómos e matérias luminosas. eu sei lá. sim, eu sei, já tivemos melhores dias. à volta, ardem as constelações, como sempre no verão. cá dentro, arde o diacho do corpo, esse desassossegador permanente. entre uma coisa e outra, a memória de uma frase certeira, no momento certo. e os lençóis por testemunha. e a madrugada lá fora, esmagada, uma e outra vez, pela poesia da tua pele na minha pele. se isto é prosa, eu sou poesia. e um coração que ainda sabe a saliva.
how ironic que o senhor douglas coupland - patrono de grande parte do zeitgeist pós-moderno - diga, em entrevistas recentes, que está do lado de fora da 'nuvem'. a nuvem quer dizer simplesmente 'cloud computing', essas buzzwords que descrevem o state-of-the-heart digital, um não-sítio virtual onde toda a informação está disponível, o tempo todo, a partir de qualquer local. este novo paradigma obrigou, pelos vistos, o nosso amigo douglas a repensar-se e a dizer-nos, mero feeling nosso, que há que escolher entre 'ter informação' e 'ter uma vida'. ele, ao que parece, escolheu ter uma vida. ou, pelo menos, está a tentar.
serve isto para dizer que me apetece imenso ter uma vida. talvez agosto seja mesmo um mês especial. apetece-nos mojitos - muitos -, 'silver lined landscapes, whatever it means..', escutar discos de jazz, rever a obra integral do senhor eric rohmer, não fazer nada, ficar pela dolce vita possível.
estou, portanto, a pensar se este blog continua ou se entra em suspensão. não seria a primeira vez, como porventura sabeis. é claro que me faz falta, enquanto instrumento de comunicação com o cosmos - e convosco; e comigo próprio. claro que sim. mas, por outro lado, há que escolher. e eu, se tiver mesmo que escolher, guio-me pelos preciosos conselhos do senhor coupland - é melhor ter uma vida, do que ter informação. algo assim. you see my point, i'm sure.
enquanto me não decido, vou andando por aqui. e por aí. e por ali. mas não pela 'nuvem'.. afinal, já chove em mim mais do que o suficiente.
(e não, desculpem-me, o facebook is not the answer.)
ainda sobre uma certa filosofia menos metafísica, importa reter aquela tirada do filósofo (giorgio agamben, creio) que nos alerta para as agrururas, angústias, do homem moderno pacificado - como aceitar a rotina, a vida rasteirinha, como um bem? como encarar o fio dos dias como uma sequência de dias iguais? neste sentido, a tragédia surda do homem moderno, ocidentalizado e normalizado, é passar a vida oscilando entre um conjunto finito de momentos dramáticos - o ciclo de vida em todas as suas declinações físicas e emocionais - e o lastro subterrâneo contínuo de uma vida asséptica, monótona, repetitiva. o futebol, a música, os excessos hedonistas, representam o bálsamo possível, em tempos sem heróis, sem actos de bravura, sem medo instintivo, sem uma necessidade premente de sobrevivência. neste sentido, o último homem - de que nos falam pensadores contemporâneos - é o homem reduzido, cristalizado, amorfo. civilizado, enfim.
susan sontag e essa permanente cisão entre o conforto intelectual da chamada 'alta cultura' e as delícias sensoriais da 'low life'. temos que escolher? como eu a entendo..
roberto carlos e metafóricas baleias rasgam este domingo,
e as lágrimas que me envergonham neste web café alimentar
são lágrimas em memória do nosso provado amor improvável,
tão esventradamente morto agora quanto eu, tão extinto quanto tu.
a vida, lá fora, continua, indiferente às minhas invisíveis mágoas:
biografias avulsas e carros a passar, esmagam-me contra meu peito,
atropelado por mim, por ti, pela vida, pelas coisas do mundo.
todos mortos agora, como esse fulminante hotel onde fomos felizes,
arquitectura outrora poderosa e radiante que é já ruína em cal viva.
ou como o teu nome, alpha e ómega, a triturar-me os ossos e a pele,
as pernas e os braços, os olhos e os lábios, o rosto e o resto
- e esse impossível tomorrow que, para nós, é always too late.
Qual seu defeito mais deplorável? A exigência. A impaciência. A intrasigência. Paciência. Qual defeito mais deplora nos outros? A intolerância. A brutalidade. A boçalidade. A falta de compaixão. A estupidez. Qual seu estado mental mais comum? A descrença desrazoável. A utopia feroz. A apatia disfarçada de energia (ou ao contrário). Como gostaria de morrer? Feliz por ter vivido. E deixando muitos outros, apesar de tristes, felizes por essa mesma razão. Agora a sério: depois de muita conversa com Deus e de ele me convencer absolutamente. Se depois de morto tivessse que voltar à Terra, gostaria de voltar convertido em que coisa ou pessoa? Custa-me responder. Talvez num livro que salvasse vidas, pessoas de si próprias. Livro é coisa? Qual a sua maior extravagância? Há quase 15 anos, ter deixado de fazer contas. Ser razoavelmente livre da ambição e preocupações mais materiais. Em que ocasiões você mente? Quando tento cativar os outros. Basicamente, o tempo todo, portanto. Que pessoa viva te inspira mais desprezo? Esqueci. Que pessoa viva admira? Minha avó materna. Todo o homem e mulher em que pressinto Humanidade. Qual sua ideia de felicidade perfeita? Impossível dizer. Mas mete mortos e vivos. Alguns homens e, palpita-me, algumas mulheres. Críptico. Então, vamos lá, outra vez. é de noite, alta madrugada, ela diz-me qualquer coisa. E eu digo, como no filme de Robert Bresson: "que estranho caminho tive que percorrer para chegar até ti.". Lá fora, daqui a um bocadinho, estão todas as pessoas importantes. Cheira a café, pão fresco, coisas simples. Acho que me entende. Qual seu maior medo? Descobrir que o niilismo era, afinal, justificado. Perder a minha humanidade. Perder os meus entes queridos - como toda a gente. A ordem não é bem esta. Qual seu maior remorso? Não ter sido capaz. Qual a virtude mais valorizada socialmente? O sucesso, em sentido amplo. Dá-me náuseas. O que te desagrada mais em sua aparência? Tudo o que me impede de ter aquela garota. Quais são seus nomes favoritos? Prefiro não responder. Toda a gente sabe. De homem: Homem. Que talento desejaria ter? Saber gerir as minhas emoções. Parar a dor de todo o mundo, num golpe de mágica. Saber escrever. Ser capaz de criar canções ou realizar filmes. Esquecia-me do mais tolo de todos: mudar o mundo. O que te desagrada mais? O egoísmo em que vivemos todos. A desatenção permanente de tantos. A falta de lucidez de muitos. A desonestidade de alguns. A violência psicológica. Vou repetir uma, lá de trás: a boçalidade. Quando e onde você foi mais feliz? Aos 15 anos de idade, talvez. Durante uma ou duas mãos-cheias de noites ("la dolce vita"). Sempre que alguém me diz: "gosto de ti". Amanhã. Se pudesse, o que mudaria em sua família? Uma única coisa: gostaria que vivessem melhor a vida, mesmo sabendo que me desejariam provavelmente o mesmo. Qual é seu maior objetivo? Fazer tudo o que posso, em prol de mim, dos outros, do mundo, do meu tempo. Que não esquecessem o meu nome. Objectivos impossíveis, está visto. Qual sua posse mais valiosa? O meu coração, apesar de tudo. E apesar do dono. Qual a manifestação mais clara da miséria? Os livros de História. E este sentimento amargo de ser possível mudar tanta coisa e nada acontecer. Falo de nós todos, em termos quase civilizacionais. Onde desejaria viver? Onde fosse feliz. Como isso é impossível, onde passasse mais tempo alegre. Como isso é difícil, onde puder ser livre para ser um bocadinho alegre e um nadinha feliz. Qual seu passatempo favorito? Ler e escrever. Como se vê, faço melhor o primeiro do que o segundo! E conversar, sempre. Qual a qualidade que você mais aprecia em uma mulher? Carácter e força? Bondade e ternura? Nunca me decidi. Combinar, por favor, com inteligência. Qual a qualidade que você aprecia mais em um homem Carácter. Qual seu herói de ficção favorito? Ainda estou para descobrir. Um homem feito do melhor de todos os homens. Só pode ser ficção, não é? Alguns personagens de James Stewart, Henry Fonda, no cinema clássico. Na literatura, impossível responder. Curioso - enquanto penso, Corto Maltese atravessa-se à minha frente. Não será por acaso. Quais são seus heróis da vida real? Todos os que ousaram Ser. E que, para isso, arriscaram não estar mais. Para bom entendedor.
roberto carlos e as metafóricas baleias rasgam o domingo,
e as lágrimas que me envergonham neste web café alimentar,
são lágrimas em memória do nosso amor,
tão morto quanto eu.
tão morto quanto tu.
a vida, lá fora, continua.
biografias e carros a passar,
esmagando-me contra o meu peito,
atropelado por mim próprio.
tão mortos, tu e eu,
como esse fulminante hotel
onde fomos felizes.
esse hotel radiante que é já ruína em cal viva
como o teu nome a triturar-me
os ossos e a pele, pernas e braços, olhos e lábios
- e esse tomorrow que é always too late.