21 março 2012



like a broken umbrella
(in memoriam do nosso rapaz)


embalado pela chuva minuciosa de Borges,
pela lacrimejante poesia do José Miguel Silva,
(viva o cosmopolitismo poético, viva!)
pelas bátegas de saudades que caem copiosamente,
podia desatar a escrever poemas,
reacender o rastilho que ensopado
deixei muito lá atrás,
nesse tempo em que ainda.

em tua memória e dos teus conselhos,
não o farei, contudo.
lembro, ademais, toda a minha lógica quebrada
que gritava contra a usura do tempo
e a ferrugem dos nossos dias, enquanto tu
me lembravas uma lição básica da vidinha:
nenhum desespero substitui a dor,
antes amplifica-a, até à exaustão.

era outro tempo, outro século,
esse em que nos aconchegávamos, mui masculinamente
encafuados no carro que calhava, queimando sonhos e cigarros,
sonhando as índias que nunca chegaram.

hoje, solitário cavaleiro andante, perpetuo a tua memória,
sabendo que esperas por mim, nesse algures inominável,
a última cartografia absoluta que resta.
estas palavras, sim, estas palavras, eu sei,

são um cenotáfio ridículo erguido na tua ausência,
à falta de melhor – que seria sempre um acto de amor concreto,
tornado agora impossível nesta geometria terrena.
(a minha poesia morreu contigo, penso não raro.)

e é enredado nestas vielas cheias de amargura
que me lembro do teu sonho de menino de teres
toda a colecção Dois Mundos, da editora Livros do Brasil.

não tínhamos dinheiro,
como hoje não nos temos um ao outro,
mas éramos felizes, a sonhar com livros e namoradas e futuros.

embora não o soubéssemos, era sempre de amor que falávamos,
um amor fraternal e desmedido como já não se usa.
ficámos no museu das coisas extintas, querido amigo,

acompanhados por tanta gente outrora vivente
como estas palavras que, daqui a segundos,
me morrerão nas pontas dos dedos, enquanto

enxugo este meu coração-filho-da-outra
mas pai de tanta coisa que felizmente sai à mãe
- ou a uma luminosa e improvável ideia de mãe.

saudades, pá. saudades.

e este nosso telemóvel brother to brother
agora calado para sempre,
bem por dentro do meu peito.



(nota: fotograma retirado de 'em câmara lenta', um crepuscular filme de fernando lopes, a partir de um belíssimo livro de pedro reis)