30 junho 2009

isto de se ser vagabundo sem eira nem beira é um cabo de trabalhos. quero eu dizer: tudo na vida assenta, para os personalistas como eu, no velho princípio da liberdade de escolha, na primazia da vontade como força motriz criadora e transformadora. ora, retirada a liberdade de escolha, todos os papéis nos são estranhos. quero eu dizer: talvez das profundezas de um qualquer 'actor's studio' saia um qualquer 'método' capaz de nos tornar seres plasmáveis, capazes, mais do que simular com autenticidade, de fazer o 'embodying' dos personagens que, a cada momento, nos são distribuídas / nos tocam em sorte (riscar o que não interessa). quero eu dizer: talvez haja essa capacidade técnica, mas só serve a crentes na infalibilidade do método. quem, como eu, não acredita, acha-se em terra estranha com demasiada frequência, como se vestisse roupas que lhe são inteiramente alheias. é esta noção de desconforto quotidiano que sinaliza as correntes subterrâneas - essas sim, vitais / letais (riscar o que não interessa). quero eu dizer: isto de se ser vagabundo por força das circunstâncias é uma treta. qual jack london, qual jack kerouac, qual 'estrada fora', qual romantismo cheio de cornucópias e rendilhados. a imparável força da história, a dialética incontornável, o devir - tudo uma bela cantiga de bandido. quero eu dizer: não me estava nada a apetecer mergulhar, de novo, na multidão. não me apetece nada fazer novos amigos, procurar o teu rosto em cada rua que cruzo, atrás de qualquer vidraça. quero dizer: estou cansado. quero dizer: não sei como dizer o que quero dizer. quero dizer: já disse. quero-te dizer.

29 junho 2009

- diz rui*, diz-me..
- 'a cidade atravessava uma idade glacial do coração'.
- tem graça, sabes. vi um filme, há uns tempos, que me deixou meio perdido.. acho que se chamava qualquer coisa como 'uma nova era glacial'.. estava lá tudo. só eu é que não vi..
- és uma cidade sitiada, pareces..
- sim, eu sei. uma cidade que dorme no sonho de alguém. uma cidade ora sitiada ora desvairada. um cidade desgovernada. ou, pior ainda, uma cidade ingovernável.
- ainda há tempo.
- isso nunca saberemos, rui.
- toda a gente sabe, como lá em baixo diz o luis miguel**, que 'os homens gelam a partir do coração'. mas também toda a gente já ouviu falar do degelo, não é verdade?
- eu não. i wish, oh boy.
- fazes-me lembrar uma música.. sunny jim.
- 'só a música estava certa', daquele teu poema - eu sei.
- 'e toda a beleza se há-de cumprir'.
- amén.


* rui pires cabral
** luis miguel nava


oh no, not me
i'am an island of such great complexity..
a solidão do radialista no estúdio.
a angústia do poeta adiado.
a dor do homem por cumprir.

e ainda têm a lata de me falar do guarda-redes??

estação de inverno: 74ª estação

dante gabriel rossetti



amanhã, terça-feira, a septuagésima quarta estação de inverno.


a antepenúltima edição da segunda época do programa incidirá sobre o mais recente livro de rui pires cabral, de seu nome 'oráculos de cabeceira' (edição da averno).

as canções serão uma espécie de 'best of' - uma pequenina antologia afectiva com uma dúzia de canções que foram aparecendo recorrentemente na 'estação de inverno', ao longo das edições que foram para o ar nesta época 2008/2009. canções superlativas, claro. mas também com qualquer coisa mais.. ou não fossem todas elas 'canções de inverno'..

rui pires cabral e alguns standards musicais da estação fria. assim seja.


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26 junho 2009

estação de inverno: algumas coordenadas





a passos largos, aproximamo-nos do final da segunda época do programa 'estação de inverno' (rádio zero, lisboa, com retransmissão na ruc - rádio universidade de coimbra).

teremos mais três programas e depois o imenso verão da nossa infância fará das suas. nesse dia 14 de julho, irá para o ar a 'estação #76', assinalando o final de mais um ciclo.

tal como na primeira época (2007/2008), também esta segunda (2008/2009) fica marcada pela divulgação apaixonada - medo de quê? da palavra? - de umas dezenas de poetas portugueses, nossos contemporâneos, abrangendo desde a geração de 60 até aos nossos dias. de vez em quando, insistimos, é bem verdade, em nomes que nos dizem muito. sabemos que a poesia do triunvirato manuel de freitas, josé miguel silva, rui pires cabral não será para o gosto de todos. mas é uma poesia do aqui e agora, uma poesia do real, fortemente geracional e, na minha modesta opinião, um documento que - heresia - vai bem para além do seu papel enquanto artefacto poético. desolada, descrente, formalmente pouco ambiciosa? talvez. mas, ao mesmo tempo, furiosamente viva. e isso é para nós uma característica fundamental da arte. e da vida, passe o pleonasmo pouco subtil.

os próximos dois programas (a 'estação #74'e a 'estação #75)' serão utilizados para levar até aos meus doze ouvintes(!) o último livrinho de rui pires cabral, de seu nome 'oráculos de cabeceira', mais uma preciosidade editada pela averno. musicalmente, recorreremos, mais coisa menos coisa, a duas dúzias de 'clássicos da estação' - aquelas canções densas e melancólicas, aquelas melodias impossíveis, aquelas letras arrepiantes.. de que tanto gostamos. e que, agora é tarde para ser de outro modo, tão decisivamente contribuíram para criar a identidade do programa.

ficará, no final dos dois próximos programas, a faltar ainda a 'estação 76'. talvez façamos uma pequenina surpresa, humilde na exacta medida da nossa própria escala.. sobre este último programa desta segunda série, daremos oportunamente mais notícias, no destaque habitual que, todas as segundas-feiras, damos à estampa, neste mesmo 'blog'.

e assim o tempo passa. mas isso já sabemos. mas isso já sabíamos. o tempo é (só) o que fazemos com ele. nada mais.

o verão já espreita, mas o inverno está ainda e sempre no bolso da camisa, mesmo em cima do coração. silly heart, you bastard..

da decadência da civilização ocidental


há umas semanas atrás, um jovem colega meu, por um quase acaso, pediu-me opinião sobre uma maquete relativa a uma campanha de marketing.

há um par de dias, pede para falar comigo e passa-me para a mão um exemplar de uma conhecida revista ('em primeira mão, para agradecer a sua ajuda' - qualquer coisa do género, disse-me o rapaz).

e é assim que acabamos, sózinhos na torre de marfim, o mundo inteiro lá fora, a folhear o número 100 da revista 'maxmen'(!) e a ler a coluna e a entrevista da ilustre margarida rebelo pinto, tentando explicar aos leitores (e às eventuais leitoras) quais as diferenças entre homens e mulheres, as coisas que os homens devem saber e um curioso aviso à navegação feminina sobre as características que são, no seu entender, absolutamente decisivas para escolher um, sejamos modernos, parceiro. carácter e desvelo erótico (não me ocorreu uma expressão mais bonita e suave - e isto ainda é uma casa de gente - vós, leitores meus - séria..). porque, diz a douta margarida, é aquilo que, dia a após dia, é absolutamente estrutural num homem e, por maioria de razão, definidor de uma relação.

eu que nunca li um livro da menina, mas que sempre li, em consultórios, aeroportos e afins, as suas colunas de opinião e as suas entrevistas de ocasião (a cada um oráculo que merece?), apenas posso dizer que fiquei altamente deprimido. acreditando que as mulheres são um ser superior - religião que fervorosamente professo -, resta-me perceber em qual dos critérios falho: se num, se no outro.. se nos dois. desconfio que sei a resposta.

sejam meus amigos, sejam minhas amigas: não vale a pena comentar este 'post'. talvez seja o pré-anúncio da 'silly season', aqui no jardim de inverno. ou talvez seja a fúria racionalista, que por vezes me assalta, de tudo querer entender.

o que eu sei é que, se porventura observado, deveria ser um triste espectáculo, aposto: entre caixotes anunciando mudanças, papéis por toda a parte, rascunhos com poemas oblíquos, mensagens 'new age' dirigidas a mim próprio e afixadas aqui e ali, um verão completamente do lado de fora da janela, e eu, entre 'oráculos de cabeceira', 'guias improváveis', 'post its' mal semeados, lendo a maxmen n-º100..

da decadência. ou, como diria kierkegaard, do 'tremor' e do 'temor'.

ou, se calhar, só do amor.

mais um post óbvio. mais um post que pode ter várias leituras..

25 junho 2009

a quase todos.
ou a quase ninguém?
mas a ti.



roberto juarroz


aqui ninguém ignora
que os lagos gelam a partir das margens
e o homem a partir do coração


luis miguel nava

24 junho 2009




ooh i know love sounds impossible,
some words just take so long to say,
and there's times you feel unlockable,
an' all you ever want,
is someone to try...to open up...and find a way in.

23 junho 2009



porque a vida é isso mesmo,
uma trip fenomenal,
proibido voltar atrás.

better off without a wife

esquece o melhor que puderes.
há drogas e cinema (por
enquanto). não vais ser tu a aprisionar
os gestos felizes ou sem rumo
de que ainda sou capaz.
não é nada pessoal, garanto-te.

bebi sempre demais, acordo
tarde e as crianças estão longe de ser
o meu animal doméstico preferido.
detesto horários, famílias e obrigações.
até a partilha dos lençóis,
quando não é o amor a rasgá-los.

os dias, porém, depressa
nos obrigam ao esterco das rotinas,
ao desejo inútil de procurar
a morte noutros braços

mas não. não vou mudar de marca
de cigarros nem de pasta
dentífrica. acordo logo que puder,
já sabes. telefono-te rouco,
eventualmente triste, a precisar
de alguma liberdade para poder provar,
sozinho, que a liberdade não existe
mas dá bastante jeito.

e no entanto, depois disto tudo,
é altamente provável que eu te queira
amar. como não sei melhor, como sei.



manuel de freitas
in 'o coração de sábado à noite'

estação de inverno: 73ª estação




hoje, terça-feira, a septuagésima terceira estação de inverno.


o segundo de dois programas às voltas com a poesia melancólica, sulfúrica, de manuel de freitas - espécie de poeta-mor do nosso descontentamento. como base, utilizaremos o número 1 de uma colecção brasileira (editora oficina raquel), de seu nome 'portugal, 0', dedicada à divulgação de poetas portugueses contemporâneos, surgidos entre os finais dos anos 90 e os inícios deste novo século.

um dia destes, conversamos sobre manuel de freitas e a sua magistral poesia - fulgurante mecanismo que capta todo o 'pathos' existencial do mundo moderno, da cidade enquanto 'deserto e abismo', das relações enquanto transacções provisórias, um fundo e sofrido desencanto, condenados que estamos a morrer num vale de lágrimas enxutas e sem sentido. se assim é, para quê cantar as sombras? hesitamos entre lucidez, compulsão incontornável ou, mera suspeita, porque a procura meticulosa de vestígios de magia, pelas palavras, pode conduzir-nos a um par de versos perfeitos, o santo graal possível - um arremedo de salvação pelo 'extremo exercício da beleza'? (herberto helder). talvez..

musicalmente, um 'patchwork' improvável. o classicismo absoluto da canção, com billie holiday e brian ferry. o lirismo e a memória nas malhas de uma guitarra, segundo os portugueses norberto lobo e tó trips. a continuação das baladas metálicas e salgadas, sob capa electrónica, dos junior boys. outras coisas mais, reveladas a seu tempo. e uma canção impossível: o psicadelismo fulminante de 'chasing a bee', primeira canção do primeiro disco dos mui amados mercury rev - ou de como em 1990(!) todo o universo sonoro hoje incensado (animal collective, grizzly bear, etc.), afinal, estava já inventado..

porque '(à poesia) preferia o precipício anunciado de um abraço concreto.' grande manuel.


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22 junho 2009


soberbo michael shannon, num belíssimo filme low-budget. crepuscular, shakespeareano, melancólico.

sometimes, it seems there is no land, no country, for some men.


19 junho 2009





uma pintura de michael biberstein, a propósito de um disco que enche os nossos dias: o magnífico (e nada óbvio) 'pata lenta', de norberto lobo.

18 junho 2009

[dedicado a mim, com a generosa licença do excelso e gentil autor - que não sabe, mas que se soubesse decerto compreenderia..]



he loved beauty that looked kind of destroyed


gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel.



rui pires cabral
in 'oráculos de cabeceira', editora averno.

17 junho 2009

- tu que és poeta......
- pateta, queres tu dizer..
- hã?
- esquece. dizias..
- tu que és poeta, diz-me lá o que é que vale a pena ler em português. poesia, poetas, o que é que um gajo deve ler?
- mas que raio de pergunta, pá. queres uma resenha histórica sobre a nossa poesia? queres uma dissertação sobre as poesias geracionais do século XX? ou sobre as correntes estéticas? antiga, clássica, moderna ou contemporânea? em língua portuguesa ou os palops e alguns excêntricos estrangeiros que escrevem em português também servem?
- raios te partam, pá. 'tás a gozar ou quê?
- não, pá, como na anedota, 'tou a levar isto muito a sério..
- diz-me lá, então, os teus preferidos, por exemplo!
- ok, aí vão. ruy belo, mário cesariny e antónio maria lisboa, manuel de freitas e rui pires cabral, josé miguel silva, ana luísa amaral, algum eugénio de andrade. são os que me ocorrem, mas faltam tantos. jorge sousa braga. sei lá, pá.
- não conheço quase nenhum, caraças.
- estranho, para quem passa os dias de fronha enfiada na cinemateca e, deixa-me dizer-te, para quem escreve bem como o diabo. falo de ti, pá, que cara é essa?
- pois, mas um tipo é sempre ignorante em tantas coisas.
- isso é bem verdade. estás aristotélico na tua lógica. ou será cartesiano?
- não me gozes, pá.
- não te gozo, pá.
- eu gosto mesmo é daquele gajo maldito, americano acho. o bukowski. conheces?
- sim, conheço. gosto muito.
- é isso, pá. a autenticidade, escrever cá de dentro, uma coisa visceral, torrencial - entendes?
- sim, entendo. gosto muito. chamo a isso uma estranha forma de sobrevivência, para quem vive atormentado pelos demónios da lucidez.
- falas sempre assim? és curtido..
- quando quero, falo sempre assim. possuo um vasto manancial de recursos estilísticos, um fabuloso e estrepitante arsenal de vocábulos, domino formulações linguísticas arcaicas e nunca adormeço sem ler a enciclopédia..
- hã?!??!
- 'tava a brincar. mas diz lá, o bukowski o quê?
- gosto, pá. gosto à brava. pena não haver nenhum bukowski português.
- mas há.
- fogo, tu, sempre no gozo.
- nada disso. conheço pelo menos um, em campolide. físicamente, quero dizer. até aparece regularmente nos meus escritos num blogzeco que semeei - é a minha arte da jardinagem, em formato moderno e digital.
- e falares em português?
- certo. pois, o bukowski português. olha, assim de repente, lembro-me do antónio gancho, o tipo de braga. conheces?
- não.. diz lá o nome outra vez!
- antónio gancho. quase miserável. obra escassa. anos a fio num hospício. antes de morrer, consta que se desatou a rir. um certo sentido estético dos cigarros em riste. estás a ver o 'man'..
- tenho que ir investigar esse capitão gancho. isso na net dá alguma coisa?
- dá sempre, não é?
- pois é.
- mas há mais, para além do general de braga.. olha, conheço um rapazola que em dias especiais faz belos pastiches de bukowski. queres ver? tenho aqui na algibeira. diz assim:


ao charles bukowski


hoje ao almoço, atravessei o bairro
naquele passo de sempre.
quero dizer: o bairro que atravessei
é uma metáfora.
por isso dizem: triste pândego, usa
a linguagem a seu jeito,
é um lesa-linguística, uma lesma do pântano!
pobres literais, pobres literatos.
não sabeis vós por acaso como se escreve
a pôrra de um poema?
não sabeis vós como é que
um homem atravessa o bairro
e ainda assim sobrevive?
pois eu digo-vos:
esqueçam o terço, a arte sacra,
esqueçam o basketball e a soap opera,
misturem, e sejam generosos,
meia amarguinha portuguesa
com toda a vossa amargura.
puxem-lhe um fósforo - bum!.
depois metam conversa com todas as miúdas.
eu disse: todas. essa também.
façam a estatística trabalhar para vós.
aproveitem todas as manhãs,
tardes,
noites,
perdidos na cama delas.
quando acabar, comecem de novo.
e, de súbito, tudo terá passado.
sereis apenas memória largada ao vento,
sugestão num rodapé sem brilho,
um nome longínquo.

esta manhã, ao atravessar o bairro,
pensei em ti com toda a força que não tinha
e, o diabo me leve, se não foi
a melhor coisa que não tive em anos.



- é isso, pá. é isso. entendes o que eu dizia?
- entendo, amigo. perfeitamente. já sabes: antónio gancho. vai e dá-lhes que fazer.

16 junho 2009



[obrigado]

estação de inverno: 72ª estação




hoje, terça-feira, a septuagésima segunda estação de inverno.


de regresso à poesia melancólica e brutalmente comovente de manuel de freitas - talvez o alter ego metafórico mais próximo do que seria uma 'estação de inverno' de traços humanos.

neste e no próximo programa, usaremos como base o mais recente livrinho de manuel de freitas, de seu nome 'intermezzi, op. 25' (editora opera omnia), assim como uma preciosa antologia selectiva made in brasil (editora oficina raquel), volume inicial de uma colecção que tem como objectivo levar até aos leitores do lado de lá do oceano atlântico alguns dos poetas de nova geração nados e criados em portugal, no século xxi. chama-se, a colecção, curiosamente 'portugal 0' - simbólicamente ou semióticamente muito se poderia dizer sobre este 'portugal zero'..

e quanto à música, quanto às canções, que poderemos nós adiantar àquela nossa meia-dúzia bem contada de fiéis ouvintes? que daremos a escutar um pequenino bocadinho do novo disco de norberto lobo, o formidável 'pata lenta'; que continuaremos a escutar o mais recente opus dos soberbos junior boys, 'begone dull care'; que recuperaremos a memória do assombroso '69 love songs', assinado pelos the magnetic fields; que mergulharemos na jovem mas pungente obra de bon iver, esse mergulhador em profundidade; que, na secção de clássicos, colocaremos lado a lado elvis costello e bob dylan.. coisas assim, amigo(a)s.

e assaltá-nos, uma e outra vez, o nome daquele filme, de um cineasta oriental (talvez malaio? talvez tailandês?) que diz assim: 'tropical malady'. doença dos trópicos? isso mesmo. isso mesmo.

bem-vindos à estação de inverno.


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15 junho 2009

há dias em que escrever nos salva de nós próprios,
bem o sabemos, todos os que frequentam o templo da palavra.
outros dias há em que escrever nos custa a pele e os olhos mil
que não temos - mas que valem aqui como metáfora para o tanto
que queremos dizer, sem saber exactamente como.
por vezes, abrimos o teclado - como a antiga e já morta
máquina de escrever do avô - e teclamos furiosamente,
à procura de matar pelo tédio ou pela raiva todas as palavras
e assim nos esvairmos com elas, ou pelo menos a dor completa
que somos em dias infelizes. todos os temos, amigo leitor,
não desvies o olhar, mesmo se as palavras, estas palavras,
te desfazem o sorriso, pedras pontiagudas e traiçoeiras,
vindas dos confins do universo e da mão que ainda agora beijavas.
vá-se lá entender o mecanismo sideral que tudo comanda, desabafas
agora de ti para ti. ninguém te ouve, e tu sabes. agora entendes,
finamente, finalmente, que este texto é nitroglicerina e dinamite,
tnt, hidrogénio desviado, gás pimenta com metade de gás mostarda.
tudo coisas que fazem chorar, ocorre-te. mas tu, leitor meu, sabes
que os dedos que neste exacto e irrepetível segundo martelam este
teclado remoto não se debruçam sobre um território de fantasia,
cosa mentale, reino imaginado, floreado mal semeado, enredo ficcional.
não, não, não. sabes bem que o poeta é apenas um demiurgo que ficou
do lado de cá, sujeito às tempestades inclementes, fiel depositário
de segredos que bem melhor seria terem ficado para outrém. triste,
solitário, solidário (o que dói duas vezes mais), o poeta é um ser
impotente, velejador solitário, um ser que vegeta, por lhe ser
impossível viver a vida tal como tantos outros a levam. e porquê?,
perguntas tu, leitor amigo. e porquê?, pergunto eu, escritor pateta.
não sabes, não sei, ninguém sabe. calhou assim, pouca sorte, é a vida.
não tens respostas, mas tens perguntas. esse é o mistério maior das
leituras que fazes, sentir essa partilha maldita, entre eu que escrevo
e tu que me lês, entre tu que me fazes escrever e eu que te faço ler,
transmutada nas palavras angústia, dúvida, mal-estar, sobressalto.
inquietação, pois então. inquietação, como não. inquietação, danação.
lembras-te de darwin e da teoria da evolução das espécies. que bom
seria se emoções e seres emocionados, emocionáveis, pudessem trilhar
esse caminho de progresso, de crescimento, ganhando robustez, força.
mas numa escala mais útil, durante o teu tempo de vida, essa janela
minimal que te é concedida. procurar o júbilo em vida, espalhar a alegria,
exercer o magistério da luz. para os outros, mas também para ti.
para ti, leitor. e para mim, que escrevo. e partir em mil o espelho
que nos aproxima e separa, que nos deforma e devora. era hora..

mas não é.

09 junho 2009

short summer break




tal como na véspera de eleições, quando se decreta um 'dia de reflexão', não há autorização para iniciativas eleitorais, debates políticos e afins, também, por vezes, em certas vésperas, sentimos necessidade de estabelecer um tempo de reserva, um espaço de resguardo..

..do mundo, das palavras, das imagens, dos sons, das memórias, das esquinas, das feridas, das cores, das sílabas, dos diálogos, das chamas, do frio, das estações interiores, das casas, das caras, de vós, de nós. das flores. do inverno.

este espaço entrará assim em hibernação, nos próximos dias. é natural que voltemos, na próxima segunda-feira, para dar conta da estação de inverno #72, como é nosso hábito.

até lá, votos amigos de dias felizes, solares, ternos. eternos.

estação de inverno: 71ª estação




hoje, terça-feira, a septuagésima primeira estação de inverno.


as palavras de miguel-manso, intensíssimo poeta de nova geração, a partir da recente reedição do seu livrinho 'contra a manhã burra' (primeira edição do próprio autor; segunda edição da mariposa azul). uma poesia à flor da pele, cheia de despojos e incêndios.

em complemento, uma hora integralmente preenchida pelas canções lentas, metálicas, ora em brasa ora geladas, dos junior boys, uma dupla canadiana que muito amamos, aqui na estação de inverno. escultores de preciosas canções de amor (ou melhor, sobre o fim do amor), de base electrónica. elegância e bom gosto na arquitectura sonora, sobriedade pungente nas palavras, uma nostalgia avassaladora em cada esquina..

usaremos os três discos editados até à data: a surpreendente estreia com 'last exit'; a confirmação que chegou com o segundo 'so this is goodbye'; e o belíssimo e recém-editado terceiro tomo, de seu nome 'begone dull care'.

desta música se diz recorrentemente: é como neve a cair, lá fora e sobre o nosso coração. não saberíamos dizer melhor.

miguel-manso e junior boys. ou metal e melancolia. e flores.


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08 junho 2009

autobiografia


minha cabeça estremece com todo o esquecimento


(..)


sou uma devastação inteligente.
com malmequeres fabulosos.
ouro por cima.
a madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete.
sou alguma coisa audível, sensível.
um movimento.
cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
ou flores bebendo a jarra.
o silêncio estrutural das flores.
e a mesa por baixo.
a sonhar.


herberto helder

o que andamos a escutar:

05 junho 2009





uma selecção particular da poesia de alejandra pizarnik:


alejandra alejandra
por baixo estou eu
alejandra

--

eu não sei de pássaros
não conheço a história do fogo.
mas julgo que a minha solidão deveria ter asas.

--

apenas a sede
o silêncio
nenhum encontro

cuidado comigo, meu amor
cuidado com a silenciosa no deserto
com a que viaja de copo vazio
e com a sombra da sua sombra.

--

salta com a camisa em chamas
de estrela em estrela,
de sombra em sombra.
morre de morte longínqua
a que ama ao vento.

--

memória iluminada, galeria onde flutua a sombra do
que espero. não é verdade que virá. não é verdade
que não virá.

--

explicar com palavras deste mundo
que partiu de mim um barco levando-me

--

diz que não sabe do medo da morte do amor
diz que tem medo da morte do amor
diz que o amor é morte é medo
diz que a morte é medo é amor
diz que não sabe

--

recebe este rosto, meu, mudo, mendigo.
recebe este amor que te peço.
recebe o que há em mim que és tu.

--

ainda não é agora
agora é nunca

ainda não é agora
agora e sempre
é nunca

--

o vento tinha-me comido
parte da cara e das mãos.
chamavam-me anjo andrajoso.
eu esperava.

--

na não crispada de um morto,
na memória de um louco,
na tristeza de um menino,
na mão que procura o copo,
no copo inalcançável,
na sede de sempre.

--

(..)

no meu olhar perdi tudo.
é tão longe pedir. tão perto saber que não há.

--

o cão do inverno ferra o meu sorriso. foi na ponte.
eu estava nua e levava um chapéu com flores e
arrastava o meu cadáver também nu e com um
chapéu de folhas secas.
tive muitos amores - disse - mas o mais formoso foi
o meu amor pelos espelhos.

--

e o que é que vais dizer
vou dizer apenas algo
e o que é vais fazer
vou ocultar-me na linguagem
e porquê
tenho medo

--

apenas palavras
as da infância
as da morte
as da noite dos corpos

--

o centro
de um poema
é outro poema
o centro do centro
é a ausência

no centro da ausência
a minha sombra é o centro
do centro do poema

--

não,
as palavras
não fazem amor
fazem ausência
se digo água, beberei?
se digo pão, comerei?



alejandra pizarnik

todos os poemas e um excerto de poema [assinalado com (..)] a partir de 'alejandra pizarnik - antologia poética', editora correio dos navios.

04 junho 2009

sehnsucht nach einem dolch*, 1917

um rapaz e uma rapariga, gente jovem a valer dos nossos tempos. oskar e emma de seu nome, amavam-se. era profundo o seu amor, e ninguém duvidava menos e acreditava com mais fervor neste facto do que eles próprios. até aqui tudo seria perfeito, só que havia qualquer coisa que lhes faltava, e vamos dizer já o que era esta qualquer coisa estranha e fabulosa que lhes faltava. ninguém, para onde quer que olhassem, os impedia. tinham licença, por assim dizer, para se amarem, beijarem, beijocarem e explorarem, sempre que para tal tivessem vontade. mas era precisamente esse o problema: na ausência de entraves, cada vez menos tinham vontade de se dedicar a esta edificante ocupação. se alguém viesse intrometer-se e os proibisse de trabalhar, a vontade deles seria tanto mais forte. os dois bons e excelentes jovens adoeciam por virtude de uma abundância de liberdade, e os seus suspiros tinham por motivo uma falta de obstáculos. pois a ambição deles, é preciso que se saiba, era a novela italiana, e como é do conhecimento comum as novelas italianas contam a história de amantes que se amam tão fogosamente, tão intimamente e com tão grande paixão apenas porque não devem. oskar e emma, entre outras coisas, não tinham sequer pais cruéis e casmurros. faltava-lhes também o vilão que à noite espreita vilmente por detrás de um arbusto. sim, é verdade, não tinham sequer um vilão, o inimigo do amor, sempre terrivelmente desconfiado. mas tinham consciência de todas estas falhas e afligiam-se muito com elas. ó triste era moderna, quadrangular e abstémia, ó indigna época das companhias aéreas e das viagens à volta do mundo, agora bem vês como às tuas mãos sofrem todos os amantes àvidos de aventuras. o amor de oskar e emma morria aos poucos, e porquê? exacto, por não haver perigo. ninguém os ameaçava, ninguém lhes fazia frente, e assim começavam a adormecer no cumprimento da sua actividade. sempre que a actividade é concedida às cegas e sem mais, depressa começa a aborrecer e a retrair os movimentos. é esta a terrível anedota dos tempos em que estamos condenados a viver: tudo é permitido. mas quando tudo é tão vilmente permitido, quando os amantes podem abraçar-se à vontade, sem que um deles tenha que olhar à sua volta, cheio de receio e sofrimento, para ver se algum perigo se abate sobre eles, tal implica a impossibilidade da novela italiana. oskar e emma queriam fazer uma novela, mas ela não singrava, começava a soçobrar. o estilo torna-se flácido. querer criar uma novela genuína na ausência de qualquer perigo: eis um princípio pouco auspicioso. os perigos afinal são as veias e os impedimentos são a vida de uma novela. e já não há impedimentos neste mundo sem carácter nem orgulho, incapaz mesmo de alimentar um nobre preconceito. as crianças podem vir ao mundo quando bem entenderem, antes ou depois do laço sagrado. oskar e emma bem o sabiam, e uma enorme angústia fincava garras nos seus jovens corações. os pais deles eram gente sem preconceitos, oh miséria. mas, na ausência de preconceitos, a novela é impossível. as novelas só podem singrar no terreno selvagem e precioso dos preconceitos arreigados. onde haja alguém que seja indiferente, e onde não haja ninguém que não seja indiferente, também não pode haver histórias de amor. nas antigas novelas italianas, ninguém é indiferente, e é por isso, é por isso que oskar e emma teriam preferido morrer. mas morrer não é assim tão fácil na ausência de um punhal que peça para ser desembainhado. oskar e emma quase que morrem de *saudades de um punhal.


robert walser
in 'histórias de amor', editora relógio d'água

['the impossibility of february', by maira kalman, found at the new york times site]

03 junho 2009

under the grey sky, my love and i
afraid of the reason why, myself and i
beaten up and shy, my heart and i
gloomy days, restless nights - and i.
- i like the smell of napalm in the morning.
- it reminds me the words of someone.. in the movies..
- yeah. apocalypse now. i know.
- a bit melodramatic, don't you think so?
- no, i don't honestly. do you by chance know any better expression when you wake up and immediately feel the smell of decadent flowers? i don't.
- i see. it's like waking up and then you find - then you know - that it smells like..
- defeat?
- right. defeat. napalm it's ok, then.
- just what i think, buddy.

(he gently walks away from the mirror).

02 junho 2009

'é aqui que se distinguem os esgrimistas puros (..) dos espadachins de tasca..'




there is something i wanted to tell you, it's so funny you'll kill yourself laughing but then i, i look around, and i remember that i am alone, alone. for evermore. the tile yard all along the railings, up a discoloured dark brown staircase here you'll find, despair and i, calling to you with what's left of my heart, my heart, for evermore. drinking tea with the taste of the thames, sullenly on a chair on the pavement here you'll find, my thoughts and i, and here is the very last plea from my heart my heart. for evermore. where taxi drivers never stop talking under slate grey victorian sky, here you will find, despair and i. and here i am every last inch of me is yours, yours, for evermore. your leg came to rest against mine, then you lounged with knees up and apart. and me and my heart, we knew, we just knew, for evermore. where taxi drivers never stop talking, under slate grey victorian sky. here you'll find, my heart and i, and still we say come back, come back to camden. and i'll be good, i'll be good, i'll be good, i'll be good.

pergunta o sérgio godinho: 'pode alguém ser quem não é?'

desculpa, sérgio.. não sabemos quem somos. por isso não podemos responder.

em verdade, em verdade vos digo..

estação de inverno: 70ª estação

hoje, terça-feira, a septuagésima estação de inverno.


uma edição especial da estação de inverno, integralmente construída com base num alinhamento musical e na sua respectiva contextualização, canção a canção. não teremos, assim, qualquer leitura de poemas, referência a um(a) autor(a) ou a um livro em particular - notem bem que não quer dizer que não exista 'poesia', durante estes 57 minutos..

a pop cristalina, solar, quente de isabelle antena e dos radar kadafi; a evocação da passagem por lisboa dos wilco; a revisitação dos sons negros dos anos setenta, através da spoken word jazzy de gil scott-heron, da soul melodiosa de marvin gaye, da soul barroca de isaac hayes, do groovy funk de curtis mayfield; a recuperação do belíssimo terceiro disco de perry blake ('california'), através das suas 'pretty love songs' (homenagem, precisamente, aos sons negros atrás mencionados); a 'malaise' gritada com eloquência e pungência pelos amigos the national.. coisas assim.

bem-vindos sejam à estação de inverno.


[disponíveis todos os podcasts de emissões anteriores.. aqui!]

[rádio zero: terças: 23h-24h; repete sábados: 14h-15h]
[ruc: madrugadas de domingo para segunda: 3h-4h]