vinhas da escola, após mais um dia preenchido com aulas (que despachavas em ritmo imperial), conversas infindáveis, jogos de matraquilhos (um gosto que ficou), discos emprestados de bandas e cantores que eram um continente para ti novo, imenso, infindável, após uma viagem de autocarro que era, como dizer, um bálsamo anti-melancolia. falavas toda a viagem com os teus colegas, amigos, camaradas, irmãos, tudo a um tempo, incessantemente, numa vertigem de energia, 'joie de vivre', num redemoínho de alegria. saías a correr do autocarro, quando vinhas a seguir ao almoço, corrias para casa (andavas sempre a correr, parece-te hoje), almoçavas o que a tua querida mamã deixara (ou a empregada de ocasião preparara) e lá ias tu, a correr, sempre a correr, chamar o luis, o daniel, o luis pedro, o jorge, o filipe, o miguel, o nuno, o tó, quem calhava. muitos já lá estavam. corrias, por atalhos, serra acima, como se não houvesse amanhã e ontem fosse já um planeta distante. comias um pão com marmelada ou doce de abóbora caseiro enquanto voavas, difícil já dizer se era boneco animado, herói de bd ou menino quase rapaz. fizesse sol, chuva, vento, calor ou frio, jogatana de futebol tarde dentro. regresso a casa, a correr, sempre a correr, a tempo de ires ver os desenhos animados ou, mais tarde, os videos da 'europe tv', no célebre 'countdown' do não menos célebre adam curry. finalmente o vídeo matava a estrela da rádio, nesses idos anos oitenta, em plena serra, algures na beira alta. vias desenhos animados com as tuas irmãs, gostavas de tudo, gostavas de todos, sempre sempre sempre vivendo prego a fundo, acelerador de sentidos a fundo, sorvendo e bebendo o mundo do anime japonês mais 'mainstream' (sabes hoje), as adaptações dos clássicos americanos infanto-juvenis, as séries mais dramáticas (talvez nascesse aí o teu gosto pelos melodramas, pelas histórias arrebatadas e arrebatadoras), mas também desenhos animados de traço e história mais naives. tudo, como ainda hoje sabes, é bom, tudo é digno, tudo é vivo. nesses dias em que corrias, meu deus como corrias, fizeste desse espaço e desse tempo uma vertigem entontecedora, uma experiência mística, um delírio embriagante - do pouco, fazendo tudo. aí descobriste que a imaginação é um dom, que as avenidas da alma são maiores do que qualquer estrada americana, que mesmo sentado à porta de uma casa de província o mundo era o teu destino - porque tu eras e és o mundo. lembras-te desses dias, dos dias seguintes, das aventuras em motorizadas quase chaplinescas, das quedas em grupo das quais saías mais esfarrapado e mais feliz, num contra-senso formidável. dos primeiros amores não-correspondidos, do primeiro amor correspondido e desse abismo por entre os abismos em que, como sempre sempre sempre, mergulhaste de pé, num gesto radical e vertical, até à quase aniquilação (pela felicidade), samurai zen anacrónico, por entre ribeiros e eucaliptos, vinhas e veredas, bosques frondosos e céus com vista para o infinito. lembras-te das romarias de verão, das festas religiosas, dos ritos e dos rituais. da família e seus mapas. da clandestinidade subterrânea das tuas leituras - kakfa aos 11 anos, henry miller aos 13 anos, o mundo complexo desde sempre à tua beira, o expresso e o jornal de notícias desde o quê? os oito?. tudo recordas como se fosse hoje, como se fosse ontem, como se o teu peito dilacerado pela memória em implosão, precisasse desse mesmo ópio (a memória). sim, porque como disse o poeta, 'oh, eu estive lá'. e estar, para ti, é estar mesmo, é trazer gravado no corpo todas as cicatrizes da infância e todas as marcas da adolescência. a tua primeira juventude foi a juventude eterna, por isso dizes não, por isso recusas, por isso negas, por isso segues sempre a correr sempre a correr sempre a correr, vivendo a duzentos à hora, amando tudo e todos a duzentos à hora, por isso te entregas em sacrifício demodé às garras dos sentidos. 'não sou nada, nunca serei nada. à parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo', citas, de memória, um dos grande poetas que sempre trazes na algibeira. sentes saudades de tudo e de todos. e de todas. porque apenas e só nelas encontraste, a espaços, a paz. porque apenas e só nelas encontras sentido - escasso e volúvel, é certo, mas ainda assim sentido. porque apenas e só nelas foste capaz de fechar os olhos e enfim teres uns segundos de sossego. a correr, sempre a correr, elas foram, são e serão sempre sempre sempre o único antídoto contra esse horror que é sentir as unhas do mundo cravadas na pele e navalhas de gelo cortando-te por dentro. por isso és um 'fool for love', um louco ensandecido, jogador nos casinos mais improváveis, poeta falhado, homem em implosão.
se isto é um homem, italo calvino. se isto é um homem.
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