31 março 2010



jogos semânticos
lembram-me os fogos fátuos
da infância, portas de cemitérios,
o anúncio inclemente aos vivos
de que a sua hora
chegará.

por exemplo, um homem.
um homem ao sol, segurando
um jornal - de ontem e de amanhã -,
enquanto dóceis cãezinhos coloridos
dão cor e vida e um patusco sorriso
ao quadro.

não sei se é desta neblina semântica,
ou só desespero como diz alguém,
ali à esquina,
mas também a mim às vezes
mete nojo o que fazemos do amor
que fazemos.

as palavras são então
como catedrais esculpidas na pele
estátuas retalhadas a coração
e lápis de cor
um'outra forma de amor
- que sei eu.

repara no homem e nos cãezinhos
que lhe embalam a velhice.
diz-me: como posso sentir-me
mais perto do homem que dos amigos?
mais perto dos cãezinhos que do homem?
mais perto de ti do que de mim?

talvez sim, talvez não.
entretanto mergulho fundo no dia,
e finjo ser o que é possível
- como o meu nome:
que sabemos tão bem ser gi,
mas fingimos ser joão.

bill fay. uns quantos, poucos, discos portentosos, perdidos na história. depois foi-se. como tantos e tantas.

30 março 2010



à memória do senhor joão césar monteiro, esta espécie de "branca de neve" esculpida com sons e palavras. e também do senhor robert walser. e com um obrigado ainda ao senhor richard hawley, claro está.

adormecer ao som das páginas da mais recente edição das "folhas da cinemateca", reunião de textinhos sobre a obra, filme a filme, desse superlativo poeta que foi joão césar monteiro, talvez um dos nossos poucos verdadeiros poetas-malditos. tudo tão diferente da realidade que nos cerca. como se, ao adormecermos e fecharmos as páginas do livrinho, fosse um mundo alternativo que se suspende e hiberna.

robert bresson, escreveu para um dos seus filmes aquela frase: "que estranhos caminhos me trouxeram até ti". joão césar bebeu em robert, e por isso também nos lembra que "convém saber que, para envelhecer bem, o amor é o mais importante" e que "convém saber que, para amar bem, a velhice não é o mais importante".

nada disto faz sentido? então, fiquemos a olhar para o fotograma acima. nele é o quase perfil de sophia que vemos, a partir de um quase desconhecido documentário(?) com que joão se estreou. é uma natureza morta, se repararmos bem. mas natureza morta é uma tradução não exacta para o sentido original (da pintura), no qual o conceito definidor é mais o correspondente a "suspensão do tempo".

no fundo do fundo, falamos sempre do mesmo. mesmo que por interposta(s) pessoa(s). neste caso, uma senhora pessoa (sophia) e um senhor pessoa (joão césar).
e o que é a memória? por exemplo, estamos no natal de 1984 - esse mesmo, eternizado pela distopia fria de george orwell. nesses dias de medo nuclear (um medo externo que corrói por dentro, repara como  nuclear assume um duplo sentido e que essa duplicidade reforça a força sombria da palavra). estamos em 1984 e, na fotografia que agora prende os teus olhos, está tu, as tuas irmãs, as tuas primas. tens 12 anos de idade, a idade quase adulta está a um passo (sim, tu que contas a idades como os animais - cada ano valendo por vários, talvez venha daí o teu lado mais austero, uma certas gravitas que colocas em tudo o que tocas). na fotografia, estão os teus avós, álvaro, antónio, maria teresa, maria do céu, a tua tia-avó, maria alzira, os avós das tuas primas, hélio e rosa, a tua mãe, a tua tia. hoje, 25 anos depois, quantos estão vivos? a fotografia veio ter contigo, pela mão da dona rosa, que a entregou à tua avó, maria do céu. elas são as únicas sobreviventes desse tempo, se descontarmos as mamãs e as filhas das mamãs que também aparecem, gaiatas, sorridentes, na fotografia. faltam uns primos, faltam uns tios, faltam os pais. é uma fotografia formidável, não pela técnica, mas pelo amor que dela irradia, como são todas as fotografias onde estão avós, mamãs, filhas e filhos. a pj harvey canta qualquer coisa linda sobre o "desperate kingdom of love", em negro, mas existe também nesse verdadeiro esperanto universal, um outro lado, solar, em que tudo é belo, sereno, lindo. esta fotografia que te veio parar ao colo é muito difícil de encarar. nela estão alguns dos teus mortos mais bonitos, algumas pessoas que vivem em ti. por isso, rapaz de avental negro, quanto te disserem que não és deste tempo, que não te sabes relacionar com a modernidade, nunca te esqueças que sabes perfeitamente por que razão tal acontece: ninguém está verdadeiramente vivo quando aos ombros traz todos os seus mortos mais queridos. vinte e cinco ou vinte e seis anos são o quê? nada de nada, mera poeira astral, como gostas de dizer. claro que, em certos dias, gostarias de saber o que é estar vivo, como essas pessoas em que esbarras, no centro comercial, na fila do cinema, nas ruas da tua amargura. mas ninguém escolhe, como ninguém escolhe estar vivo. aceitar o melhor possível, "that's your job". disfarçar o melhor possível, "that's your trick". não desistir, "that's your mission". natal de 1984, uma tarde de sol, a ternura incendiária que sai de uma fotografia queima-te a ponta dos dedos, esses mesmos dedos que agora escrevem estas palavras. o gastão cruz, escreveu, no seu mais recente livro ("crateras") algo que diz

(..) estas palavras de quem está vivo e, às vezes, não respira.

acordamos ao som de 'sunrise', de murnau, provavelmente um dos filmes mais belos da história do cinema. acordamos com as imagens de 'walk in the park', dos beach house, provavelmente uma das mais bonitas canções do mais recente disquinho da dupla. ontem é hoje é amanhã. e ao contrário. sempre foi assim, sempre assim será, enquanto a gente não aprender a lição: o tiro que te dou será a mesma bala que me esmagará o coração.nada tem a ver com nada e tudo tem a ver com tudo. a gramática não existe, a semântica reina. e, perguntas tu, o que é a linguagem, de que serve? enganar a fome e a sede, incendiar a noite, embalar a criança - serve para isso, apesar de ser uma convenção, tão morta como os lábios que se beijaram em pompeia, tão viva como tudo o que virá. a isto se chama acordar aos Deus dará.

29 março 2010

28 março 2010

27 março 2010

26 março 2010

25 março 2010



uma coisa cortante entra no poema pelo início,
a semântica recorrente dissolve-se, está gasta,
é enxofre o que entra pela janela-precipício,
é fraca a moeda que o ácido tempo arrasta.

chumbo é a cor deste dia, inundação inteligente
mas não inteligível, saudades e pedra - basta -,
quando o que procuras é um sonho-que-é-gente,
nem mais, nem menos, a tua cidade dilacerada

reerguida, insurgente, ladina, uma mulher-cidade,
restituindo ao tempo traços roubados ao fúnebre nada.
uma coisa louca - insone, insana - linda de verdade
(arrancar a máscara negra, ousar o salto na passada.)

24 março 2010

foto: paulo nozolino


trompe l'oeil (trompe le coeur)

os fracassos todos de uma existência,
quando cuidadosamente empilhados,
observada uma certa coerência,
parecem uma espécie de pirâmide

monumental — ainda que truncada,

talvez — desde que olhados à distância
no momento preciso em que os atinge
o sol do entardecer, formando um ângulo
cujo valor exato se obtém
com base no... mas não, é mais esfinge

que pirâmide, sim, pensando bem —
quer dizer, uma esfinge estilizada,
sugerida apenas, como convém
a um monumento, ou cenotáfio, ao nada.

paulo henriques britto

'love is my only devotion'


um sms cruza a manhã, dizendo-me: "bom dia! grande escolha!". pergunto, de volta, a que se refere tão simpática declaração. na volta da volta, a mesma palavra amiga diz-me: "na radar, em repeat - escolheste a canção 'ten nights', dos spain". sorrio.

em 2006, as minhas aventuras radiofónicas começaram assim. fui, se a memória me não falha, o terceiro ouvinte da radar a programar 'a hora do bolo', o tal programinha em que os ouvintes fazem de radialistas, ao sábado à tarde. ao mesmo tempo que gravava o programa, pediram-me para deixar também o meu contributo para a rubrica 'em repeat'. deixei uma mão cheia de canções, as que me ocorreram naquele momento. se bem me lembro: lloyd cole, leonard cohen, jens lekman, rufus wainwright, os spain.. coisas assim, que foram passando na rádio, ao longo do tempo.

depois, bem, depois a minhas aventuras com a rádio continuaram, através desse programa-experiência que foi a 'estação de inverno', na rádio zero. 76 edições unindo 'a música que há na poesia' e 'a poesia que há na música', para citar directamente a declaração de intenções que consta da matriz do programa. um programa feito de amadorismo, amor fulminante pelas palavras, uma vontade avassaladora de mostrar ao mundo as canções que fazem o meu mundo. acabei esgotado, exaurido, perigosamente perto de algo que ainda não sei muito bem articular mas que, senti, não seria um sítio bonito. e assim, ao fim de 2 anos de emissões, a 'estação de inverno' chegou ao fim. foi bonito, foi lindo, e, como disse o poeta brasileiro, como o amor, foi eterno, enquanto durou.

rewind. estamos em outubro ou novembro de 2006. chamas-te joão, tens 33 para 34 anos de idade, o teu mundo é feito do que foi e do muito que havia ainda de vir e que não podias adivinhar.

forward. estamos em março de 2010. chamas-te joão, tens 37 para 38 anos de idade, o teu mundo é feito do que foi e do muito que ainda há-de vir e que não podes adivinhar.

entre uma coisa e outra: o mundo. a rádio. a vida. confesso que vivi, como dizia o outro. agora, é tempo de outra coisa.

entretanto, olhamos esse wenderiano movimento em falso e o que vemos? um lentíssimo travelling em tons esbatidos - cores que se apagam num preto e branco crespuscular, mas ainda luminoso -, enquanto o realizador fecha a claquete. nela, pode ler-se:

'um rapaz no inverno', cena 1, take 765.

como se sísifo descesse do olimpo e assumisse um rosto humano - agora e para sempre, por todos os séculos dos séculos. amén.

23 março 2010


chamam-se 'the flaming lips'. há quase 20 anos que assinam discos desequilibrados, oscilando entre canções tremendas e coisas com pouca graça. gostam de editar, como dantes se dizia, 'discos conceptuais'. são feéricos, excessivos, barrocos, psicadélicos, grandiloquentes, românticos, anacrónicos, épicos. só por isso, claro está, valem a pena. este ano, no festival sudoeste, creio que se estrearão em solo luso. eu não vou lá estar, já sabemos. mas quem me lê pode vir a estar. fica a nota. é coisa para vos deixar.. em ponto de rebuçado.

22 março 2010


saudades dos tempos em que a fórmula 1 era, adaptando livremente uma conhecida expressão, 'bigger than life' - o que pode dizer-se de uma outra maneira: que saudades dos tempos em que a fórmula 1 era uma arte.

inesquecíveis duelos entre senna e prost, rivais dentro e fora das pistas. senna era o maníaco que vivia a fórmula 1 vinte e quatro horas por dia, baseado em virtuosismo, coragem e um dna só ao alcance dos predestinados. prost era uma quase antítese: todo ele era calma, ponderação, sentido estratégico, domínio perfeito do timing. como se um fosse efervescente e o outro um bloco de gelo - apesar de, fora das pistas, por vezes dar a impressão de ser exactamente o contrário, o inverso.

sempre torci por prost, nunca gostei de senna. mas, penso, sempre houve dentro de mim uma luta surda, como sempre há, entre quase extremos - porque não sermos tudo? porque temos que escolher? eu sei o que não gostava em senna - o seu carácter obsessivo e os seus genes de campeão. e o que apreciava em prost - a sua maior humanidade e aquela ideia de que qualquer um, com método, pode chegar a qualquer sítio.

no fundo, senna e prost são uma forma de falar de todos nós. e, de certa maneira, um inverosímel - mas muito articulado - exemplo de como a ciência política (e até a filosofia) está (estão) em todo o lado.

senna teria feito, por estes dias, 50 anos.

rapazes que animaram os meus anos de juventude: obrigado. vou revelar-vos um segredo que talvez ambos, hoje, a partir do sítio onde estão, já conheçam - nenhum de vós teria feito inteiro sentido sem o outro. estes são os mistérios sublimes do tempo e da perspectiva, uma alternativa arte da revelação.

21 março 2010

19 março 2010



fascist baby.

sir bobby robson. um gentleman é um gentleman é um gentleman.

18 março 2010




algures na floresta do laos, uns milhares de antigos combatentes aliados dos estados unidos (pertencentes aos hmong), durante a guerra do vietname, passaram décadas num registo de sobrevivência pura - acossados pelo brutal regime que comanda o laos e que não esquece de que lado estes antigos combatentes estiveram.

fechados na sua redoma de medo primitivo, estabeleceram os necessários sistemas de equilíbrios sociais, imprescindíveis à sobrevivência enquanto grupo. presos ao passado, pelo passado - são um grupo de pessoas a quem o presente foi politicamente negado. e ainda à espera que aqueles que apoiaram - os estados unidos de outrora - os resgatem do seu calvário.

quando foram "encontrados" por uma expedição de jornalistas, em 2007, as fotos que retratam esse momento passaram a ser História. muitos choravam e diziam "america, help us".

no final da conversa com um jornalista americano, um dos seus líderes disse assim: "tente fazer alguma coisa por nós. mas, se não conseguir, não fique triste."

são das coisas mais tocantes que alguma vez vi. e olhem que eu, para o bem e para o mal, já vi muita coisa.

mandem sempre.

este ano já não sabemos bem que dizer. quer dizer, sabemos sempre o que dizer - ou quase sempre. mas sabemos que não queremos saber o que queremos dizer. por isso, mais cómodo é escondermo-nos por detrás da muleta da praxe: já não sabemos o que dizer.

este arrazoado vem, infelizmente, a propósito de mais um vulto amigo que se apagou. talvez seja mais apropriado escrever que se incendiou. é mais vero, biográfica e restrospectivamente. e, com sorte e fé no cosmos, pode ser ainda ser vero prospectivamente. isso é que era.

alex chilton, líder dos hoje quase desconhecidos big star, foi um músico de excepção. conhecem os rem? aposto que michael stipe e seus muchachos estão particularmente tristes. deviam-lhe tudo? não é verdade. deviam-lhe muito? decerto. por isso, na música como na vida, é bom ter genealogia, partir daqui para chegar ali, passando o testemunho de mão em mão. é disto que falamos quando falamos de constelações virtuosas - a forma possível de, metafísica pura à parte, contornarmos as leis da vida e da morte, a lâmina do tempo.

alex chilton: obrigado.

17 março 2010

sophie calle
cuidado com as palavras.
10 bandas / artistas, bastante diferentes entre si, mas sempre gravitando em terrenos mais ou menos 'alternativos', que vale a pena explorar no you tube:

dinosaur jr. [anos 90, indie rock]
echo and the bunnymen [anos 80, indie pop rock]
gang of four [final anos 70 e anos 80, post-punk]
jonathan richman [anos 70 e anos 80, pop mais clássico]
pavement [anos 90, indie pop rock]
the fall [anos 80, indie pop rock]
the feelies [anos 80, indie pop rock]
the moutain goats [anos 90 e anos 00, indie pop]
the sound [anos 80, indie pop rock]
violent femmes [anos 80 e anos 90, indie pop rock]

nota: nada disto é 'alternative country', 'americana', 'low fi', 'neo folk' ou 'singersongwriting mais ou menos obscuro' - aquelas coisas de que eu gosto ;-).

sempre às ordens.

16 março 2010

explosions in the sky e o seu excelso 'how strange, innocence'. o pós-rock nunca mais foi o mesmo. ou de como o lirismo mais arrebatador não precisa verdadeiramente de articular uma única palavra. uma trip, este disco, no melhor sentido da palavra. voltamos a ele, todos os anos. porque sim.


apetece-me escrever um poema todo em vertigem, souplesse e estilo,
como se ao volante de um esvoaçante bólide super-desportivo
beijando ao de leve o asfalto das esbeltas estradas do mónaco,
ao lado de uma morena de estalo e vestido mais do que negro.
mas a vida não é um filme de hitchcock, nem um livro strawberry light,
- antes o mesmo exacto bólide, fundindo-se agora contra um rochedo.

15 março 2010


lourdes castro (e manuel zimbro), em serralves. coisa linda de se ver.

nesse tempo em que ainda éramos felizes.

14 março 2010



'pluralitas non est ponenda sine neccesitate'
'frustra fit per plura quod potest fieri per pauciora'
'entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem'

paulo henriques britto, poeta superlativo:


as coisas que te cercam, até onde
alcança tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem

nem mesmo uma migalha de atenção,
essas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa

pois bem: elas vão ficar. você, não.
tudo que pensa passa. permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.

o mais é enchimento, e se consome.
as tais formas eternas, as idéias,
e a mente que as inventa, acabam em pó,
e delas ficam, quando muito, os nomes.
muita louça ainda resta de pompéia,
mas lábios que a tocaram, nem um só.

as testemunhas cegas da existência,
sempre a te olhar sem que você se importe,
vão assistir sem compaixão nem ânsia,
com a mais absoluta indiferença,
quando chegar a hora, a tua morte.
(não que isso tenha a mínima importância.)


--

há maneiras mais fáceis de se expor ao ridículo,
que não requerem prática, oficina, suor.
maneiras mais simpáticas de pagar mico
e dizer olha eu aqui, sou único, me amena por favor.

porém há quem se preste a esse papel esdrúxulo,
como há quem não se vexe de ler e decifrar
essas palavras bestas estrebuchando inúteis,
cágados com as quatro patas viradas pro ar.

então essa fala esquisita, aparentemente anárquica,
de repente é mais que isso, é urna voz, talvez,
do outro lado da linha formigando de estática,
dizendo algo mais que testando, testando, um dois três,

câmbio? quem sabe esses cascos invertidos,
incapazes de reassumir a posição natural,
não são na verdade uma outra forma de vida,
tipo um ramo alternativo do reino animal?


in 'macau', um pequeno grande livro de poesia contemporânea, made in brasil.
gergiev.

13 março 2010


neste mundo
caminhamos no telhado do inferno
e olhamos as flores


issa kobayashi

12 março 2010

11 março 2010



magnífico concerto, ontem, de owen pallet, também conhecido como final fantasy.

como dizer? talvez dizer que

entrei quase morto. e saí quase vivo.

bem-haja(s).

10 março 2010


a 10 de Março de 1959, a China assumiu o controlo do território Tibetano e o domínio mais do que musculado sobre a nação Tibetana.

estive por lá, em Setembro ou Outubro de 1998. quase 12 anos passados, estamos na mesma.

mas das coisas certas nunca se desiste, pois não? pois não.

bem me parecia.


citando uma voz delicada e muito amiga:

'há um coração de pássaro que se evapora'.

e há uma constelação algures que ganhou uma estrela nova.

nos comentários do you tube, alguém escreveu: "thanks for your music. thanks for the time that you were able to stay with us".

notem bem: as palavras chave são "you were able". nem mais.

09 março 2010


'its subjects are love, loss, and memory'

08 março 2010

(in memoriam de todos os mortos que me preenchem os dias)


anteontem primeiro domingo de novembro
a névoa podia-se cortar à faca.
as árvores brancas da geada e as estradas e planícies
pareciam cobertas por lençóis. depois apareceu o sol
enxugando o universo e somente as sombras
permanecem banhadas.
pinela, o camponês, atava as cepas
com ervas secas que segurava entre as orelhas.
enquanto trabalhava falei-lhe da cidade,
da minha vida que passara num relâmpago
do meu terror da morte.
aí silenciou todos os rumores que fazia com as mãos
e só então se ouviu um pequeno pardal cantando ao longe.
disse-me: medo porquê? a morte nem sequer é maçadora.
apenas vem uma vez!


in 'o mel', de tonino guerra, assírio & alvim


'a única salvação do que é diferente é ser diferente até ao fim, com todo o valor, todo o vigor e toda a rija impassibilidade; tomar as atitudes que ninguém toma e usar os meios de que ninguém usa; não ceder a pressões, nem aos afagos, nem às ternuras, nem aos rancores; ser ele; não quebrar as leis eternas, as não-escritas, ante a lei passageira ou os caprichos do momento; no fim de todas as batalhas — batalhas para os outros, não para ele, que as percebe — há-de provocar o respeito e dominar as lembranças; teve a coragem de ser cão entre as ovelhas; nunca baliu; e elas um dia hão-de reconhecer que foi ele o mais forte e as soube em qualquer tempo defender dos ataques dos lobos.'

agostinho da silva, in 'diário de alcestes'


mark linkous - o senhor sparklehorse - já não está cá, entre nós.

isto está bonito, está.

parafraseando o título de uma sua canção, it's a 'sad and beautiful world'.

- quando crescemos, um tipo vai-se apercebendo de que as coisas de que gostava afinal mudaram. como esse saltitão que te encanta, bébé, anos depois transformado, perante os teus olhos, apenas num pedaço de lata e cartão colorido. as coisas deixam de ser o que eram. um dia, dás por ti assim crescido, e percebes que, dessas coisas todas de que dantes gostavas, restaram duas ou três. alguns de nós, homens feitos, olham então para dentro de si e entendem que apenas ficou uma coisa. uma única coisa de que ainda gostam verdadeiramente. uma única coisa que, um dia saberás, bébé, os mantém vivos.

the hurt locker é um estupendo filme de guerra, o iraque como nunca o vimos. e, como todos os filmes de guerra, é um mergulho sem tréguas nos abismos da alma humana, quando as fronteiras são demasiado ténues, quando a adrenalina se torna uma necessidade (e tábua de salvação).

the hurt locker. the heart locker.

porque, às vezes, acordamos um dia e vemos que restou uma única coisa de que gostamos verdadeiramente.

06 março 2010


ontem, nas páginas da revista 'uncut', os vossos três reeditados discos valiam 3 x 3 estrelas. 3 estrelas?? 3 estrelas!!

não importa, rapazes. sereis sempre grandes, de certa maneira. da maneira certa.

03 março 2010



'a única liberdade que me resta é partir'

disse-me o senhor ruben a., escritor do século vinte português, através de uma fotobiografia organizada por um filho, esta manhã, enquanto esperava, numa espécie de consultório.

oráculo? quem sabe.

o que sei é que, entre publicações mais ou menos novo-ricas ou, ainda pior, eminentemente técnicas, foi aquele o livro que tropeçou em mim. aquele e não outro. e que, entre tantas palavras espalhadas por tantas páginas, foi aquela frase que se atravessou à frente dos olhos meus. aquela e não outra.

oráculo? quem sabe.

se nunca ouviram pavement, !BEM ALTO!, ao começar o vosso dia, não sabem o que perdem.

nada vos explicarei sobre isto, porque não há nada para explicar. sois homenzinhos e mulherzinhas - ide por vós.

02 março 2010

01 março 2010



foto: ara güler


no centro cultural de belém, uma belíssima exposição de fotografia.
ara güler é um octogenário fotógrafo da magnum que captou istambul como talvez nenhum outro homem ou mulher, na segunda metade do século xx. chamam-lhe 'o olho de istambul' e traz-nos uma cidade que ainda existe e todas as cidades que nela resistem, mais aquelas que não existem mais. porque as cidades são seres vivos, matéria orgânica - à imagem dos homens que as habitam, que as moldam, e que por elas são, por sua vez, moldados.
se tiverem tempo, passem por lá. quem sabe, istambul não entra nos vossos roteiros para 2010. meet me in istambul..?
acendimento

seria bom sentir no quarto qualquer música
enquanto nos banham os perfis ateados
pelo aroma da tília, sem voz, em abandono.
a entrada por detrás das ruas principais
onde a morrinha parece que nem molha
e se chega perdido onde se vai.
não, não é só um beijo que te quero dar.

quantas vezes nesta hora de desvalimento
vejo orion e as plêiades devagar no céu de inverno.
mas hoje
com a calma inesperada de chuvas que não cessam
acordo já depois. caí numa hibernação que não norteia
o desequilíbrio do sentimento.

espelhos sem paz tocam-nos no rosto.
na cega mancha de roupagem aconchego
cada intempérie com sua mentira
e depois sigo pela torrente, pelo enredo
dos outeiros, cada espelho continua
a caução pacificadora do engano.

é isso que te levo, isso que me dás
quando dizes, já sem o dizeres, eu amo-te.

pela berma da humidade cerrada
um risco de mercúrio trespassa.
na gravilha passos que não há
esmagam a música que ninguém escuta.
sabiam de cor tudo o que falhava,
a insónia repentina, o entorpecimento.

ouve a espessura dos nervos, a sua câmara
de conchas escavadas, a roseira azul do vime,
pastos químicos que transformam
o gradeamento acolhedor detrás do cérebro
na fauce lacerada
por onde o alibi imóvel parece fugir.

ao lado cantam os arpões.
eu passo com as mãos no seu cabelo.
e o passado é um tempo que não passa
em cada uma das dores que me pertence
e me roubaram.

aquele que tem fome desconhece
o alimento, pede apenas folhas,
a farinha de um vestuário com uso
e desmedido.
mas o que sempre comeu

não sabe os caminhos que sangram
e um dia a morte só lhe trará terror.

acordei cansado com os sonhos.
o rosto que foi amado e se perdeu
cintilava na roldana de corrente cega,
a floresta em carvão acorrentava
o pavor agrícola da pobreza,
e dentro do sonho um sonho mais disforme
mãos que sabiam sempre agarrar tudo
o que não fosse qualquer outra mão.

sorria para o asfalto. com o casaco
desabotoado e o embrulho em cima da carrinha.
as nuvens corriam pelo chão de aguaceiro.
findavam para si minúsculas assombrações.
correu a mão sobre a testa, ergueu
o cabelo que fervia.

vi-o inclinado sobre nada,
o pó fazia goma nos seus pés,
estava eu defrontado com um vulto
entregue à felicidade.
quando me viu levou o embrulho
para o banco de trás e trancou as portas.
tinha a cara azul, os olhos de vinho antigo,
fez-me um sinal desconhecido
antes de reabrir a porta e me fechar
na cidade inteira onde já não existia.

um fato de flanela cai muito bem
numa tez esguia, batida pela neblina.
cortei-lhe as calças com a lâmina pequena
e guardei a maior para a suavidade tardia

junto do empedrado
onde num clamor sem verdade
o morto caminho de volta diz
tristes de todas as coisas.

os braços por cima do seu tronco
a lua nova as constelações o ruído da terra
um vivo círculo mortal em seu redor.


páramo

na varanda sem paz eu vejo o mar
mas já não vejo junto desses olhos
que viam o mar amordaçar-me.
a varanda, todavia, ainda traz
na ondulação, nas maresias
a ilusão de um silêncio
em que tu pretendias: aqui,
nesta lei tão dura, senti
que nada mais terei do que ser de ti.
a varanda continua a sua conjura,
eu continuo o desgaste do mar
só que noutra jura a tua vida dura
e até o mar te deixou de esperar.

o vário vento que vem e que voa
sobre argolas com vasos de gerânios
que tombam vagarosos e rosas
sobre ruas ruidosas de Lisboa
toca ao de leve no copo por que bebo
esquecido e sozinho ali
onde dantes vinhas com o maior apego
ouvir ao fim da tarde eu olhar para ti.

ao alto dessas ruas que Lisboa já não tem
havia um andar quase arruinado
com o estilhaço, a cólera, o fermento
de quem se resignava também
a que não valesse a pena nada.
no vagar desse desmoronamento
essa ruína foi tua e foi minha,
o seu reboco de cal, a pele refém,
a cisterna petrificada.
amávamo-nos entre eléctricos que passavam
do nascer do dia até ao nascer do dia.

não há nada que se peça que nos seja dado
mesmo quando gritamos alto por perdão.
merecemos tudo o que ficou fragmentado
no pensamento que não sabe inebriar-se
quando os sentidos perderam o condão.

essas ruas de lisboa que findaram
como findaram os dedos que prenderam
o bordão de ternura
que tantos outros nos cortaram.

tal qual o prédio caímos
e apenas o pó
desenha entre o que nem persigo
um resto que sabe que está só
porque nenhuma solidão vem ter consigo.


joaquim manuel magalhães

[em 2001, joaquim manuel magalhães publicou 'alta noite em alta fraga', um dos cumes poéticos - e literários 'tout court' - da primeira década do séc. xxi português.]

'franny and zooey' é um livrinho com dois contos (ou serão novelas?) de j.d. salinger. parte do meu fim-de-semana foi passado em torno deste livro.

como é que dizia a canção? some things heart more, much more, than cars and girls.

ou aquela outra? strangeways, here we come.