26 agosto 2007

eduardo prado coelho (o jardim está de luto)



há dias assim.
procuramos a luz nos lugares mais recônditos dentro de nós, fora de nós - todos os lugares parecem-nos bons lugares para encontrar um raio de luz.
procuramos, procuramos.. e não encontramos.
noite de cristal.
a hora do lobo.
noite das facas-longas.
todas as expressões nos ocorrem, numa mistura enevoada de memórias dos livros de história, estórias vividas, pedaços de ficção um dia lidos. turbilhão voraz de palavras, conceitos, imagens. momentos de grande violência; momentos de irracionalidade, animalescos, instintivos; momentos de aniquilação, com aspas ou sem aspas, ou não vivêssemos nós num tempo em que 'a realidade não interessa nada; só interessa a percepção' (assessor do então candidato sarkozy dixit). e se assim é, a percepção é avassaladora.
tentamos ser bons - com toda a subjectividade inescapável, mas tentamos.
e nada resulta.
espiral até à náusea de coisas más.
más palavras.
mau sentido de timing.
má conjugação astral.
exercícios de demolição do que somos.
chegamos à cama exaustos, desalegres, descrentes, sózinhos de uma forma irredutível.
e, quando a noite parece escura-escura,
num último esforço em busca de companhia, de uma trivialidade que nos faça sorrir, de um pouco de banalidade que nos faça parar de pensar,
ligamos mecânicamente o rádio
e, sem piedade,
desferem-nos mais um golpe,
sobre quem é (está) só escombros:

morreu eduardo prado coelho.

ficamos assim, ainda mais em silêncio.
já nem uma lágrima cai - até o corpo nos abandona, ali, entre quatro paredes que - juramos - se movem, num movimento letal de esmagamento.

corpo em câmara ardente, blah, blah, blah. as coisas do costume.

o eduardo prado coelho.
o pós-moderno por excelência.
o ensaísta polivalente.
o generalista compulsivo.
o mestre em tudo (ou em nada, diriam os seus críticos).

sei lá.
lia-o há 15 anos, na sua crónica do jornal 'público'.
dias houve em que do jornal me bastava ler aquele rectângulo, colocado anos e anos na última página ou, mais recentemente, no caderno p2. onde quer que fosse, fosse qual fosse o lettering que fosse. o importante era ler, ler sempre.
o eduardo prado coelho falava de tudo. tudo lhe interessava. parecia ter lido tudo, tinha uma prodigiosa capacidade de síntese, e fazia por levar a alta cultura ou o pensamento mais sofisticado aos cidadãos interessados em mais do que a espuma dos dias.
interessava-lhe também a contemporaneidade e, não minto, julgo, até certos aspectos da cultura popular.
era, por isso mesmo, um intelectual atípico - alvo de escarninho, não raras vezes. um intelectual longe do engagée clássico, mas sem pruridos em declarar (e justificar) as suas opções políticas. imperdoável, pois claro, neste país de cordel.

para mim, foi um dos grandes cronistas do último quartel português. ao lê-lo, aprendi coisas sobre filosofia moderna, sobre sistemas de pensamento, sobre a importância da figura do intelectual (ou de certo tipo de intelectuais, para ser mais verdadeiro). aprendi melhor o significado da palavra cosmopolita, da palavra modernidade. aprendi coisas sobre evolução recente das ciências humanas. e da humanidade. e das pessoas. e da pessoa que sou.

e, acima de tudo, aprendi a coisa que custa mais. aprendi, um bocadinho mais e um bocadinho melhor, a pensar.

portanto, agora que partiu, resta-me dizer: bolas, eduardo, não podia ter sido noutra hora em que precisássemos menos de si?

gostava do sporting, da social democracia (enquanto modelo operativo de um socialismo moderno e de matriz europeia), do camané e da aldina duarte, da sua paris dos anos em que lá viveu; gostava de ler e gostava de ler poesia; gostava de cinema luminoso; gostava de ana teresa pereira; gostava de escrever e gostava de partilhar o seu mundo connosco; gostava de noite e do lux. e de mil e uma outras coisas que, ao longo de anos e anos, nos fez ver como merecedoras da nossa atenção.

aceite um abraço de quem se habituou a ler nas suas palavras uma declinação nobre de liberdade, fraternidade, inteligência, sensibilidade, modernidade, lucidez e civilização.
- coisa pouca e coisa comum, como é bom de ver.

valeu, Homem.