30 maio 2008




vinhas da escola, após mais um dia preenchido com aulas (que despachavas em ritmo imperial), conversas infindáveis, jogos de matraquilhos (um gosto que ficou), discos emprestados de bandas e cantores que eram um continente para ti novo, imenso, infindável, após uma viagem de autocarro que era, como dizer, um bálsamo anti-melancolia. falavas toda a viagem com os teus colegas, amigos, camaradas, irmãos, tudo a um tempo, incessantemente, numa vertigem de energia, 'joie de vivre', num redemoínho de alegria. saías a correr do autocarro, quando vinhas a seguir ao almoço, corrias para casa (andavas sempre a correr, parece-te hoje), almoçavas o que a tua querida mamã deixara (ou a empregada de ocasião preparara) e lá ias tu, a correr, sempre a correr, chamar o luis, o daniel, o luis pedro, o jorge, o filipe, o miguel, o nuno, o tó, quem calhava. muitos já lá estavam. corrias, por atalhos, serra acima, como se não houvesse amanhã e ontem fosse já um planeta distante. comias um pão com marmelada ou doce de abóbora caseiro enquanto voavas, difícil já dizer se era boneco animado, herói de bd ou menino quase rapaz. fizesse sol, chuva, vento, calor ou frio, jogatana de futebol tarde dentro. regresso a casa, a correr, sempre a correr, a tempo de ires ver os desenhos animados ou, mais tarde, os videos da 'europe tv', no célebre 'countdown' do não menos célebre adam curry. finalmente o vídeo matava a estrela da rádio, nesses idos anos oitenta, em plena serra, algures na beira alta. vias desenhos animados com as tuas irmãs, gostavas de tudo, gostavas de todos, sempre sempre sempre vivendo prego a fundo, acelerador de sentidos a fundo, sorvendo e bebendo o mundo do anime japonês mais 'mainstream' (sabes hoje), as adaptações dos clássicos americanos infanto-juvenis, as séries mais dramáticas (talvez nascesse aí o teu gosto pelos melodramas, pelas histórias arrebatadas e arrebatadoras), mas também desenhos animados de traço e história mais naives. tudo, como ainda hoje sabes, é bom, tudo é digno, tudo é vivo. nesses dias em que corrias, meu deus como corrias, fizeste desse espaço e desse tempo uma vertigem entontecedora, uma experiência mística, um delírio embriagante - do pouco, fazendo tudo. aí descobriste que a imaginação é um dom, que as avenidas da alma são maiores do que qualquer estrada americana, que mesmo sentado à porta de uma casa de província o mundo era o teu destino - porque tu eras e és o mundo. lembras-te desses dias, dos dias seguintes, das aventuras em motorizadas quase chaplinescas, das quedas em grupo das quais saías mais esfarrapado e mais feliz, num contra-senso formidável. dos primeiros amores não-correspondidos, do primeiro amor correspondido e desse abismo por entre os abismos em que, como sempre sempre sempre, mergulhaste de pé, num gesto radical e vertical, até à quase aniquilação (pela felicidade), samurai zen anacrónico, por entre ribeiros e eucaliptos, vinhas e veredas, bosques frondosos e céus com vista para o infinito. lembras-te das romarias de verão, das festas religiosas, dos ritos e dos rituais. da família e seus mapas. da clandestinidade subterrânea das tuas leituras - kakfa aos 11 anos, henry miller aos 13 anos, o mundo complexo desde sempre à tua beira, o expresso e o jornal de notícias desde o quê? os oito?. tudo recordas como se fosse hoje, como se fosse ontem, como se o teu peito dilacerado pela memória em implosão, precisasse desse mesmo ópio (a memória). sim, porque como disse o poeta, 'oh, eu estive lá'. e estar, para ti, é estar mesmo, é trazer gravado no corpo todas as cicatrizes da infância e todas as marcas da adolescência. a tua primeira juventude foi a juventude eterna, por isso dizes não, por isso recusas, por isso negas, por isso segues sempre a correr sempre a correr sempre a correr, vivendo a duzentos à hora, amando tudo e todos a duzentos à hora, por isso te entregas em sacrifício demodé às garras dos sentidos. 'não sou nada, nunca serei nada. à parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo', citas, de memória, um dos grande poetas que sempre trazes na algibeira. sentes saudades de tudo e de todos. e de todas. porque apenas e só nelas encontraste, a espaços, a paz. porque apenas e só nelas encontras sentido - escasso e volúvel, é certo, mas ainda assim sentido. porque apenas e só nelas foste capaz de fechar os olhos e enfim teres uns segundos de sossego. a correr, sempre a correr, elas foram, são e serão sempre sempre sempre o único antídoto contra esse horror que é sentir as unhas do mundo cravadas na pele e navalhas de gelo cortando-te por dentro. por isso és um 'fool for love', um louco ensandecido, jogador nos casinos mais improváveis, poeta falhado, homem em implosão.

se isto é um homem, italo calvino. se isto é um homem.

29 maio 2008

28 maio 2008

às vezes não sei bem se estou vivo
ou se é outro que vive em mim
(quem primeiro o disse não fui eu)

é que às vezes apetece mais a obscuridade
lúcida e lenta
que andar às voltas com a claridade
só para (por?) se ser diferente.

dúvida que em mim persiste:
onde encaixa a palavra demente?
pensa, pensa, insiste.
e da resposta
e de mim
essoutro (que afinal sou eu)
já só desiste.

digam lá:
não rimava aqui bem a palavra
triste?

nighthawks at the dinner

não sei se existe isto de que falo,
mas deixa-me reparar um pouco
no teu modo ternamente animal
de confundir palavras e sentimentos,
num quase-silêncio desabrigado e informe.

um corpo serve para muito pouco,
desde os caprichos da líbido
às infecções urinárias. coisas às vezes
parecidas que disfarçamos com vinho
e com uns restos de astúcia. não me ouças,
se não quiseres. ainda não se perdeu o lume
das mãos redondas com que te despes
a um canto, singularmente igual
ao que de ti recordo num outro Inverno
distante. deixemo-nos ficar esta noite,
enquanto tom waits nos volta a falar
de um camião chamado phantom 309
ou de outra coisa qualquer, singularmente
igual - um pouco mais triste, talvez.
não é isso que importa. também cada um de nós
terá um dia de se despistar ao encontro
de alguma certeza irrisória e no entanto mortal.

que o vinho não acabe, entretanto, e
que as canções não pereçam nesta noite
cativa do lume mas friamente corrupta.
só nos teus lábios posso encontrar os teus lábios.
eis uma parva verdade a que por vezes regresso,
mais importante decerto do que a sagess de verlaine
ou do que aquele velho bar onde dantes, pelo
fim da tarde, cumpríamos o amor. deixa lá, no exacto
sítio da morte, essa teimosa paixão que não morre
nem finge viver. tudo isto é inútil, embora
o empadão estivesse bom e eu já não saiba sequer
quantos anos passaram desde que um ao outro
oferecemos o engano e a miséria de um rosto.

o vinho depressa acabou, e é entre os teus seios
que agora adormeço, como se houvesse um lugar.
daqui a algumas horas esperar-nos-á,
crudelíssimo, o terror tépido de mais um domingo
absolutamente dispensável. só então saberemos
o que desta noite há-de a memória roubar.
talvez um perfume a doer-lhe feliz, ou as roucas
onomatopeias de uma certeza insegura
- do lado mais esquivo da morte.

mas bastam-me para já as mãos redondas
gentis que fazem chover o teu nome
sobre as ruas desertas do meu coração.


senhor manuel de freitas
in 'os infernos artificiais'

27 maio 2008

estação de inverno: 30-ª estação

hoje, a trigésima estação de inverno.


as palavras 'já nem desencantadas' da poesia de josé antónio almeida, que nos conta a sua versão da 'mãe de todas as histórias'.

e um fundo musical exclusivamente à base de 'música electrónica' - porque aqui, na Estação, quando ouvimos falar de electrónica não sacamos logo da pistola..


já disponíveis todos os 29 podcasts das estações de inverno emitidas até à data.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

26 maio 2008

nas paredes é que se aprendem coisas..

'este estúdio foi feito com amor. respeitem-no.' - diz o amarelinho papel na parede.

este mundo foi feito com amor. respeitem-no.
- digo eu.

génio




Álvaro de Campos

Opiário


Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro

É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.

Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.

Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes,
Ergue-se a lua como a minha Sina.

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.

Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.

Gostava de ter poemas e novelas
Publicados por Plon e no Mercure,
Mas é impossível que esta vida dure.
Se nesta viagem nem houve procelas!

A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.

Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?

Sou desgraçado por meu morgadio.
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que me abrigue do meu frio.

Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avòzinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smokink-room com o conde -
Um escroc francês, conde de fim de enterro.

Volto à Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monárquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.

Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser vária gente insípida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.

Não tenho personalidade alguma.
É mais notado que eu esse criado
De bordo que tem um belo modo alçado
De laird escocês há dias em jejum.

Não posso estar em parte alguma.
A minha Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.

Um dia faço escândalo cá a bordo,
Só para dar que falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais
As iras com que às vezes me debordo.

Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

Escrevo estas linhas. Parece impossível
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O fcato é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.

Os ingleses são feitos pra existir.
Não há gente como esta pra estar feita
Com a Tranqüilidade. A gente deita
Um vintém e sai um deles a sorrir.

Pertenço a um gênero de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!

Ora! Eu cansava-me o mesmo modo.
Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali
Para sonhos que dessem cabo de mim
E pregassem comigo nalgum lodo.

Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O facto essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.

Veio a noite. Tocou já a primeira
Corneta, pra vestir para o jantar.
Vida social por cima! Isso! E marchar
Até que a gente saia pla coleira!

Porque isto acaba mal e há-de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim
Deste desassossego que há em mim
E não há forma de se resolver.

E quem me olhar, há-de-me achar banal,
A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...
O meu próprio monóculo me faz
Pertencer a um tipo universal.

Ah quanta alma viverá, que ande metida
Assim como eu na Linha, e como eu mística!
Quantos sob a casaca característica
Não terão como eu o horror à vida?

Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro.
Não fazer nada é a minha perdição.

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que co'os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos.

O absurdo, como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a ...

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah que bom que era ir daqui de caída
Pra cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —
E basta de comédias na minh'alma!

(No Canal de Suez, a bordo)

23 maio 2008

tal como alguns movimentos marxistas defendiam, na passagem dos sessenta para os setenta, em relação às nações, também os que nascem se dividem naqueles que nascem para vencer e naqueloutros que nascem para perder.

ter a chancela da metade a que 'pertencemos', desde bem cedo, não evita muitas frustrações. mas pode poupar(-nos a) muito desperdício de energia. e, ao contrário do que os modernistas de bolso apregoam, nem todas as energias podem ser renováveis; nem todas as energias renováveis podem ser efectivas, a lidar com certas necessidades, certos estádios do desenvolvimento. das nações, ali; dos indivíduos, aqui. das nações e da nação nossa.

danação.
i hope that our few remaining friends
give up on trying to save us
i hope we come up with a failsafe plot
to piss of the dumb few that forgave us
i hope the fences we mended
fall down beneath their own weight
and i hope we hang on past the last exit
i hope it's already too late
and i hope the junkyard a few blocks from here
someday burns down
and i hope the rising black smoke carries me far away
and i never come back to this town again
in my life
i hope i lie
and tell everyone you were a good wife
and i hope you die
i hope we both die
i hope i cut myself shaving tommorow
i hope it bleeds all day long
our friends say it's darkest befor the sun rises
we're pretty sure they're all wrong
i hope it stays dark forever
i hope the worst is'nt over
i hope you blink before i do
and i hope i never get sober
and i hope when you think of me years down the line
you can't find one good thing to say
and i hope that if i found the strength to walk out
you'd stay the hell out of my way
i am drowning
there is no sign of land
your are coming down with me
hand in unloveable hand
and i hope you die
i hope we both die



mountain goats, 'no children'

21 maio 2008

'all is one, all is mind, all is lost and you find,
all is dream'



mercury rev, 'hercules'



de regresso a casa, após mais uma sessão do curso que frequento ao final do dia, converso com r., colega do mesmo curso. conversa daquelas à queima-roupa, com ritmo acelerado, em jargão futebolístico, 'ao primeiro toque', 'sem deixar cair a bola'. sabem como é, estou certo.

ontem, falava-me do seu gosto pela memória da cidade, do seu misto de preocupação e prazer em resgatar do 'grande olvido' a memória humana ('uma cidade afectiva') e a memória física ('uma cidade edificada') dos prédios da cidade de lisboa. prédios - marca vincadamente humana - que testemunham e acompanham a vida de todos os dias. memória interior (o que se passou lá dentro; quem lá habitou; glórias, misérias, todas a epopeia humana reduzida à sua essência, como num teatrinho de marionetas envolto em metafísica) e memória exterior (nós que, do lado de fora, a caminho da nossa vida, passamos recorrentemente por eles, prédios). uma outra espécie de natureza que resistirá mais ou menos que nós próprios, nesse eterno jogo do gato e do rato com o tempo e a incerteza.

disse-lhe que era curioso como essa sua preocupação, esse seu gosto, essa sua sensibilidade rimava com a minha própria sensibilidade, face a casas desabitadas ou, de modo especialmente pungente, casas em ruínas. sempre me perturbaram casas em ruínas. ir a conduzir, num travelling interior que acompanha o olhar, e reparar nos restos, nas ruínas. quem viveu ali? eu, seguramente. um outro eu, naquele sentido em que todos somos todos, porque todos poderíamos ter sido 'um outro'. pensar, como nos prédios urbanos do r., no conjunto de vivências que por ali passaram. ali, pessoas com identidade, nome, características físicas, uma biografia, sentimentos, emoções, angústias, medos, anseios, sonhos, foram mais ou menos felizes, tanto quanto se pode ser mais ou menos feliz nesta nossa condição de passageiros do e no tempo. olhar a memória é olhar o futuro - no retrovisor que espreitamos hoje, o futuro que se anuncia.

falámos ainda do gosto, uma vez mais do r., em ir comprar à 'feira da ladra' (em lisboa ou numa sua congénere alemã) sacos com fotografias antigas, normalmente associadas à história particular de uma família ou de um grupo social. quem foram, que relações entre eles, o que se esconde naquelas imagens, como reordenar a memória caótica numa outra escala com sentido. um pouco como alguns mestres do documentário, só para dar um exemplo, já fizeram; um pouco, para dar um exemplo mais próximo, como o daniel blaufuks fez com a história da sua família judia, que desembarcou em lisboa, fugindo do absoluto reino das trevas nazi, nesse livrinho tocante que é 'sob céus estranhos' (objecto de um post, aqui no 'flores de inverno', há coisa de um ano).

estas coisas da memória são coisas que doem. a mim doem. é por isso que este blog tem em si já os genes da decadência, os genes da sua própria e inexorável ruína. tudo o que começa, começa a acabar. quando te conheço, já te perdi, umas linhas à frente. talvez por isso, a nossa, breve mas intensa, troca de impressões fez-me pensar. e pensar é, em mim, sentir. e sentir é viver.

um dia, nos confins do imenso céu digital, alguém lerá estes 'posts', os vossos comentários. um dia, talvez, alguém procurará recuperar da gaveta do tempo quem foi este rapaz, como foram os seus dias, que relações estabelecia com quem comentava os seus 'posts'. um dia, este será um jardim em escombros, como aquelas ruínas maias e aztecas inundadas, engolidas pelos braços da selva sul-americana. quando as flores selvagens abraçarem as flores de inverno, talvez então o caminho esteja enfim cumprido, por paradoxal que possa parecer.


'nasci, no hall de entrada, naquele segundo exacto em que te conheci.
e nesse mesmo segundo morri, por ter enfim nascido.'

20 maio 2008

estação de inverno: 29-ª estação




hoje, a vigésima nona estação de inverno.


de regresso ao formato mais habitual do programa, chamamos ao palco a poesia seca e rente ao osso de jorge gomes miranda.

e continuamos o lento e persistente labor de espalhar ao vento um generoso punhado de canções merecedoras de grafia em caixa alta.

porque esta é a estação em que o inverno abraça maio. ou será ao contrário?


já disponíveis todos os 28 podcasts das estações de inverno emitidas até à data.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

19 maio 2008

16 maio 2008

bom fim-de-semana

quando o amor morrer dentro de ti,
caminha para o alto onde haja espaço,
e com o silêncio outrora pressentido
molda em duas colunas os teus braços.
relembra a confusão dos pensamentos,
e neles ateia o fogo adormecido
que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
espalhou generoso aos quatro ventos.
aos que passarem dá-lhes o abrigo
e o nocturno calor que se debruça
sobre as faces brilhantes de soluços.
e se ninguém vier, ergue o sudário
que mil saudosas lágrimas velaram;
desfralda na tua alma o inventário
do templo onde a vida ora de bruços,
a Deus e aos sonhos que gelaram.



ruy cinatti

14 maio 2008


chiara mastroianni, 'au parc' [dans 'les chansons d'amour']


même soleil d'hiver
mêmes bruits de brindilles
le bout des doigts glacé
le givre sur les grilles
mêmes odeurs d'humus
la terre qui se terre

tout y sera, tout y sera
a part toi

parc de la pépinière, fin de semaine,
encore une heure, encore une heure à peine,
encore une heure de jour et la nuit vient

même température,
le mercure à zéro
même mélancolie fauve
au portillon du zoo
mêmes parents pressés,
leurs enfants en manteaux

tout y sera, tout y sera
a part toi

parc de la pépinière, fin de semaine,
encore une heure, encore une heure à peine,
encore une heure de jour et la nuit vient

j'aurais beau décalquer
refaire les mêmes parcours
reprendre les mêmes allées
au mêmes heures du jours
j'aurais beau être la même
j'aurais beau être belle

tout y sera, tout y sera
a part toi

parc de la pépinière, fin de semaine,
encore une heure, encore une heure à peine,
encore une heure de jour et la nuit vient
et puis... rien.

13 maio 2008

acrobacias

sentados em trafalgar square
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o nosso inglês
num inquérito de revista
com francis bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
– superiores ou inferiores –
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
tornava-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ias
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
assim juntando as nossas
perdas eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.



ana paula inácio

estação de inverno: 28-ª estação


foto: bruno barbey, 1968


hoje, a vigésima oitava estação de inverno.


a evocação - doce, suave e sentimental - de um certo mês de maio, quarenta anos atrás, num programa integralmente cantado em francês.

substituímos a poesia de formato mais clássico, pela leitura de slogans & palavras de ordem que, nesses dias, inundaram as paredes de paris - espécie de poesia concreta. como nunca antes tinha acontecido, uma 'poética política e directa', anunciando um tempo novo.

em vez de canções de protesto, engagées, a estação opta por um registo contemporâneo - afinal, 'este hoje' só é possível porque existiu 'aquele ontem'. alex beaupain e as suas 'chansons d'amour', levam-nos pela mão e fazem acontecer um outro maio, mais interior.


já disponíveis todos os 27 podcasts das estações de inverno emitidas até à data.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]


12 maio 2008





esta simpática senhora salvou, segundo testemunhos da época, 2500 crianças do gueto de varsóvia (um dos episódios mais macabros da aventura humana dita moderna).

poderiam ter sido 250, 25 ou 1 - o importante é que isto de se viver com a consciência em paz e de se viver uma vida exemplar não está na moda. mas aposto que o sorriso e o brilho dos olhos.. têm a ver com isso.

quando leio nos jornais 'obrigado, maestro' (e sem menosprezar alguém com quem até simpatizo), apetece-me usar o meu imperativo de consciência e dizer obrigado aos seres humanos que honram a sua espécie, pelo exemplo, abnegação, elevação, coragem, em condições limite - as quais nenhum de nós consegue sequer imaginar.

ser a luz, no meio do horror absoluto, é defender com a vida a abstracção virtuosa contra o mal concreto.

paz à sua alma, Senhora Dona Irena Sendler.
'(..) este é o país em que todos os dias corremos o risco de sermos massacrados com a notícia do último bocejo de cristiano ronaldo e, ao mesmo tempo (tempo...), a estreia do mais recente filme de peter greenaway é tratada com apoteótica indiferença. talvez se greenaway assinar pelo manchester...'

publicado por joão lopes
domingo, maio 11, 2008, in blog 'sound + vision'


o manchester united podia era fazer uma opa sobre portugal, incluindo direito de opção sobre a próxima geração. assim, garantiria, à cabeça, todos os potenciais novos talentos e logo por várias gerações. quanto aos outros, era aplicar a receita de sempre: emprestar a outros emblemas, de segunda linha claro está; ceder direitos desportivos e de cidadania aos emergentes clubes russos; enviar para alvalade outros tantos.

pão e circo, cantavam os tropicalistas de 'seu caetano'. nem mais.
jesus christ you have confused me
cornered, wasted, blessed and used me
forgive me girls i am confused
stiff and pissed and lost and loose



the national
cardinal song, in 'sad songs for dirty lovers'



the national,
abel, in 'alligator'

my mind's not right
my mind's not right
my mind's not right

09 maio 2008

bom fim-de-semana

the one secret that has carried

[in memoriam - rest in peace, poet]


irene loves a man
who is afraid of sex--
she's attended

to everything,
said it was okay,
held me until i slept.

she says, why don't you just
not think about it?
but i want to know

every sensation,
nothing untouched,
though i pull my hand away

once she's found it
i can't be around a woman
too long,

too much.
i say, i was mistreated.
she says, a cup of tea?

i say, i can't start a thing
and then
describe the kind

of thing i'd start.
we talk about ballrooms,
long sleeves and sashes,

say someday
we should go somewhere
though we can't think

of anywhere
and then i say abruptly,
i've never loved

hard enough
to be loved back.
i say it as if i've had enough

of the whole goddamn
world and will never
be satisfied.

i'm looking
at the wall.
she's looking out

the window because
she needs
to be somewhere.

later, i leave a note:
sorry for the difficulties.
meaning: how come

you don't leave?
i've never told this story.
even at the moment

of dying,
i would say
it was someone else's.



by jason shinder



andaríamos por 1986, 1987.
este foi o disco que marcou a minha modernidade musical, no sentido em que me fez perceber que havia mais mundo para além dos clássicos lá de casa (vinil paterno, com a escola brasileira de qualidade, mas também resquícios do disco sound, os cantores de intervenção portugueses, etc.) e do mainstream das rádios e televisões da época, para mais num ambiente de província.
pouco depois, chegaria, por mão amiga (um abraço, Luis, andes por onde andares), o tempo dos urbano-depressivos, vividos já o movimento tinha terminado (toda a escola joy division, bauhaus, a editora 4AD em todo o seu esplendor - com o som complexo, atmosférico, poético dos cocteau twins, this mortal coil, dead can dance e derivados). acrescente-se, pouco depois, a aprendizagem do punk inglês (clash, sex pistols), a procura das margens nacionais (edições ama romanta, os mão morta, a sétima legião, o rock rendez vous, vivido nas páginas do saudoso jornal sete), a madchester a começar, o mergulho na história com os doors e seus companheiros de década, a valorização dos beatles (porque diabo 'o sargento pimenta' rasgou horizontes, perguntava-me a cada audição?). um longo etc.
foi nesses dias - dias felizes -, que a música veio para ficar, como se vê aqui no flores de inverno ou na sua irmã estação de inverno.
da música se pode dizer: tudo me interessa. leitor compulsivo, ouvinte sedento, mergulhador de profundidade na história e nas histórias, apreciador com amplitude máxima daquela que é, para mim, uma arte maior entre as artes maiores (e há quem saiba como eu venero o cinema, alguma pintura e tantos, mas tantos, livros).
vale este pequeno relato tosco e simplório como introdução para dizer o que já disse lá atrás: o primeiro disco dos violent femmes (sem título ou, como é também habitual, designado como violent femmes) foi, no contexto da minha biografia afectiva e estética, o disco mais importante da minha década de 80. ouvi-o centenas de vezes, no mínimo. várias vezes por dia, durantes muitos dias. sei, ainda hoje, todas as canções quase quase de cor, incluindo silêncios, inflexões de voz, etc. sim, ficou gravado.

a malaise adolescente,
o mal-de-vivre urbano,
a visceralidade do rock mais melódico,
a forma de cantar em que se cospem as palavras,
a importância da dicção,
a atitude rebelde com causa,
o amor sempre omnipresente,

tudo isto é este disco.

a rádio radar elegeu-o como 'álbum de família', destaque nesse programa que é, já o disse várias vezes, a coisa mais parecida com um serviço público sério, proporcionando-nos um passeio pedagógico e delicioso pela história da moderna música popular, desde os anos 60 até à data.

há coisas assim, como aqueles amores inexplicáveis, aquelas amizades improváveis, aquele dia em que mudamos de vida e com isso nascemos de novo - quando tropeçamos em alguma coisa que nos faz declinar 'o verbo metafísica' no presente singular do indicativo plural.

08 maio 2008




parabéns, meninas, cantados 33 vezes!

como as árvores gémeas, cujos troncos se não confundem, mas em que as ramagens se entrelaçam - espécie de osmose afectiva e efectiva.

07 maio 2008


new order, 'temptation'


[..]

bon iver, 'flume'

she & him, 'change is hard'

ele é m.ward, figura sobejamente conhecida das músicas que andam na fronteira entre estilos e entre o mainstream mais underground e o underground mais mainstream (escola: plain rock americano).
ela é a actriz zoey deschanel.

aren't they just lovely?

06 maio 2008

estação de inverno: 27-ª estação




hoje, a vigésima sétima estação de inverno.


manuel de freitas - companheiro dilecto - traz-nos a sua moderna 'malaise' urbana, de sotaque incontornavelmente lisboeta.

porque o prometido é devido, vamos ao sótão buscar os the apartments, projecto superlativo do senhor peter milton walsh. a austrália continua a ser terra com 'pedigree'.

e lisa germano sai-nos ao caminho, como quem não quer a coisa - as meninas do inverno são sempre as mais bonitas..

já disponíveis todos os 26 podcasts das estações de inverno emitidas até à data.


[terças: 23h-24h; repete domingos: 19h-20h]

05 maio 2008

dessous les pavés c'est la plage (sim, valeu a pena)




À bas le réalisme socialiste. Vive le surréalisme

Vive l'éphémère

Abolition de l'aliénation.

L'action ne doit pas être une réaction mais une création

L'agresseur n'est pas celui qui se révolte mais celui qui réprime

Aimez-vous les uns sur les autres

L'anarchie c'est Je

Arrêtez le monde, je veux descendre

Avant donc que d'écrire, apprenez à penser

La barricade ferme la rue mais ouvre la voie

Belle, peut-être pas, mais ô combien charmant. La vie contre la survie

Le bleu restera gris tant qu'il n'aura pas été réinventé

Le bonheur est une idée neuve

Chassez le flic de votre tête

Construire une révolution, c'est aussi briser toutes les chaînes intérieures

Désirer la réalité, c'est bien ! Réaliser ses désirs, c'est mieux

Dessous les pavés c'est la plage

Le discours est contre-révolutionnaire

Le droit de vivre ne se mendie pas, il se prend

Écrivez partout

L'éducateur doit être lui-même éduqué

L'émancipation de l'homme sera totale ou ne sera pas

L'ennemi du mouvement, c'est le scepticisme. Tout ce qui a été réalisé vient du dynamisme qui découle de la spontanéité

L'ennui est contre-révolutionnaire

Est prolétaire celui qui n'a aucun pouvoir sur l'emploi de sa vie quotidienne et qui le sait

Faites l'amour et recommencez

Un flic dort en chacun de nous, il faut le tuer

La forêt précède l'homme, le désert le suit

Les gens qui travaillent s'ennuient quand ils ne travaillent pas. Les gens qui ne travaillent pas ne s'ennuient jamais

L'homme n'est ni le bon sauvage de Rousseau, ni le pervers de l'église et de La Rochefoucauld. Il est violent quand on l'opprime, il est doux quand il est libre

Un homme n'est pas stupide ou intelligent : il est libre ou il n'est pas

D'un homme, on peut faire un flic, une brique, un para, et l'on ne pourrait en faire un homme?

Ici, bientôt, de charmantes ruines

Il est interdit d'interdire

Ils pourront couper toutes les fleurs, ils n'empêcheront pas la venue du printemps?

L'insolence est la nouvelle arme révolutionnaire

J'aime pas écrire sur les murs

J'ai quelque chose à dire mais je ne sais pas quoi

Je décrète l'état de bonheur permanent

Je prends mes désirs pour la réalité car je crois en la réalité de mes désirs

Je rêve d'être un imbécile heureux

Je suis marxiste, tendance Groucho

Je suis venu, j'ai vu, j'ai cru

Je t'aime!!! Dites-le avec des pavés

Jeunes femmes rouges toujours plus belles

Les jeunes font l'amour, les vieux font des gestes obscènes

Jouissez ici et maintenant

Jouissez sans entraves, vivez sans temps morts, baisez sans carotte

La liberté, c'est la conscience de la nécessité

La liberté, c'est le crime qui contient tous les crimes, c'est notre arme absolue

La liberté, c'est le droit au silence

Vivre au présent!

03 maio 2008

a casa da praia..







02 maio 2008

bilhete-postal




MARAV(i)LHOSO.
homem de leste, meia-idade, sem ocupação,
calças rasgadas, nariz esmurrado, cara esfolada,
sangrando espécie de vida em demolição.

o país era o teu, meu estimado leitor,
o local era bem perto:
a mesma tua cidade
do croissant com pouco sal
e menos manteiga.
brincas à vida eterna,
numa existência meiga,
pensando que é assim
a 'vida com qualidade'.

segues em frente.
afinal
homem de leste não rima
com a tua insonsa preocupação:
viver a vida por controlo remoto
ou viver antes por procuração?

shaskespeare, se vivo,
daria voltas sobre si
num loop infernal
tantos séculos passados
e nada é mais dócil,
tudo é apenas igual.

william, que tal?
one art


the art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

lose something every day. accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
the art of losing isn't hard to master.

then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. none of these will bring disaster.

i lost my mother's watch. and look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
the art of losing isn't hard to master.

i lost two cities, lovely ones. and, vaster,
some realms i owned, two rivers, a continent.
i miss them, but it wasn't a disaster.

even losing you (the joking voice, a gesture
i love) i shan't have lied. it's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (write it!) like disaster.



by elizabeth bishop