acendimento
seria bom sentir no quarto qualquer música
enquanto nos banham os perfis ateados
pelo aroma da tília, sem voz, em abandono.
a entrada por detrás das ruas principais
onde a morrinha parece que nem molha
e se chega perdido onde se vai.
não, não é só um beijo que te quero dar.
quantas vezes nesta hora de desvalimento
vejo orion e as plêiades devagar no céu de inverno.
mas hoje
com a calma inesperada de chuvas que não cessam
acordo já depois. caí numa hibernação que não norteia
o desequilíbrio do sentimento.
espelhos sem paz tocam-nos no rosto.
na cega mancha de roupagem aconchego
cada intempérie com sua mentira
e depois sigo pela torrente, pelo enredo
dos outeiros, cada espelho continua
a caução pacificadora do engano.
é isso que te levo, isso que me dás
quando dizes, já sem o dizeres, eu amo-te.
pela berma da humidade cerrada
um risco de mercúrio trespassa.
na gravilha passos que não há
esmagam a música que ninguém escuta.
sabiam de cor tudo o que falhava,
a insónia repentina, o entorpecimento.
ouve a espessura dos nervos, a sua câmara
de conchas escavadas, a roseira azul do vime,
pastos químicos que transformam
o gradeamento acolhedor detrás do cérebro
na fauce lacerada
por onde o alibi imóvel parece fugir.
ao lado cantam os arpões.
eu passo com as mãos no seu cabelo.
e o passado é um tempo que não passa
em cada uma das dores que me pertence
e me roubaram.
aquele que tem fome desconhece
o alimento, pede apenas folhas,
a farinha de um vestuário com uso
e desmedido.
mas o que sempre comeu
não sabe os caminhos que sangram
e um dia a morte só lhe trará terror.
acordei cansado com os sonhos.
o rosto que foi amado e se perdeu
cintilava na roldana de corrente cega,
a floresta em carvão acorrentava
o pavor agrícola da pobreza,
e dentro do sonho um sonho mais disforme
mãos que sabiam sempre agarrar tudo
o que não fosse qualquer outra mão.
sorria para o asfalto. com o casaco
desabotoado e o embrulho em cima da carrinha.
as nuvens corriam pelo chão de aguaceiro.
findavam para si minúsculas assombrações.
correu a mão sobre a testa, ergueu
o cabelo que fervia.
vi-o inclinado sobre nada,
o pó fazia goma nos seus pés,
estava eu defrontado com um vulto
entregue à felicidade.
quando me viu levou o embrulho
para o banco de trás e trancou as portas.
tinha a cara azul, os olhos de vinho antigo,
fez-me um sinal desconhecido
antes de reabrir a porta e me fechar
na cidade inteira onde já não existia.
um fato de flanela cai muito bem
numa tez esguia, batida pela neblina.
cortei-lhe as calças com a lâmina pequena
e guardei a maior para a suavidade tardia
junto do empedrado
onde num clamor sem verdade
o morto caminho de volta diz
tristes de todas as coisas.
os braços por cima do seu tronco
a lua nova as constelações o ruído da terra
um vivo círculo mortal em seu redor.
páramo
na varanda sem paz eu vejo o mar
mas já não vejo junto desses olhos
que viam o mar amordaçar-me.
a varanda, todavia, ainda traz
na ondulação, nas maresias
a ilusão de um silêncio
em que tu pretendias: aqui,
nesta lei tão dura, senti
que nada mais terei do que ser de ti.
a varanda continua a sua conjura,
eu continuo o desgaste do mar
só que noutra jura a tua vida dura
e até o mar te deixou de esperar.
o vário vento que vem e que voa
sobre argolas com vasos de gerânios
que tombam vagarosos e rosas
sobre ruas ruidosas de Lisboa
toca ao de leve no copo por que bebo
esquecido e sozinho ali
onde dantes vinhas com o maior apego
ouvir ao fim da tarde eu olhar para ti.
ao alto dessas ruas que Lisboa já não tem
havia um andar quase arruinado
com o estilhaço, a cólera, o fermento
de quem se resignava também
a que não valesse a pena nada.
no vagar desse desmoronamento
essa ruína foi tua e foi minha,
o seu reboco de cal, a pele refém,
a cisterna petrificada.
amávamo-nos entre eléctricos que passavam
do nascer do dia até ao nascer do dia.
não há nada que se peça que nos seja dado
mesmo quando gritamos alto por perdão.
merecemos tudo o que ficou fragmentado
no pensamento que não sabe inebriar-se
quando os sentidos perderam o condão.
essas ruas de lisboa que findaram
como findaram os dedos que prenderam
o bordão de ternura
que tantos outros nos cortaram.
tal qual o prédio caímos
e apenas o pó
desenha entre o que nem persigo
um resto que sabe que está só
porque nenhuma solidão vem ter consigo.
joaquim manuel magalhães
[em 2001, joaquim manuel magalhães publicou
'alta noite em alta fraga', um dos cumes poéticos - e literários
'tout court' - da primeira década do séc. xxi português.]