31 agosto 2011


[publicado em 28 de fevereiro de 2008]
 

todos os dias a mesma meticulosa rotina: levantar às 6.30, esticar as pernas, ainda sentado na cama de corpo e meio, abrir o olhar. de chinelos e ainda em pijama, tratar da higiene matinal com garbo e mão firme. barba finamente escanhoada, a água de colónia importada do oriente - hábito que ficou de outra vida -, o cabelo impecavelmente alinhado. o rosto de clark gable sem o sorriso, poderia quase dizer-se (e diziam-lhe, não raro, nos botecos que frequentava e, ainda mais recorrentemente, nos corredores das bibliotecas). o café e a meia-torrada, preto aquele, quase loura esta. a pouca manteiga e sempre e só manteiga. a colher de açúcar medida com olho clínico, os comprimidos para manter calado o médico amigo. escolher o fato, sempre o fato, entre os 12 naipes escuros possíveis - o preto em todas as suas gloriosas cambiantes, melhor dizendo. as camisas brancas, entre o algodão mais comum, a fina mistura de fibras naturais comprada em londres, o linho solar e setentrional, resquício das antigas índias. gravata escura. sapatos finos e engraxados, polidos, daquela forma que já só as estrelas de cinema usam. um passeio a pé, esticar outra vez as pernas, aquela meia-hora das 7h30 às 8h00, em que a noite passa o testemunho ao dia. voltar a casa, à pequena garagem, resplandecente nos detalhes de limpeza maníaca. sentar, ajustar espelhos e bancos, pela trigésima vez no mês de 30 de dias. dar à chave, acelerar suavemente, confirmar que a mecânica ainda cumpre as leis que a sustentam nos livros técnicos. dar vida ao velho ford galaxy, reluzente como se acabasse de sair de um museu onde fosse estrela maior, e assim merecesse todos os cuidados. navegar pela cidade, o tempo suspendido, o 'suspension of belief' activo (aquele mecanismo que no cinema nos permite acreditar e, assim, sentir o que estamos a ver, sem estarmos sempre a pensar nos inescapáveis mecanismos de simulacro). conduzir com souplesse. imaginar sair da mulholand drive directamente para os altos e baixos de são francisco, daí passar para as curvas do mónaco, para o ruído geométrico de nova iorque - e algures cruzar o rio de janeiro, ali mesmo, do outro lado do rio tejo. a geografia também suspensa. navegar, o acelerador impassível, a caixa de velocidades por usar, o trânsito desviando-se a cada cruzamento, as auto-estradas libertas. olhar pela janela a meia-haste, o rádio obsoletamente belo, sempre na estação certa. a música a meia-voz, a constante adequação da banda sonora ao estado de espírito de cada lugar já lá atrás.. rasto de luz e som, nitidez contra fundo difuso, graciosidade cinematográfica, poetry in motion, como naquela canção antiga do cliff richard ainda jovem e ainda não sir (sim, mais vale ser-se um senhor intenso que mais um sir por extenso - sorrir com o naif humor interior). pelo caminho, reparar nos que choram. e são tantos, tantos. dar novos usos à álgebra, querer ser o senhor da subtracção ou, pelo menos, da mais justa e talvez possível divisão. oferecer o perfil, no fato lustroso e elegantemente escuro, a quem olha de fora aquele carro como nenhum outro. aquele carro - sussurra-se - que navega as ruas, as estradas, sem uma oscilação, uma hesitação, um gesto mecânico brusco. todo ele é continuidade, serenidade, um flow ininterrupto. abrandar nos semáforos, soprar e pegar-lhes as cores do arco-íris, fazer deles uma coisa outra. voltar aos que choram e estender a mão, ainda dentro do carro, curando-os de si próprios. fazer da rotina uma missão, transformar a banalidade na excepcionalidade, fazer, dia após dia, florir os milagres em cada esquina - fazer disso normalidade. conduzir de volta a casa, àquela garagem exacta, à casa frugal. passar na biblioteca ou na universidade ou no boteco - declinações de uma única e mesma coisa. cumprimentar os amigos, os companheiros de rotinas materiais e afagos existenciais. de volta a casa, despedir-se do fiel ford galaxy dos anos sessenta, acariciar o seu corpo encerado, dizer obrigado por nunca me falhares, nem nos dias feriados e nas cinzentas tardes de domingo. entrar em casa, fazer a lida necessária, preparar o jantar, por entre bach e miles davies. na mesa de mistura - discreta marca de modernidade num tempo há muito sem calendário operativo -, criar uma música nova, talvez a voz de Deus. olhar os livros em volta, a segurança dos livros em volta. fechar os olhos, fumar um cigarro aromático como já só no sri lanka se encontra. imaginar mundos. e pensar: se isto não fosse possível, como seria feia a vida. nesse mundo alternativo, haveria talvez um ford galaxy moderno, de novíssima geração. e fatos coloridos, de fibra sintética. haveria música? haveria café forte e preto? haveria aquele tabaco chegado de outros impérios? haveria a frugalidade como verbo? haveria milagres, como os que, dia após dia, acontecem? seria possível curar os outros de si próprios? a resposta, as respostas, nunca as conheceria - sabia isso muito bem. afinal, esse mundo que dentro da sua mente congeminava era mera especulação. nunca o saberia. mas não se importava, viveria sem nada, em qualquer sítio e em qualquer tempo. aos demiurgos improváveis apenas uma coisa pediria: que não lhe tirassem o velhinho ford galaxy, companheiro de todas as horas. sem ele, como poderia fazer os seus milagres? até sem milagres ele viveria. mas.. e os outros.. mas.. e os outros?
adormeceu em paz.