No cimo do vulcão, encostado aos ninhos,
um arco de lava sustenta os morros já
partidos pelo tempo. É uma ameaça que
seca as plantas e corrói os bichos. As garras
descem do luar para dentro dos rochedos,
sustentando a ilha, deixando que as mãos
do vento desfaçam os seus segredos e a
matem devagar.
Era esta a fala da mulher,
(E se eu enlouquecesse) e entrasse num
mar branco, descendo pelas colinas ao teu
encontro, com os vestidos desfeitos pela
chuva, por entre as pedras grandes. E tu,
no teu silêncio, a olhar para as espigas
que rompem dos canaviais ao lado das
jovens flores do Inverno. O teu rosto gravado
no carvão e tu à espera, sentado, sabendo
que é dali que nascem os deuses dourados
e os anjos que combatem o sol.
E o homem,
é o teu corpo que eu quero na areia negra,
as tuas cicatrizes, o andar dos teus dedos
nas rochas que subitamente emergem para
te sararem as feridas e envolverem de algas
o teu cabelo.
As aves viajam pelo tempo, diz ele,
aguardam a chegada da noite como os
homens nas varandas das casas. Sonham
com a morte da água, com a sua raiz mais
funda, criando com esse pensamento uma
zona de pássaros.
E se eu morresse nesse encontro da lua
com o fogo,
é a fala da mulher,
e o meu corpo se partisse contra o vazio
no meio dos pequenos salgueiros,
enfrentando todos os lados da erosão,
tu olharias para o verde que tapa a ilha
e gritarias para os barcos ao fundo nas
pontas da espuma, na lagoa gigante.
O vulcão nasceu para ti,
diz o homem,
para que a tua boca se abrisse encostada
às suas costas e o envolvesse de névoa
e de bálsamo, desenhando desse modo
todos os sulcos e o lugar das plantas.
Porque ele é o alimento da ilha, é o seu
chão.
E o homem ainda,
É ali que as gaivinas fazem os ninhos,
assustadas com a cor do barro. Até que
o vento acabe de vez com as dunas e
o teu corpo ressuscite para dentro das
conchas.
As luzes morrem por cima dos telhados
entre dois pinheiros e há o ferro que
delimita as casas, o bolor construído
pelas aves.
Uma pequena enseada vazou-.se,
desapareceu no meio dos navios. E todos
os náufragos se encostam às paredes, aos
ninhos que a espuma constrói dentro das
rochas, nessa escuridão, na pele doente.
É a pele do vulcão vencida pelas beladonas,
pelos regos de chuva, pelo sal.
E o homem diz,
vejo as nuvens no cimo dos morros, como
crostas. É o teu corpo que se dissipa na
paisagem, o teu sangue. São as ervas
selvagens, o calor. Tudo se estende pelas
tuas veias, os barcos, a saliva, o vinho.
É o fumo que sai das grutas, são as
hortênsias,
é a fala da mulher,
é o teu olhar que desenha a curva das
estradas, a cor das colinas, as bermas
roídas pelo mar. É por ti que nasço para
os dias porque és tu que seguras as casas
por onde passa o meu corpo.
E o homem,
o vulcão é meu, inventado por mim, como
um cavalo a subir para o prado mais alto,
galgando os muros, como um homem
antigo invadindo as aldeias do norte. Um
homem refugiado no silêncio, despido contra
o fogo, à tua espera.
(E se eu enlouquecesse), é a fala da mulher,
e encostasse o vulcão ao meu peito. Ou
o levasse para o meu quarto escondido na
água. E a tua dor fosse maior do que a lava
que o sustenta.
A ilha inclina-se para o sol. Mas a cratera
resiste no seu espaço criando musgo dentro
do nevoeiro. Tudo se passa à margem da
chuva, com as mãos que seguram a humidade
do rosto. Há ali dentro um monstro vivo, um
fulgor.
É ali que as tuas danças renascem a cada
momento, quando a sombra passa pelas
escarpas e deixa nos degraus o desenho
de uma estátua.
Diz o homem,
quero-te lá, definitiva, na boca da terra, à
passagem do frio, anunciando as luzes e
os morcegos, como se os dias se fechassem
dentro de búzios, na sua música, no seu
andar pela areia.
São os tambores, diz ele,
é o anúncio da paixão, a poeira que ferve
no vento, a argila, os gritos.
E depois deito-me no lodo, é a fala da mulher,
e aguardo que o teu vulto se sobreponha à
montanha e a rasgue pela floresta adentro
como um incêndio que se aproxima das
tábuas e as devora.
É ele, o vulcão, insiste o homem,
é o seu dorso que eu vejo desenhado
na noite, é ele que manda no horizonte.
É o recomeço do amor, diz ela,
o líquido que corre debaixo das ervas.
É a ilha, a sua fabulosa construção,
a sua fenda.
E o homem,
são os seus dedos que se pegam ao meu
peito como espinhos.
És tu, diz a mulher,
o teu olhar sobre uma morte antiga.
Somos nós, dizem eles,
o vulcão e o mar, os deuses que tocam
na terra e pintam os caminhos, os faunos.
É a dor, acrescentam,
são todos os objectos que pertencem às
colmeias, o lençol que cobre a cintura,
a mancha que sobe pela cinza, os ombros.
E se enlouquecêssemos,
e nos acorrentassem aos navios e os
homens fossem recolhendo para nós
os grandes peixes, com ganchos, como
os lobos num bosque frio.
Ficaríamos ali, tu e eu,
como colunas brancas, até que o fogo
nascesse de novo do fundo do oceano
e uma semente quisesse libertar a ilha
do temor e da sede.
Colados ao precipício, para sempre.
--
O Vulcão, o Dorso Branco
foi escrito por Jaime Rocha
e publicado pela Averno,
em Maio de 2013.
um arco de lava sustenta os morros já
partidos pelo tempo. É uma ameaça que
seca as plantas e corrói os bichos. As garras
descem do luar para dentro dos rochedos,
sustentando a ilha, deixando que as mãos
do vento desfaçam os seus segredos e a
matem devagar.
Era esta a fala da mulher,
(E se eu enlouquecesse) e entrasse num
mar branco, descendo pelas colinas ao teu
encontro, com os vestidos desfeitos pela
chuva, por entre as pedras grandes. E tu,
no teu silêncio, a olhar para as espigas
que rompem dos canaviais ao lado das
jovens flores do Inverno. O teu rosto gravado
no carvão e tu à espera, sentado, sabendo
que é dali que nascem os deuses dourados
e os anjos que combatem o sol.
E o homem,
é o teu corpo que eu quero na areia negra,
as tuas cicatrizes, o andar dos teus dedos
nas rochas que subitamente emergem para
te sararem as feridas e envolverem de algas
o teu cabelo.
As aves viajam pelo tempo, diz ele,
aguardam a chegada da noite como os
homens nas varandas das casas. Sonham
com a morte da água, com a sua raiz mais
funda, criando com esse pensamento uma
zona de pássaros.
E se eu morresse nesse encontro da lua
com o fogo,
é a fala da mulher,
e o meu corpo se partisse contra o vazio
no meio dos pequenos salgueiros,
enfrentando todos os lados da erosão,
tu olharias para o verde que tapa a ilha
e gritarias para os barcos ao fundo nas
pontas da espuma, na lagoa gigante.
O vulcão nasceu para ti,
diz o homem,
para que a tua boca se abrisse encostada
às suas costas e o envolvesse de névoa
e de bálsamo, desenhando desse modo
todos os sulcos e o lugar das plantas.
Porque ele é o alimento da ilha, é o seu
chão.
E o homem ainda,
É ali que as gaivinas fazem os ninhos,
assustadas com a cor do barro. Até que
o vento acabe de vez com as dunas e
o teu corpo ressuscite para dentro das
conchas.
As luzes morrem por cima dos telhados
entre dois pinheiros e há o ferro que
delimita as casas, o bolor construído
pelas aves.
Uma pequena enseada vazou-.se,
desapareceu no meio dos navios. E todos
os náufragos se encostam às paredes, aos
ninhos que a espuma constrói dentro das
rochas, nessa escuridão, na pele doente.
É a pele do vulcão vencida pelas beladonas,
pelos regos de chuva, pelo sal.
E o homem diz,
vejo as nuvens no cimo dos morros, como
crostas. É o teu corpo que se dissipa na
paisagem, o teu sangue. São as ervas
selvagens, o calor. Tudo se estende pelas
tuas veias, os barcos, a saliva, o vinho.
É o fumo que sai das grutas, são as
hortênsias,
é a fala da mulher,
é o teu olhar que desenha a curva das
estradas, a cor das colinas, as bermas
roídas pelo mar. É por ti que nasço para
os dias porque és tu que seguras as casas
por onde passa o meu corpo.
E o homem,
o vulcão é meu, inventado por mim, como
um cavalo a subir para o prado mais alto,
galgando os muros, como um homem
antigo invadindo as aldeias do norte. Um
homem refugiado no silêncio, despido contra
o fogo, à tua espera.
(E se eu enlouquecesse), é a fala da mulher,
e encostasse o vulcão ao meu peito. Ou
o levasse para o meu quarto escondido na
água. E a tua dor fosse maior do que a lava
que o sustenta.
A ilha inclina-se para o sol. Mas a cratera
resiste no seu espaço criando musgo dentro
do nevoeiro. Tudo se passa à margem da
chuva, com as mãos que seguram a humidade
do rosto. Há ali dentro um monstro vivo, um
fulgor.
É ali que as tuas danças renascem a cada
momento, quando a sombra passa pelas
escarpas e deixa nos degraus o desenho
de uma estátua.
Diz o homem,
quero-te lá, definitiva, na boca da terra, à
passagem do frio, anunciando as luzes e
os morcegos, como se os dias se fechassem
dentro de búzios, na sua música, no seu
andar pela areia.
São os tambores, diz ele,
é o anúncio da paixão, a poeira que ferve
no vento, a argila, os gritos.
E depois deito-me no lodo, é a fala da mulher,
e aguardo que o teu vulto se sobreponha à
montanha e a rasgue pela floresta adentro
como um incêndio que se aproxima das
tábuas e as devora.
É ele, o vulcão, insiste o homem,
é o seu dorso que eu vejo desenhado
na noite, é ele que manda no horizonte.
É o recomeço do amor, diz ela,
o líquido que corre debaixo das ervas.
É a ilha, a sua fabulosa construção,
a sua fenda.
E o homem,
são os seus dedos que se pegam ao meu
peito como espinhos.
És tu, diz a mulher,
o teu olhar sobre uma morte antiga.
Somos nós, dizem eles,
o vulcão e o mar, os deuses que tocam
na terra e pintam os caminhos, os faunos.
É a dor, acrescentam,
são todos os objectos que pertencem às
colmeias, o lençol que cobre a cintura,
a mancha que sobe pela cinza, os ombros.
E se enlouquecêssemos,
e nos acorrentassem aos navios e os
homens fossem recolhendo para nós
os grandes peixes, com ganchos, como
os lobos num bosque frio.
Ficaríamos ali, tu e eu,
como colunas brancas, até que o fogo
nascesse de novo do fundo do oceano
e uma semente quisesse libertar a ilha
do temor e da sede.
Colados ao precipício, para sempre.
--
O Vulcão, o Dorso Branco
foi escrito por Jaime Rocha
e publicado pela Averno,
em Maio de 2013.
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