caro miguel gomes,
talvez esta seja uma forma meio bizantina de falar do seu mais recente filme - 'aquele querido mês de agosto' -, mas é o que se arranja a esta hora da manhã.
agora que já despachei o domínio da língua, e que em consonância já me pode ver como um formalista que domina a caneta como o meu estimado amigo domina a câmara (ou melhor, o plano, coisa bem mais difícil do que dominar a máquina só por si), vamos ao que interessa.
fui ontem, finalmente, espreitar este seu mais recente filme. façamos aqui uma elipse, que é para despachar o assunto para aqueles leitores mais pós-modernos, amantes da velocidade fulminante: no final, só me apeteceu levantar da cadeira e bater palmas. muitas palmas. muitas, muitas palmas.
o estimado miguel conseguiu uma coisa que neste arremedo de país é da ordem do milagre - com uma equipazinha, um orçamentozinho, a boa graça de muita gentinha, mandou esta doença da pequenez auto-indulgente às malvas e fez um filmão. um filmão, porque sim; um filmão, porque não. expliquemo-nos.
'aquele querido mês de agosto', já toda a gente o disse, é uma mistura hábil de documentário (a primeira metade do filme, grosso modo) e de ficção (a segunda metade). a meio, processa-se uma espécie de osmose fusional perfeita: ver os personagens aparecerem nos rostos dos actores que, ainda há segundos, ali estavam, enquanto actores, e achar isso absolutamente normal. todo o cinema é um sistema de crença(s). os americanos usam muito o 'suspension of belief' como um dos aspectos quintessenciais do grande cinema. o que o meu amigo faz é isso mesmo, conduz-nos por um infinito jogo de espelhos - só que, ao contrário do habitual no cinema de ficção, todo o processo é de uma transparência que só pode ser o seu oposto: enigmática e quase metafísica. quandos os seus actores aparecem como actores (falando do filme que há-de vir ou que estão a filmar), existe já encenação? o realismo quase documental, quase cinema directo, é o que parece - uma meticulosa procura da espontaneidade? ou, pelo contrário, a espontaneidade é, neste caso, a verdade em estado bruto? mas o meu amigo vai ainda mais longe, fazendo, ao longo da segunda parte do filme - a que corresponde o segmento ficcionado, aparentemente - subtis inflexões (deixando os actores 'desencarnarem' personagens, exibindo todo o artifício por uns instantes, para logo retomarem o jogo ficcional). fazê-lo, no papel, pode parecer simples. fazê-lo da forma que o miguel o faz é um prodígio.
podíamos abordar neste escrito quase todas as cenas do filme. há em todas elas um tal domínio de composição do plano que, como se diz dos tarantinos da vida, roça o insultuoso - quando a esmola é muita, o pobre desconfia, diz o bom povo e com alguma razão. claro que não o podemos fazer, seria (ainda) mais fastidioso. mas há planos assombrosos, diálogos justos, ausência de complacência, secura q.b., portugal à solta, ficção vinda da realidade (paulo moleiro, rapaz 'bigger than life', não é verdade?), realidade sociológica e quase antropológica, uma corrente subterrânea à la douglas sirk, robert bresson e o seu método, um piscar de olhos a (ou de?) joão césar monteiro, a abrir o filme. mas nada disto precisa de ser invocado, é apenas vício de cinéfilo amador e crítico blasée. o seu filme é toda uma outra coisa e ainda procuramos as palavras certas.
acima referimos, em jeito de jogo semântico, que o seu filme é também 'um filmão porque não'. devemos-lhe uma palavra de explicação. a ela.
o seu filme podia ser uma história de amor. não é.
o seu filme podia ser uma digressão etnográfica. não é.
o seu filme podia ser um melodrama estival, com vista para serra. não é.
o seu filme podia ser um tese de doutoramento em cinema moderno. não é.
o seu filme podia ser uma indagação partilhada sobre o que é ser actor. não é.
o seu filme podia ser uma espécie de musical proto-pimba, castiço até mais não. não é.
o seu filme podia ser uma comédia inteligente, ligeiramente patusca e gozando com essa coisa que é a alma portuguesa, tal como visível no quotidiano banal. não é.
o seu filme podia ser um registo em 'huis clos', um 'jeu de massacre' emocional, em torno do triângulo/quadrilátero ficcional do filme (pai, filha, o primo e interesse amoroso daquela, a mãe e mulher ausente dos primeiros personagens). não é.
o seu filme não é nada disto 'per se'. e, no entanto, claro está, é tudo isto. só que é muito mais do que isto. no diálogo final, já o segmento ficcional acabou - acabou? - discute, na presença do núcleo duro da equipa de filmagem, com o seu director de som, queixando-se de que existem no material filmado 'sons que não estão lá'. o seu director responde-lhe que, e citamos de memória, que 'não lhe interessa nada o que está lá, para isso há uma data de outros tipos; ele vai e capta outra coisa, porque ele vai ao encontro do que lhe interessa escutar e captar. seja ou não tecnicamente possível.'
ao fim de duas horas e meia de filme, este é o único argumento de tese. sim, este filme é sobre o que está lá (o registo das festividades e do quotidiano de verão, numa vilazinha da beira interior, tempo de festas e romarias, mistura de rituais antigos e praxis modernas, regresso de emigrantes, sagrado e profano de mão dada, sempre ao som do cançonetismo popular ligeiro) e sobre o que não está lá (a grandeza humana que, maior do que qualquer ficção idealizada, se esconde em cada um de nós; os enredos implícitos; a humanidade em estado de graça, quando expôe toda a sua sublime e tocante paleta de emoções).
a mim, que sou quase da zona em que rodou o filme, que cresci também rodeado por manifestações populares semelhantes às que filmou; que conheci histórias e pessoas de carne e osso que ultrapassam pela esquerda e direita as mais criativas personagens de ficção; que tremi com os fogos de verão, à beira do meu pequeno mundo; que cresci por entre aquela mesma presença, por vezes opressiva, da natureza; que reconheci no filme as cores exactas da paisagem.. a mim, o seu filme maravilhou-me.
por isso, me levanto metaforicamente e lhe bato estas palmas. ao som de 'a morrer de amor', de josé cid, para sempre imortalizada pela banda 'estrelas do alva', banda musical que não existe, num filme que talvez não exista para quem não o saiba ver, cantada por uma menina que não sabemos se existe, nessa cena, como actriz ou como menina de carne e osso e biografia civil.
e nada precisarmos de saber de ciência certa, para tudo sentirmos.
bravo!
2 Comments:
Amigo Gi, e eu aplaudo as tuas palavras, que são mais do que uma justa homenagem a quem faz um filme assim, num país como o nosso...
Também eu senti muitas das emoções que aqui encarnas, também eu senti ecos de um tempo que para mim ficou feliz ou infelizmente no passado. Mas que ainda recordo com alguma melancolia. E foi assim que o filme também me deixou.
Adorei, claro. A forma como somos iludidos quanto ao que é real e o que é ficcionado é feita de uma maneira como nunca, e saliento bem o nunca, vi em cinema.
Brilhante. O filme do Miguel. E as palavras do Gi.
Abraço.
amigo nuno,
como sempre, conjugas gentileza e delicadeza no tempo verbal certo: presente do indicativo.
muito obrigado eu.
quanto às palmas, elas vão, inteira e justamente, para o miguel gomes - às vezes, 'os rapazes de lisboa' são como nenhuns outros..
um abraço. e, uma vez mais, muito obrigado pela tua generosidade.
flores,
gi.
Enviar um comentário
<< Home