o vislumbre
dom caio cavalgava há horas, de boca sequiosa e esqueleto amarrotado, quando, da poeira soerguida, lhe saiu ao caminho dona morte – a mulher de todas a mais temida. dom caio, que nunca fora homem para se ficar, de pronto desembainhou a espada e, num rápido movimento que não vem nos livros de física, logo ali a trespassou, vezes sem conta. dona morte aguentou as febris estocadas, sem arredar pé. quando dom caio, alagado em seu próprio suor, se preparava para escolher entre o hara kiri ou a espera, dona morte virou costas e desapareceu, desvanecendo-se da mesma exacta forma como, poucos segundos antes, havia surgido – do nada, isso mesmo, do nada. dom caio recuperou o garbo e sacudiu o pó. cofiando o bigode que atravessara já várias guerras, sempre impecável e inatingível, sentiu-se pela primeira vez vulnerável. já não a galope, mas a passo, retomou o curso que interrompera, dirigindo-se a casa. aí chegado, pousou a espada no mesmo exacto sítio onde ainda hoje permanece. passaram quinhentos anos, dom caio desapareceu dos trilhos terrestres. quando perguntam a dona morte por episódios memoráveis da sua vida de permanente ceifa, dona morte lembra-se, sem o confessar, de dom caio e do seu bigode imponente, da sua coragem e fibra. dona morte teve, sob o mesmo sol inclemente que um dia, lá longe, dourou a pele de dom caio, um vislumbre do que é o melhor da humanidade. e, ontem como hoje, sempre que recorda dom caio, sob o calor ensandecedor da meseta ibérica, nos idos de há séculos, é sempre em lágrimas que regressa ao trabalho. ninguém regressa igual de um vislumbre tal. nem mesmo dona morte, a impiedosa. dona morte encolhe os ombros e segue viagem, sabendo que, de uma forma mais amena, mas não menos certeira, o seu trabalho foi feito. chegará o dia em que dona morte, velha e cansada, morrerá também ela. dom caio, que não tem vocação nem morada, não daria grande substituto. ficamos todos em suspenso, portanto, perguntando a nós próprios – matada dona morte, morreremos de quê? dom caio sabe a resposta, mas nunca a dirá. a cada um o seu próprio vislumbre. ou deslumbre.
dom caio cavalgava há horas, de boca sequiosa e esqueleto amarrotado, quando, da poeira soerguida, lhe saiu ao caminho dona morte – a mulher de todas a mais temida. dom caio, que nunca fora homem para se ficar, de pronto desembainhou a espada e, num rápido movimento que não vem nos livros de física, logo ali a trespassou, vezes sem conta. dona morte aguentou as febris estocadas, sem arredar pé. quando dom caio, alagado em seu próprio suor, se preparava para escolher entre o hara kiri ou a espera, dona morte virou costas e desapareceu, desvanecendo-se da mesma exacta forma como, poucos segundos antes, havia surgido – do nada, isso mesmo, do nada. dom caio recuperou o garbo e sacudiu o pó. cofiando o bigode que atravessara já várias guerras, sempre impecável e inatingível, sentiu-se pela primeira vez vulnerável. já não a galope, mas a passo, retomou o curso que interrompera, dirigindo-se a casa. aí chegado, pousou a espada no mesmo exacto sítio onde ainda hoje permanece. passaram quinhentos anos, dom caio desapareceu dos trilhos terrestres. quando perguntam a dona morte por episódios memoráveis da sua vida de permanente ceifa, dona morte lembra-se, sem o confessar, de dom caio e do seu bigode imponente, da sua coragem e fibra. dona morte teve, sob o mesmo sol inclemente que um dia, lá longe, dourou a pele de dom caio, um vislumbre do que é o melhor da humanidade. e, ontem como hoje, sempre que recorda dom caio, sob o calor ensandecedor da meseta ibérica, nos idos de há séculos, é sempre em lágrimas que regressa ao trabalho. ninguém regressa igual de um vislumbre tal. nem mesmo dona morte, a impiedosa. dona morte encolhe os ombros e segue viagem, sabendo que, de uma forma mais amena, mas não menos certeira, o seu trabalho foi feito. chegará o dia em que dona morte, velha e cansada, morrerá também ela. dom caio, que não tem vocação nem morada, não daria grande substituto. ficamos todos em suspenso, portanto, perguntando a nós próprios – matada dona morte, morreremos de quê? dom caio sabe a resposta, mas nunca a dirá. a cada um o seu próprio vislumbre. ou deslumbre.
2 Comments:
Pois muito bem. Cada um é dom caio à sua maneira, porque a dona morte surge com farpelas diferentes. De todas as roupagens que veste, só a dona morte definitiva não é controlável. Todas as outras sim. Resta-nos, perante uma forma cadavérica de foice na mão (ou é uma gadanha?) , pensar: e o que faria dom caio agora? O segredo da vida? Talvez o levantar uma vez a mais do que a queda. No fundo, dom caio seis, mas dom levanto sete...
Gi desde já peço desculpa por um comentário tão desajustado a este seu espaço onde tudo é bom gosto e equilíbrio (ainda que com um tom irreverente, felizmente).
JB dom caio não cairá sete vezes. Diz o povo que na 1ª todos caiem, na 2ª só cai quem quer. Eu concordo.
O Animoto anda demasiado avaro, agora só nos dá 10 segundos, quase não dá para nada: http://animoto.com/play/a1a1P6UD1wqNB7gCUI0m4g (spoiler - like the guy pictured, I would not be in any circumstances of any finest yacht in this world, even if God Himself came down to this earth of ours telling me otherwise)
MTL
Enviar um comentário
<< Home