de regresso a casa, após mais uma sessão do curso que frequento ao final do dia, converso com r., colega do mesmo curso. conversa daquelas à queima-roupa, com ritmo acelerado, em jargão futebolístico, 'ao primeiro toque', 'sem deixar cair a bola'. sabem como é, estou certo.
ontem, falava-me do seu gosto pela memória da cidade, do seu misto de preocupação e prazer em resgatar do 'grande olvido' a memória humana ('uma cidade afectiva') e a memória física ('uma cidade edificada') dos prédios da cidade de lisboa. prédios - marca vincadamente humana - que testemunham e acompanham a vida de todos os dias. memória interior (o que se passou lá dentro; quem lá habitou; glórias, misérias, todas a epopeia humana reduzida à sua essência, como num teatrinho de marionetas envolto em metafísica) e memória exterior (nós que, do lado de fora, a caminho da nossa vida, passamos recorrentemente por eles, prédios). uma outra espécie de natureza que resistirá mais ou menos que nós próprios, nesse eterno jogo do gato e do rato com o tempo e a incerteza.
disse-lhe que era curioso como essa sua preocupação, esse seu gosto, essa sua sensibilidade rimava com a minha própria sensibilidade, face a casas desabitadas ou, de modo especialmente pungente, casas em ruínas. sempre me perturbaram casas em ruínas. ir a conduzir, num travelling interior que acompanha o olhar, e reparar nos restos, nas ruínas. quem viveu ali? eu, seguramente. um outro eu, naquele sentido em que todos somos todos, porque todos poderíamos ter sido 'um outro'. pensar, como nos prédios urbanos do r., no conjunto de vivências que por ali passaram. ali, pessoas com identidade, nome, características físicas, uma biografia, sentimentos, emoções, angústias, medos, anseios, sonhos, foram mais ou menos felizes, tanto quanto se pode ser mais ou menos feliz nesta nossa condição de passageiros do e no tempo. olhar a memória é olhar o futuro - no retrovisor que espreitamos hoje, o futuro que se anuncia.
falámos ainda do gosto, uma vez mais do r., em ir comprar à 'feira da ladra' (em lisboa ou numa sua congénere alemã) sacos com fotografias antigas, normalmente associadas à história particular de uma família ou de um grupo social. quem foram, que relações entre eles, o que se esconde naquelas imagens, como reordenar a memória caótica numa outra escala com sentido. um pouco como alguns mestres do documentário, só para dar um exemplo, já fizeram; um pouco, para dar um exemplo mais próximo, como o daniel blaufuks fez com a história da sua família judia, que desembarcou em lisboa, fugindo do absoluto reino das trevas nazi, nesse livrinho tocante que é 'sob céus estranhos' (objecto de um post, aqui no 'flores de inverno', há coisa de um ano).
estas coisas da memória são coisas que doem. a mim doem. é por isso que este blog tem em si já os genes da decadência, os genes da sua própria e inexorável ruína. tudo o que começa, começa a acabar. quando te conheço, já te perdi, umas linhas à frente. talvez por isso, a nossa, breve mas intensa, troca de impressões fez-me pensar. e pensar é, em mim, sentir. e sentir é viver.
um dia, nos confins do imenso céu digital, alguém lerá estes 'posts', os vossos comentários. um dia, talvez, alguém procurará recuperar da gaveta do tempo quem foi este rapaz, como foram os seus dias, que relações estabelecia com quem comentava os seus 'posts'. um dia, este será um jardim em escombros, como aquelas ruínas maias e aztecas inundadas, engolidas pelos braços da selva sul-americana. quando as flores selvagens abraçarem as flores de inverno, talvez então o caminho esteja enfim cumprido, por paradoxal que possa parecer.
'nasci, no hall de entrada, naquele segundo exacto em que te conheci.
e nesse mesmo segundo morri, por ter enfim nascido.'
3 Comments:
A arqueologia informática e internáutica é um exercício estranho. Porque às vezes falamos de relações que apenas se estabelecem a este nível e não ao concreto, ao físico. Eu próprio me abandono a essa "inquietude", quando vou ler mails antigos, escritos na web de há uma dezena de anos atrás. E tudo, tudo volta ao início, seja para vermos que há coisas que resistem ao teste do tempo, seja para repararmos que houve coisas que foram escritas sem serem sentidas. E às vezes isso origina novos contos, novas estórias que passamos novamente ao "papel digital". Num ciclo que se renova.
Enfim, tudo isto para dizer que daqui a dez, vinte anos, com a certeza que sei hoje, que irei ver as flores deste jardim que aqui plantaste com o mesmo sorriso e a mesma curiosidade com que o faço hoje em dia, ainda que às vezes não saiba como o comentar ou mesmo se o devo fazer, sob pena de retirar algum brilho às tuas pequeninas grandes "sementes"...
Abraço, Gi.
(..)
abraço, nuno.
'cá dentro, inquietação, inquietação; é só inquietação'.
(..)
flores,
gi.
Só espero que o Blogger não dê o berro, se não, lá vão as nossas palavras cair no grande nada!
(Adorei a versão do JP Simões da "Inquietação". Fico bem como Outro do texto)
abraço
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