31 maio 2011


contos. ou short stories, em inglês literário. um sub-género que nos tem dado obras-primas absolutas. dos clássicos russos (anton tchekov, por exemplo), aos americanos sulistas (flannery o'connor, por exemplo), aos cultores do 'novo romance americano' (j.d. salinger, por exemplo) - seria um nunca mais acabar de brilhantismo.

este domingo, mergulhei verticalmente no livrinho ali de cima, na sua recentíssima versão portuguesa ('os amores difíceis', editora teorema).

treze contos, todos intitulados 'a aventura de..' (um soldado, um bandido, uma banhista, um empregado, um fotógrafo, um viajante, um leitor, um míope, uma mulher casada, um casal, um poeta, um esquiador, um automobilista), escritos entre 1949 e 1967. são praticamente todos magistrais exercícios literários, demonstrando por que razão italo calvino é considerado um dos escritores maiores do enorme século xx.

um domínio perfeito da língua (que se adivinha, mesmo que vertida para português), uma inventividade notável, uma noção de tempo a roçar o insultuoso (por ser tão bem conseguida!), uma capacidade de criar espaços psicológicos consistentes, um atrás do outro, um longo etc. de elogios e encómios..

dos treze contos, alguns entram directamente para o meu altar - 'a aventura de um empregado', 'a aventura de um viajante', 'a aventura de um casal', 'a aventura de um automobilista' -, mas é um exercício algo espúrio exercer este tipo de escolha.

deixo-vos com o final do conto 'a aventura de um esquiador'. penso que o melhor que posso fazer por este livro é deixar-vos a sós com o seu autor. diz apenas assim:


'A rapariga já se tinha lançado para a descida e seguia e seguia com os seus tranquilos ziguezagues, agora encontrava-se já onde as pistas estavam mais batidas pelos esquiadores, mas, no meio de todo o disparar de silhuetas confusas e intercambiáveis, a sua figura apenas desenhada como um oscilante parêntese não se perdia, continuava a ser a única que se podia seguir e distinguir, subtraída ao caos e à desordem. O ar estava tão nítido que o rapaz dos óculos verdes adivinhava sobre a neve o denso reticulado das marcas dos esquis, direitas e oblíquas, dos rastejamentos, das corcovas, dos buracos, das pancadas das raquetas, e parecia-lhe que ali na informe confusão da vida estaria escondida a linha secreta, a harmonia, só localizável pela rapariga azul-celeste, e que seria este o milagre dela, o de escolher a cada instante no caos dos mil movimentos possíveis aquele e só aquele que era certo e límpido e leve e necessário, aquele gesto e só aquele, no meio de mil gestos perdidos, que contava.'


perante isto, resta ajoelhar e dizer: obrigado, Senhor Calvino por saber dizer o que nós, às vezes, gostaríamos de saber dizer.