30 setembro 2008
a cada um a sua dieta
'o homem é o lobo do homem', escreveu um famoso e clássico cientista político. mas o homem é também lobo de si próprio. come a mão que lhe dá de comer e come, não raro, o seu próprio coração.
é tempo dos sons negros, mas, desta vez, não dos sons melancólicos e sombrios, antes da música negra feita na década de 70 por alguns dos seres mais luminosos que atravessaram a tal década que, dizem, foi esquecida pelo bom gosto. mas terá sido mesmo assim?
em casa, rodam por estes dias discos de autores como gil scott heron (o mestre da spoken word antes do tempo, sobre base musical de r&b, poeta político de intervenção), isaac hayes (mestre de uma soul orquestral e majestosa, uma espécie de sopro quente e épico) e curtis mayfield (mais ligado ao lado funk e r&b da música negra, para sempre associado às magníficas bandas sonoras do movimento cinematográfico conhecido como 'blaxpoitation' - tal como, aliás, o referido isaac hayes).
para a próxima, aparecerão george clinton (parliament, funkadelic e projectos correlativos), sly & the family stone, marvin gaye, o stevie wonder dos primeiros tempos, (em registos menos populares) visionários como sun ra, todo o universo de editoras como a motown, a stax, os sons de detroit e de chicago. um grande e merecido étecétera.
de vez em quando, há que fazer escolhas. mergulhar verticalmente. desta feita, apetece-me viver por dentro outro tempo, outro espaço, outro contexto. eram os anos setenta, o país era a américa (como antes se dizia, lembram-se?) e a música era um acelerador de partículas - fusão a quente, que é como a gente gosta.
black souls of the world unite and take over.
29 setembro 2008
das catedrais deste tempo detergente*
foto: eurice 2008
[em memória do senhor paul newman]
outros preferem as catedrais de betão armado, onde modernos cavaleiros da bola redonda sublimam o chumbo.
outros preferem os picos das montanhas mais distantes, lugar onde a suspensão do tempo é, talvez, ainda possível.
outros preferem as propriamente ditas, sinal do divino (a arquitectura esplêndida de tantas e tantas) e do Divino (para os bem-aventurados).
outros preferem as catedrais feitas de palavras, livros de uma vida que nos levam para longe do mundo baço e para perto do coração mais selvagem.
outros preferem os mares por navegar, onde todo o barco é um acto de fé e todo o mar um edifício de radical liberdade.
outros preferem catedrais feitas com sublimes notas musicais e palavras arrebatadoras - catedrais de plenitude espiritual que fazem da música altar de todos os credos.
eu prefiro-as todas, sem distinção. mas há uma onde aprendi a ser rapaz com H e para essa tenho um carinho muito especial..
a Cinemateca de Lisboa faz 50 anos.
parabéns aos senhores félix ribeiro e joão bénard da costa, os directores da Cinemateca que, creio, habitaram os mesmos dias que eu. e parabéns a todos aqueles e aquelas que, atrás das cortinas, contribuíram e contribuem para que a nossa vida valha um bocadinho mais a pena.
porque o cinema é uma maravilha maravilhosa. porque o cinema salva-nos do mundo e, tantas vezes, de nós próprios.
parabéns, amigos.
* referência a um célebre poema de ruy belo ('odeio este tempo detergente').
28 setembro 2008
26 setembro 2008
'a história de uma mulher que sacrificou tudo por uma paixão devastadora, trágica, profana'?
como diz?
importa-se de repetir?
passando adiante daquele 'profana' (que quereriam dizer mesmo?), é esta a beleza do 'filme noir' com travo de 'série b'.
este post não faz nenhum sentido, para quem pode fazer sentido.
este post só faz algum sentido, para quem não pode, logisticamente digamos, fazer sentido.
é precisamente por isso que faz todo o sentido..
24 setembro 2008
you once talked to me about love and you painted pictures of a never-never land. and i could’ve gone to that place, but i didn’t understand…
elliot smith
i once talked to you about love and i painted pictures of a never-never land. and you could’ve gone to that place, but you didn’t understand..
john nobody
elliot smith
i once talked to you about love and i painted pictures of a never-never land. and you could’ve gone to that place, but you didn’t understand..
john nobody
queria dizer-te:
valeste a pena.
vejo-te agora
como o fruto maduro
que aceita a gravidade.
serena,
mais tu,
mais próxima, desconfio,
de agosto,
da claridade.
segues em paz,
em paz sigo.
peço-te:
não olhes para trás.
mulher, já não rapariga;
homem, já não rapaz.
23 setembro 2008
talvez os poucos devotos do jardim ainda se lembrem que os 'the go-betweens' são uma paixão assumida e assolapada, como dantes se dizia.
esta canção ('bye bye pride'), que não é das minhas favoritas, é óptima e o videozinho quase perfeito.
mas o que vos queria mesmo dizer é que encontrei, num comentário daqueles que a rapaziada coloca no 'you tube', a melhor frase sobre esta banda (para muitos, a melhor banda pop dos anos 80, 'tout court'):
'o mundo é um lugar melhor por causa dos the go-betweens.'
sejas quem fores, o meu obrigado. é exactamente isso que esta música fez/faz de mim.. um pessoa milimetricamente melhor. não conheço melhor elogio.
22 setembro 2008
as vozes
a infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta
– quem é?
– é a mãe morta
– são coisas passadas
– não é ninguém
tantas vozes fora de nós!
e se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? e se nos fomos embora?
e se ficámos sós?
manuel antónio pina
a infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta
– quem é?
– é a mãe morta
– são coisas passadas
– não é ninguém
tantas vozes fora de nós!
e se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? e se nos fomos embora?
e se ficámos sós?
manuel antónio pina
caro miguel gomes,
talvez esta seja uma forma meio bizantina de falar do seu mais recente filme - 'aquele querido mês de agosto' -, mas é o que se arranja a esta hora da manhã.
agora que já despachei o domínio da língua, e que em consonância já me pode ver como um formalista que domina a caneta como o meu estimado amigo domina a câmara (ou melhor, o plano, coisa bem mais difícil do que dominar a máquina só por si), vamos ao que interessa.
fui ontem, finalmente, espreitar este seu mais recente filme. façamos aqui uma elipse, que é para despachar o assunto para aqueles leitores mais pós-modernos, amantes da velocidade fulminante: no final, só me apeteceu levantar da cadeira e bater palmas. muitas palmas. muitas, muitas palmas.
o estimado miguel conseguiu uma coisa que neste arremedo de país é da ordem do milagre - com uma equipazinha, um orçamentozinho, a boa graça de muita gentinha, mandou esta doença da pequenez auto-indulgente às malvas e fez um filmão. um filmão, porque sim; um filmão, porque não. expliquemo-nos.
'aquele querido mês de agosto', já toda a gente o disse, é uma mistura hábil de documentário (a primeira metade do filme, grosso modo) e de ficção (a segunda metade). a meio, processa-se uma espécie de osmose fusional perfeita: ver os personagens aparecerem nos rostos dos actores que, ainda há segundos, ali estavam, enquanto actores, e achar isso absolutamente normal. todo o cinema é um sistema de crença(s). os americanos usam muito o 'suspension of belief' como um dos aspectos quintessenciais do grande cinema. o que o meu amigo faz é isso mesmo, conduz-nos por um infinito jogo de espelhos - só que, ao contrário do habitual no cinema de ficção, todo o processo é de uma transparência que só pode ser o seu oposto: enigmática e quase metafísica. quandos os seus actores aparecem como actores (falando do filme que há-de vir ou que estão a filmar), existe já encenação? o realismo quase documental, quase cinema directo, é o que parece - uma meticulosa procura da espontaneidade? ou, pelo contrário, a espontaneidade é, neste caso, a verdade em estado bruto? mas o meu amigo vai ainda mais longe, fazendo, ao longo da segunda parte do filme - a que corresponde o segmento ficcionado, aparentemente - subtis inflexões (deixando os actores 'desencarnarem' personagens, exibindo todo o artifício por uns instantes, para logo retomarem o jogo ficcional). fazê-lo, no papel, pode parecer simples. fazê-lo da forma que o miguel o faz é um prodígio.
podíamos abordar neste escrito quase todas as cenas do filme. há em todas elas um tal domínio de composição do plano que, como se diz dos tarantinos da vida, roça o insultuoso - quando a esmola é muita, o pobre desconfia, diz o bom povo e com alguma razão. claro que não o podemos fazer, seria (ainda) mais fastidioso. mas há planos assombrosos, diálogos justos, ausência de complacência, secura q.b., portugal à solta, ficção vinda da realidade (paulo moleiro, rapaz 'bigger than life', não é verdade?), realidade sociológica e quase antropológica, uma corrente subterrânea à la douglas sirk, robert bresson e o seu método, um piscar de olhos a (ou de?) joão césar monteiro, a abrir o filme. mas nada disto precisa de ser invocado, é apenas vício de cinéfilo amador e crítico blasée. o seu filme é toda uma outra coisa e ainda procuramos as palavras certas.
acima referimos, em jeito de jogo semântico, que o seu filme é também 'um filmão porque não'. devemos-lhe uma palavra de explicação. a ela.
o seu filme podia ser uma história de amor. não é.
o seu filme podia ser uma digressão etnográfica. não é.
o seu filme podia ser um melodrama estival, com vista para serra. não é.
o seu filme podia ser um tese de doutoramento em cinema moderno. não é.
o seu filme podia ser uma indagação partilhada sobre o que é ser actor. não é.
o seu filme podia ser uma espécie de musical proto-pimba, castiço até mais não. não é.
o seu filme podia ser uma comédia inteligente, ligeiramente patusca e gozando com essa coisa que é a alma portuguesa, tal como visível no quotidiano banal. não é.
o seu filme podia ser um registo em 'huis clos', um 'jeu de massacre' emocional, em torno do triângulo/quadrilátero ficcional do filme (pai, filha, o primo e interesse amoroso daquela, a mãe e mulher ausente dos primeiros personagens). não é.
o seu filme não é nada disto 'per se'. e, no entanto, claro está, é tudo isto. só que é muito mais do que isto. no diálogo final, já o segmento ficcional acabou - acabou? - discute, na presença do núcleo duro da equipa de filmagem, com o seu director de som, queixando-se de que existem no material filmado 'sons que não estão lá'. o seu director responde-lhe que, e citamos de memória, que 'não lhe interessa nada o que está lá, para isso há uma data de outros tipos; ele vai e capta outra coisa, porque ele vai ao encontro do que lhe interessa escutar e captar. seja ou não tecnicamente possível.'
ao fim de duas horas e meia de filme, este é o único argumento de tese. sim, este filme é sobre o que está lá (o registo das festividades e do quotidiano de verão, numa vilazinha da beira interior, tempo de festas e romarias, mistura de rituais antigos e praxis modernas, regresso de emigrantes, sagrado e profano de mão dada, sempre ao som do cançonetismo popular ligeiro) e sobre o que não está lá (a grandeza humana que, maior do que qualquer ficção idealizada, se esconde em cada um de nós; os enredos implícitos; a humanidade em estado de graça, quando expôe toda a sua sublime e tocante paleta de emoções).
a mim, que sou quase da zona em que rodou o filme, que cresci também rodeado por manifestações populares semelhantes às que filmou; que conheci histórias e pessoas de carne e osso que ultrapassam pela esquerda e direita as mais criativas personagens de ficção; que tremi com os fogos de verão, à beira do meu pequeno mundo; que cresci por entre aquela mesma presença, por vezes opressiva, da natureza; que reconheci no filme as cores exactas da paisagem.. a mim, o seu filme maravilhou-me.
por isso, me levanto metaforicamente e lhe bato estas palmas. ao som de 'a morrer de amor', de josé cid, para sempre imortalizada pela banda 'estrelas do alva', banda musical que não existe, num filme que talvez não exista para quem não o saiba ver, cantada por uma menina que não sabemos se existe, nessa cena, como actriz ou como menina de carne e osso e biografia civil.
e nada precisarmos de saber de ciência certa, para tudo sentirmos.
bravo!
21 setembro 2008
por entre algumas atrocidades estéticas e outras tantas jóias da música pop (que o acesso limitado a meios culturais e tecnológicos misturava com generosidade imensa e parco critério), estava este duo da chamada pop pastilha elástica de sabor italiano - e eles sabiam da coisa.
'take me up' é um exemplo simples simples de como tantas e tantas vezes 'less is more'. os rapazes chamavam-se simplesmente 'scotch' e tentavam o 'hit global'.
estávamos em 1985. o país era portugal. e eu tinha 13 para 14 anos - a idade em que me senti, pela segunda vez (e desta feita em definitivo), adulto.
you take me up
with anything
(e esperava, por esses dias, que esse 'you', como o desenho animado que salta da folha de papel no videozinho da canção, deixasse de ser um sujeito abstracto para passar a ser um rosto concreto..)
18 setembro 2008
the flaming lips, 'do you realize'
do you realize?
(o livro)
havia de encontrar
alguma ferida antiga
e nela, supurando ainda,
teu rosto:
outonos e infernos
esquecidos
entre páginas amareladas
e a dor,
essa inútil traça.
micheliny verunschk
(brasil, recife, nascida em 1972)
17 setembro 2008
kings of leon, 'sex on fire'
southern retro rock?
ou só bom?
porque quando atravessamos o outono, o rock, às vezes, salva.
15 setembro 2008
o primeiro dia
faz, daqui a 2 semanas, 30 anos que entrei para os bancos de escola. hoje, ao passear manhã cedo pela cidade, reparei na azáfama própria deste dia. miúdos sonolentos, miúdos sorridentes, miúdos efervescentes, mais as suas mães, pais, avôs, avós, irmãos, irmãs, mochilas e estojos, cadernos e livros.
há 30 anos, entrei para a escola primária do guardão, próximo da hoje vila do caramulo, concelho de tondela, distrito de viseu, região da beira alta. 4 anos de escola primária começaram nesse dia.
nesse mesmo dia, começou também a minha forte experiência inter-classista, ao ser colega de meninos e meninas que andavam quilómetros para ir à escola, vestidos humildemente, habituados a ir à escola e a trabalhar nos campos. lembro-me de histórias, pequenos episódios, nesses dias em que o caminho para a escola era toda uma aventura, por entre árvores frondosas, atravessando uma pequena floresta que me parecia a amazónia, olhando os passaritos. lembro-me do dia em que achei uma boa de futebol (que alegria!), lembro-me de caminhar com o jorge e o zé - irmãos entre si e irmãos da minha infância -, lembro-me daquele colega (o cesário) cuja mãe costurou uma capucha (peça de corte uníca, em tecido grosso, normalmente preta ou castanha, que incorpora capa e capuz, própria para guardar o gado ou fazer a lida dos campos, nesse inverno frio de outros tempos) enquanto ele rezava o terço. lembro-me de se comentar esta história e de os miúdos - nós - olharem para ele e a sua capucha com um respeito indefinível. não sei se é lenda, se é uma história verdadeira, mas sei que, muitos anos depois, aprendi com john ford que 'quando a lenda ultrapassa a realidade, publique-se a lenda'. lembro-me de nessoutro primeiro dia ter ido e regressado são e salvo pela mão da minha querida tia alzira, a terceira avó que tive a sorte de ter tido a meu lado.
[fazes-me falta, tia, sabes? lembro-me de estares doente, de já quase não me reconheceres, lembro-me de ir para o quarto, já homem feito, chorar em pranto, de dar murros na cama, de me revoltar contra a impotência que é ver uma mulher que foi santa em vida apagar-se assim. lembro-me de tudo. do sabor da bolacha maria esmagada com banana, que me davas ao lanche. desses tempos em que a educação era tão diferente destes manuais de regra e esquadro que hoje são o sabor da época.]
nesse dia, ainda não sabia o que viria. esse, agora e sempre, o maior mistério da vida - o nunca sabermos o que vem aí. viria a primária, o ciclo preparatório, em tondela, o liceu, ainda em tondela, com passagem pelo meio por campo de besteiros e regresso a tondela. um percurso 100% em escolas públicas, de que muito me orgulho. mais tarde a católica, em lisboa ('a melhor escola portuguesa, na área' - e lá vim eu, a caminho da minha nova vida, sem o saber). frequência de pós-graduações na faculdade dita clássica de direito de lisboa e, novamente, na universidade católica, desta feita na faculdade de ciências humanas. foram assim, estes trinta anos, no plano académico, desde esse dia em que, pela primeira vez, me sentei numa carteira de escola.
meninos e meninas com que hoje me cruzei: sejam felizes, aproveitem a escolinha, não tenham medo da diferença, habituem-se a respeitar os outros, lutem pelos vossos sonhos, ainda que hoje pequeninos eles crescerão convosco, façam da vossa escola uma coisa bonita, terna, honrada. sejam bons para os meninos e meninas que vos pareçam tristes, sózinhos, diferentes dos outros. pensem que ir à escola é, ainda hoje neste vergonhoso mundo, um privilégio. vocês não podem pensar nisto tudo, porque são pequeninos, mas estas coisinhas vão começar a aparecer, devagarinho, à medida que o tempo for fazendo das suas. uns de vós, mudarão a vossa casa. outros, mudarão a vossa rua. outros ainda, mudarão a vossa cidade. algures, uns quantos mudarão o mundo. quando essa altura chegar, escolham o lado certo, sim? sejam a mudança que constrói, a força suave, a luz que persiste. lembrem-se, então, desse vosso primeiro dia - este dia em que vos escrevo palavras que nunca lerão. e pensem que nesse mesmo dia, daqui a vinte ou trinta anos, muitos outros meninos e meninas estarão a entrar para o seu primeiro dia de escola. se pensarem bem e se olharem bem, mas mesmo bem, para dentro de vós, perceberão que a pergunta-chave é que mundo quererão, nessa altura em que estarão em todo o vosso esplendor de capacidades humanas, deixar-lhes. verão que a resposta nascerá dentro de vós, com uma força vitalista e imparável e transformadora.
porque hoje, hoje é o primeiro dia do resto das vossas vidas.
e das nossas.
há 30 anos, entrei para a escola primária do guardão, próximo da hoje vila do caramulo, concelho de tondela, distrito de viseu, região da beira alta. 4 anos de escola primária começaram nesse dia.
nesse mesmo dia, começou também a minha forte experiência inter-classista, ao ser colega de meninos e meninas que andavam quilómetros para ir à escola, vestidos humildemente, habituados a ir à escola e a trabalhar nos campos. lembro-me de histórias, pequenos episódios, nesses dias em que o caminho para a escola era toda uma aventura, por entre árvores frondosas, atravessando uma pequena floresta que me parecia a amazónia, olhando os passaritos. lembro-me do dia em que achei uma boa de futebol (que alegria!), lembro-me de caminhar com o jorge e o zé - irmãos entre si e irmãos da minha infância -, lembro-me daquele colega (o cesário) cuja mãe costurou uma capucha (peça de corte uníca, em tecido grosso, normalmente preta ou castanha, que incorpora capa e capuz, própria para guardar o gado ou fazer a lida dos campos, nesse inverno frio de outros tempos) enquanto ele rezava o terço. lembro-me de se comentar esta história e de os miúdos - nós - olharem para ele e a sua capucha com um respeito indefinível. não sei se é lenda, se é uma história verdadeira, mas sei que, muitos anos depois, aprendi com john ford que 'quando a lenda ultrapassa a realidade, publique-se a lenda'. lembro-me de nessoutro primeiro dia ter ido e regressado são e salvo pela mão da minha querida tia alzira, a terceira avó que tive a sorte de ter tido a meu lado.
[fazes-me falta, tia, sabes? lembro-me de estares doente, de já quase não me reconheceres, lembro-me de ir para o quarto, já homem feito, chorar em pranto, de dar murros na cama, de me revoltar contra a impotência que é ver uma mulher que foi santa em vida apagar-se assim. lembro-me de tudo. do sabor da bolacha maria esmagada com banana, que me davas ao lanche. desses tempos em que a educação era tão diferente destes manuais de regra e esquadro que hoje são o sabor da época.]
nesse dia, ainda não sabia o que viria. esse, agora e sempre, o maior mistério da vida - o nunca sabermos o que vem aí. viria a primária, o ciclo preparatório, em tondela, o liceu, ainda em tondela, com passagem pelo meio por campo de besteiros e regresso a tondela. um percurso 100% em escolas públicas, de que muito me orgulho. mais tarde a católica, em lisboa ('a melhor escola portuguesa, na área' - e lá vim eu, a caminho da minha nova vida, sem o saber). frequência de pós-graduações na faculdade dita clássica de direito de lisboa e, novamente, na universidade católica, desta feita na faculdade de ciências humanas. foram assim, estes trinta anos, no plano académico, desde esse dia em que, pela primeira vez, me sentei numa carteira de escola.
meninos e meninas com que hoje me cruzei: sejam felizes, aproveitem a escolinha, não tenham medo da diferença, habituem-se a respeitar os outros, lutem pelos vossos sonhos, ainda que hoje pequeninos eles crescerão convosco, façam da vossa escola uma coisa bonita, terna, honrada. sejam bons para os meninos e meninas que vos pareçam tristes, sózinhos, diferentes dos outros. pensem que ir à escola é, ainda hoje neste vergonhoso mundo, um privilégio. vocês não podem pensar nisto tudo, porque são pequeninos, mas estas coisinhas vão começar a aparecer, devagarinho, à medida que o tempo for fazendo das suas. uns de vós, mudarão a vossa casa. outros, mudarão a vossa rua. outros ainda, mudarão a vossa cidade. algures, uns quantos mudarão o mundo. quando essa altura chegar, escolham o lado certo, sim? sejam a mudança que constrói, a força suave, a luz que persiste. lembrem-se, então, desse vosso primeiro dia - este dia em que vos escrevo palavras que nunca lerão. e pensem que nesse mesmo dia, daqui a vinte ou trinta anos, muitos outros meninos e meninas estarão a entrar para o seu primeiro dia de escola. se pensarem bem e se olharem bem, mas mesmo bem, para dentro de vós, perceberão que a pergunta-chave é que mundo quererão, nessa altura em que estarão em todo o vosso esplendor de capacidades humanas, deixar-lhes. verão que a resposta nascerá dentro de vós, com uma força vitalista e imparável e transformadora.
porque hoje, hoje é o primeiro dia do resto das vossas vidas.
e das nossas.
forte & feio; delicado & bonito.
o primeiro representante do algarve numa selecção nacional de futebol juvenil.
centro-campista de categoria, nas equipas do torralta, portimonense, farense, nos anos 80.
jogador amador e porteiro de discoteca.
trabalhador na indústria dos cruzeiros de lazer.
empregado de mesa, num restaurante típico, em portimão.
colega de jogadores como vado, que fez carreira na nossa primeira divisão.
colega de jogadores como chalana, nas camadas jovens (selecções).
'nesses tempos, o futebol não era como agora. ganhava mais do que o chalana, na altura, lembro-me de conversarmos. quando era jogador de dia e porteiro de noite(!), ganhava mais no emprego, entre salário, gratificações e gorjetas do que a jogar à bola. agora é imoral o que esses miúdos ganham.'
chama-se miguel afonso, tem 47 anos. encontrei-o, num restaurante do algarve. chamou-me a atenção a sua anormal elegância física e o sorriso aberto para uma criança que me acompanhava, nesse jantar com amigos. nem simpático, nem fechado. algarvio, mas com um indefinível suplemento de classe. meia-hora depois, perceberia porquê. coisas da vida.
nos anos 80, eu já lia afincadamente sobre tudo, futebol incluído. não juro, mas tenho uma forte convicção de que me lembrava desse nome, miguel afonso, das equipas algarvias que garbosamente representavam, nesses dias, o algarve.
um abraço, caro miguel. o peixe estava uma delícia - mas o que me ficou desse jantar é toda uma outra coisa. o que me ficou desse jantar.. foi o senhor.
centro-campista de categoria, nas equipas do torralta, portimonense, farense, nos anos 80.
jogador amador e porteiro de discoteca.
trabalhador na indústria dos cruzeiros de lazer.
empregado de mesa, num restaurante típico, em portimão.
colega de jogadores como vado, que fez carreira na nossa primeira divisão.
colega de jogadores como chalana, nas camadas jovens (selecções).
'nesses tempos, o futebol não era como agora. ganhava mais do que o chalana, na altura, lembro-me de conversarmos. quando era jogador de dia e porteiro de noite(!), ganhava mais no emprego, entre salário, gratificações e gorjetas do que a jogar à bola. agora é imoral o que esses miúdos ganham.'
chama-se miguel afonso, tem 47 anos. encontrei-o, num restaurante do algarve. chamou-me a atenção a sua anormal elegância física e o sorriso aberto para uma criança que me acompanhava, nesse jantar com amigos. nem simpático, nem fechado. algarvio, mas com um indefinível suplemento de classe. meia-hora depois, perceberia porquê. coisas da vida.
nos anos 80, eu já lia afincadamente sobre tudo, futebol incluído. não juro, mas tenho uma forte convicção de que me lembrava desse nome, miguel afonso, das equipas algarvias que garbosamente representavam, nesses dias, o algarve.
um abraço, caro miguel. o peixe estava uma delícia - mas o que me ficou desse jantar é toda uma outra coisa. o que me ficou desse jantar.. foi o senhor.
12 setembro 2008
(bom fim-de-semana)
william devaughn, 'be thankful for what you've got'
- diz-me: o que te comove?
- shhhiuuuu.... vem e vê....
'before the devil knows you're dead', de sidney lumet
um bem carpinteirado filme de 3,5 estrelas (em cinco).
sinal dos tempos, dele dizer que vale 5. os critérios ajustam-se aos objectos de análise, é o que é. e estes últimos andam fraquinhos.
já philip seymour hoffman está cada vez melhor.
ou, como diria alguém:
- sim, eu acredito em Deus. e em al pacino.
11 setembro 2008
10 setembro 2008
09 setembro 2008
era para ver um relâmpago
que abri a página era
para fazer fogo que
escrevi amor.
andréa catrópa
[brasileira, nascida em são paulo, no ano de 1974]
que abri a página era
para fazer fogo que
escrevi amor.
andréa catrópa
[brasileira, nascida em são paulo, no ano de 1974]
ela é uma senhorita muito bem sucedida, de acordo com o moderno cânone ocidental. muito senhora do seu nariz, polemista por natureza e devoção, dir-se-ia que se encerra a si próprio naquele limbo dos que, se quisessem, poderiam ir muito mais além, mas que, por fascínio pelas luzes, 'vão ficando aquém'.
ela é uma senhorita que tem uma corte de 'inimigos de estimação', como sempre têm as pessoas que se destacam em países pequenos. de justiça, porém, dizer que uma generosa fatia de anti-corpos são por ela própria alimentados, com zelo e disciplina, espécie de caução para o seu próprio lugar no tecido da indústria (e da sociedade) em cujas águas navega.
ela é uma senhorita que não merece a minha atenção, nem a minha simpatia, nem a minha condescendência, nem nada de mim - a não ser tudo, pelo simples facto de ser minha semelhante, no sentido lato da palavra (e essencial).
nos últimos tempos, em plena 'silly season', tenho-me deparado com escritos dela, aqui e ali, soltos ao vento, sem grande critério que não o de continuar a alimentar 'o grande circo'.
e eis senão quando.. começo a reparar no muito que tenho a aprender / no muito que tenho aprendido com ela. por muito que me custe reconhecer, há nela uma coisa que ela tenta disfarçar com a sua permanente propensão para a 'boutade', para a 'estilização': capacidade de perceber (raro) e capacidade de explicar o que percebe (mais raro), de forma muito simples (ainda mais raro).
a lição? humildade (para mim). e a constatação daquela frase que tantas vezes usei: 'nos terrenos mais inóspitos, nos solos mais improváveis, nascem as mais belas flores'.
ora toma, gi.
maximilian hecker, 'kate moss'
seven days and not one glance from her
seven days are a thousand years
seven days and not one word of her
this is more than i could stand
'don't call back
don't call back', she said
girl, i love you.
08 setembro 2008
oh, brother, where have you been?
[mickey rourke está de volta. o realizador do premiado 'the wrestler', darren aronofsky, ao receber o prémio de veneza, este fim-de-semana, agradeceu ao actor 'por ter aberto a sua alma e o seu coração para a câmara, mostrando ao mundo inteiro o actor extraordinário que é'. o filme conta a história de mais um 'looser', um 'has been', no caso um antigo campeão de wrestling. é caso para perguntar:
- mr. aronofsky, o seu filme é de ficção ou é um documentário sobre o mr. rourke?].
52
'the eskimos had fifty-two names for snow because it was important to them; there ought to be as many for love.'
margaret atwood
margaret atwood
07 setembro 2008
05 setembro 2008
nina nastasia, 'the day i would bury you'
[nem sempre o que temos para dizer é bonito de se dizer; mas, às vezes, temos que dizer. no matter what.]
04 setembro 2008
1. para quem sabe destas coisas, os 'red house painters' seriam uma escolha mais ou menos óbvia para o 'flores de inverno' ou para a 'estação de inverno'. se repararem bem, aqueles que acompanham estas coisas há quase dois anos, nunca por aqui (ou por ali) passaram estes senhores. dizer estes senhores é dizer mark kozelek, o líder desta banda de encartados 'sad-core-masters'. porque este é daqueles casos em que ele é a banda.
2. hoje, ao escrevinhar por aqui uns 'posts', lembrei-me, por alguma razão insondável, dos 'red house painters'. mas, de seguida, logo esqueci. e segui.
3. no único comentário aos 'posts' mais recentes, uma visita que anuncia sempre a primavera brindou-me(nos) com o videozinho acima. é uma extraordinária coincidência. e coisas extraordinárias merecem tratamento extraordinário - por isso mesmo, aqui estão, pela primeira vez, os 'red house painters'.
4. mas qual a razão para afastar os 'red house painters'? são, inclusivé, uma das bandas favoritas de um dos meus inspiradores - no caso da 'estação de inverno' -, o ricardo mariano, autor do nunca por demais elogiado 'vidro azul' (blog e programa de rádio, na RUC e, mais recentemente e muito merecidamente, na Radar).
5. digamos que o mark kozelek conheceu, em tempos, uma pessoa muito importante para mim. e que essa pessoa falou de mim ao mark kozelek. e que, algures nas muitas canções escritas desde esse dia por ele, intuo a presença dessa pessoa e.. a minha. esses meus dias de chumbo andam por ali. e convenhamos que olhar para um espelho deste calibre, amplificado para o mundo pelo talento de uma pessoa como o mark kozelek, não nos devolve uma imagem bonita. assusta. e muito.
6. para quem não se perde (ou algures no tempo se perdeu) nas delícias negras do 'sad core' (os modernos depressivos lentos, se quisermos uma definição apressada deste sub-género musical), para quem não liga a estas coisas, para quem nunca provou o sabor do chumbo.. estas palavras não dizem nada. este 'post' não é, pois, para vós. já para os outros, bem, para os outros, aqui fica mais um fantasma morto. mark, é tempo de saíres da gaveta dos fundos. já não tenho medo de ti e, no fundo do fundo, desse eu que, suspeito, retratavas, nesses teus dias pós-portugal, há uns bons anos atrás. esses tempos de mails transatlânticos, lembras-te? agora, já não importa(s). e ainda bem.
[nunca contei esta história a ninguém. se calhar, inventei-a. se calhar, não. se calhar, existo. se calhar, não.]
obrigado, primavera.
sim, o inverno.
o grande romance falhado 01
naquele dia de março, estava longe de imaginar que os meses que se seguiriam teriam, no plano geral da sua vida, a importância decisiva que, sabe-o hoje, viriam a ter. a mesma sensação de espanto infantil que o atravessara muitos anos antes, naquela noite em que um foguete luminoso se acendeu à sua frente, vindo do nada e inundando de luz o negro mais escuro, entrava nele outra vez, sem pedir qualquer espécie de licença. muitos anos se passaram até esse dia e muitos se iriam passar depois desse dia. mas, sem o saber antes e não o podendo ignorar depois, esse seria o seu dia decisivo, o seu instante seminal - o dia d que alguns têm em si. como uma bomba-relógio, meticulosamente preparada e fulminantemente certeira, à hora marcada desse dia, as coisas mudaram, para sempre. mundos novos nascem de coisas assim.
no dia em que nasceu, fazia 27 anos. esta é a sua história.
no dia em que nasceu, fazia 27 anos. esta é a sua história.
erich fromm
[algures, num site sobre a obra deste intelectual do século XX, diz-se: 'este site é dedicado a erich fromm, um dos intelectuais mais honestos da história do pensamento'. vale a pena descobrir, se a isso estiverem dispostos. nem sempre encontrarão o suporte para as vossas 'reflexões emocionalmente agradáveis', mas irão ao encontro de uma voz que vos pode ajudar a 'viver melhor'. num tempo em que proliferam os livros e toda a parafernália relacionada com o conceito de 'auto ajuda' ('self help'?), eu vou mais pelo 'help yourself' ('sirva-se').. a iguaria é de primeira, apesar do sabor agridoce (ou do 'bitter twist').]
03 setembro 2008
se isto é 'só cinema', eu vou ali e já venho.
quando me lembro de 'filmes de formação', este está sempre lá.
isto não é um filme - é um milagre.
a sarjeta e as estrelas,
o riso solto e animalesco e as lágrimas secas,
a gesta humana, num filme em que o grotesco comove. por ser tão humano, mesmo sob o traço grosso da caricatura.
único.
inesquecível.
'feios, porcos e maus', um filme de ettore scola.
de quinta para sexta, algures próximo da 1h00 da manhã, na rtp 1.