habituara-se com o passar dos anos a encontrar naquele café de bairro uma espécie de concha protectora.
lembrava-se bem dos primeiros anos em que nem reparava, no seu passo ainda jovem, naquele pequeno cubículo (5 por 5?, perguntava-se amiúde). por um daqueles acasos em que a vida é fértil, um dia entrou - talvez por necessidade de ocasião, coisa que dá sempre um bom motivo..
com o passar das semanas, o minúsculo café de bairro passou a desempenhar um papel. toda a gente sabe que quando as coisas começam a desempenhar um papel, entramos de cabeça numa nova era: a era 'depois de'. nada mais fica como dantes - toda a gente sabe. e, se não sabe, devia.
primeiramente funcional, sítio onde se come meia torrada - com pouca manteiga - e meia-de-leite - de máquina e morna -, uma italiana-mesmo-italiana. e onde se lê, em 30 minutos rigorosamente cronometrados, o jornal do dia. depois, uma coisa diferente.
recanto bairrista num bairro que ainda resta, aldeia de astérix rodeada pelo grande império urbano, habituou-se a ir, naqueles 25 metros quadrados, ao encontro da humanidade. da humanidade possível, tanto quanto é possível encontrar, nas poucas dezenas de caras habituais, uma certa ideia representativa da e de humanidade. voltar às coisas simples - não raro pensava nesta frasezinha.
o tempo continuou na sua marcha. o tempo passou. mudou de hábitos.
agora, já não entrava para o cada vez menos ritual diário. passava e cumprimentava. reconhecia e era reconhecido. humanidade é também isto - não raro pensava nesta outra frasezinha.
o papel evoluíra. o depois era já um depois do depois original.
agora entrava só às sextas-feiras. ao final da tarde, encontrava naquele espaço exíguo uma câmara de passagem para o mundo do fim-de-semana. lia sôfregamente os suplementos culturais - em busca de um click, de uma palavra mágica, de uma mensagem em código escrita só para si. em busca de beleza. em busca de si. em busca de sentido. regularmente, estas últimas 4 palavras formavam uma frasezinha na sua cabeça.
neste pequeno mundo de sexta-feira, as pessoas saudavam-se. as pessoas reconheciam-se, naquele conforto que nos faz acreditar que há pelo menos uma evidência de que nem tudo é dissolvente. aquele 'comfort of strangers', ainda que já não 'strangers' no mais puro sentido do termo.
falava-se de coisas triviais. do benfica, da tvi, da sic notícias, do sócrates, das coisas chãs do quotidiano, de coisas assim. ele ouvia e raramente falava. mas aprendia. como só se aprende na rua, na humildade banal. aprendeu cedo que é no chão que se encontram coisas (grande césar monteiro!) e que no meio do óbvio ululante se encontra, em dias de lua cheia, o sublime. flores selvagens, flores em pleno inverno. como aquela flor que um dia viu nascer numa lixeira, sem vergonha da sua circunstância, porque orgulhosa era da sua origem e da sua estirpe. ou como aquelas crianças recolhedoras de lixo que lhe partem o coração, nos documentários que raramente espreita. ou como os pequenos seres do filme que um dia amou ('los olvidados', de luis buñuel, filmado a preto e branco na cidade do méxico), num serão de domingo. filmes destes mudam um homem - mais uma frasezinha que se colou à sua pele.
nesse cafézito de bairro, afinal o anti-herói desta estória, habituou-se a escutar música. boa música. música variada. encontrou no dono do café um rosto sempre sorridente e afável. um rosto amigo, pode-se - agora - dizer. aí descobriu certas coisas dos anos 70, já que o novo amigo tem mais 10 anos do que o nosso rapaz. embrenhou-se nas origens da música americana, deliciou-se com alguns dos 'founding fathers'. aprofundou coisas como o 'alternative-country', a 'new weird americana', o 'folk-rock' da grande américa.
mas o papel continuava a evoluir. as coisas não páram, nunca páram. por isso o importante é sempre controlar a direcção e o sentido, mais do que o ritmo ou a orquestração. lições de vida e assim.
o espaço mínimo era agora um refúgio de bem-estar. um sítio onde encontrava sempre um sorriso, dois dedos de conversa, uma palavra amiga, uma piada que o fazia rir a bom rir.
quantas vezes ali passou uma hora inteirinha a enviar e receber mensagens.
quantas vezes ali recebeu mensagens de amor - louco, explosivo, total. ali, em 25 metros quadrados, voôu. sem aspas.
quantas vezes ali esperou pelas mensagens que não chegaram. pelos jantares que não aconteceram. pelo amor que se dissolvia, enquanto ele, inebriado e febril, se sentia o rapaz mais feliz do mundo.
'porque as pessoas não se dividem em boas e más; ou em ricas e pobres. as pessoas dividem-se entre aquelas que têm prazer no amor e aquelas que nunca o tendo sentido olham para as primeiras com incompreensão e inveja'a frasezinha de ana teresa pereira. prazer no amor. animal, visceral, aniquilador. libertador. sentido - o amor como único sentido.
ali, naquele exacto café. tantas lágrimas interiores, por entre bicas curtas e conversas longas. tantas explosões de alegria ao ler as palavras mágicas iluminar o pequeno visor. coisas que começavam com 'gi:'
e o mundo começava ali. nada mais importava.
lembra-se bem o nosso rapaz de há uns quantos meses a sua vida ter estado quase-quase-quase para mudar. todinha, naqueles golpes mágicos que mudam o nosso destino. e o nosso papel. lembra-se bem o nosso rapaz de pensar que em breve ia dizer adeus àquelas ruas de bairro, àqueles pequenos rituais. a um sítio onde afinal aprendera a trabalhar e onde, à sua maneira, fora feliz (tanto quanto se pode ser no e pelo trabalho, claro está). lembra-se de pensar com emoção nos dois amigos que 'ficariam para trás' - físicamente e no dia-a-dia. e lembra-se que, logo a seguir a esta memória do espaço e a esta imensa saudade dos amigos, vinha logo logo o tal cafézinho de bairro e o seu dono-amigo-sorriso-e-assim.
o nosso rapazola espera ter a coragem de lhe dizer isto que aqui esconde do mundo. e de ter a oportunidade, porque nunca se sabe. salta-lhe ao caminho e assalta-o a consciência da grande lição que aprendeu em 2007 (até 4 de agosto, para os mais preciosistas):
love is not about
saying i love you
love is about
the things you DO
to those people
you say
you love.uma pessoa de quem o nosso rapaz, noutros tempos, gostou muito, brincava com o nome do nosso pequenino anti-herói, o tal cafézito: chamava-lhe 'i love you'. e assim ficou como sub-título para essa história de amor louco. e, anos passados, para a história que o nosso-vosso rapaz vos traz hoje: a história de uma amizade improvável. uma amizade suave, gradual, com tempo. que encontrou direcção e sentido, em vez de se preocupar com ritmo, tempo, orquestração.
ontem o rapaz recebeu uma prenda.
uma gravação de um disco de 1972 - o seu ano de nascimento -: 'american gothic', de david ackles.
disco fantasma, impossível de encontrar, que procurava há 10 anos.
o dono do café 'i love you' escutou os seus comentários, enquanto liam a meias a 'uncut'. e registou. e, num dia de agosto de 2007, o gi finalmente recebeu o convite para uma viagem pelos fantasmas de um obscuro & luminoso trovador da américa, na transição nada suave dos anos 60 para os anos 70. um homem que, com algo de randy newman, algo de tom waits, algo de leonard cohen, gravou talvez 3 discos e.. desapareceu na linha do horizonte.
talvez tenha encontrado a beleza. talvez tenha encontrado os golfinhos cantados pelo tim buckley nos olhos de alguém. talvez tenha simplesmente preferido dissolver-se.
chamava-se david ackles - e era só maiúsculas.