14 abril 2011


agora que algumas salas de cinema exibem o magnífico filme "road to nowhere", de monte hellman, recordamos aqui essa sua seminal obra do cinema norte-americano de setenta: "two-lane blacktop". em 1971, monte hellman vai, literalmente, para a estrada, filmar essa história(?) de quatro personagens + 2 carros que percorrem a mítica paisagem americana definida pelo tracejado das estradas. entre competições, mais ou menos legais, mas sempre amadoras, onde se fazem pequenas apostas de circunstância, o caminho vai-se fazendo ao sabor do acaso, um pouco como o discurso - mitificado, errante, pointless - da personagem desempenhada por warren oates (que vemos em primeiro plano, na foto ali de cima). há neste filme uma sobreposição de planos interpretativos que convém assinalar. na aparência, é apenas um filme sobre rapazes e homens, carros e estradas, a por vezes desolada paisagem estadunidense. no entanto, é um filme muito mais rico, que nos mostra esses mesmos americanos, numa jornada movida a gasolina e pneu queimado, a caminho de qualquer coisa, gastando talvez os últimos cartuchos da juventude, lutando desenfreadamente contra a ideia de "assentamento", conotado com uma perda de liberdade. de certa forma, o movimento é o próprio sentido, e não tanto um meio para. mas há ainda um terceiro, pelo menos, plano de leitura, de raíz mais sociológica: é a própria américa, a braços com o tumultuoso final da década de sessenta (relembramos o vietname, os movimentos anti-segregação racial, os tumultos nos campus universitários, a militância gay a começar a afirmar-se, a longa tragédia presidencial, etc.) quem está dentro destes carros, percorrendo as suas próprias escaras e cicatrizes, sempre em movimento de fuga em frente - como se o sonho, tal e qual o arco-irís, estivesse sempre no extremo onde não estamos e que parecemos nunca conseguir alcançar, apesar de nos dar ideia de que o vemos, ali mesmo à nossa frente. é esta américa, profundamente marcada e dividida por dentro (os planos daqueles lugarejos de beira de estrada, onde reina uma certa desolação (como se fosse sempre fim-de-semana, com quase tudo fechado, quase sem pessoas nas ruas), não nos falam de outra coisa e estabelecem um contraste agudo com a sede de aventura(?) do quarteto de personagens principais do filme). poderíamos falar horas sobre o que esta obra de monte hellman nos diz. abordemos apenas mais dois ângulos possíveis. o final do filme - um dos mais célebres da história do cinema, estamos em crer -, no qual é a própria película que parece pegar fogo, ardendo à nossa frente, impregnada de vida e de energia que não sabem para onde se dirigir (auto-consomem-se, portanto). talvez o que vemos arder seja uma passagem de testemunho entre o filme (a ficção, do lado de lá) e nós espectadores (a realidade, do lado de cá). não sabemos bem se este argumento colheria, junto do próprio realizador, mas, para nós, faz todo o sentido - e a arte é sempre uma construção entre quem cria e quem usufrui da criação, não é verdade? finalmente, uma palavra final para a personagem da jovem rapariga que passa grande parte do filme com as três personagens masculinas, entre carros e quase entre afectos, caída não se sabe muito bem de onde, para, numa das últimas cenas, se afastar de todos, aceitando o convite mudo de um motard de ocasião. o que nos interessa aqui é expressar essa dúvida que permanece: quando confrontada com a rotina do movimento, ou com o excesso de movimento, esta rapariga foge ou vai ao encontro de algo diferente?, esta rapariga desvia o seu caminho, por excesso de aventura ou por a aventura - já adquirida - não lhe parecer ser já suficiente? pode parecer um detalhe, mas é um detalhe que rima com as angústias, nunca inteiramente assumidas, das personagens masculinas, que se limitam a estar ali, sem estados de espírito relevantes, como se estivessem connosco durante duas horas e depois seguissem viagem, deixando-nos na nossa própria vida, sem saber muito bem o que pensar. é este, talvez, o aspecto mais genial do filme. não passa nenhuma mensagem, possibilitando várias. não dá respostas, sugerindo perguntas. não se impôe, antes deixando em nós aquele travo de que, como diria godard, o melhor do cinema é a parte da vida. mesmo quando, como tantas vezes acontece, não sabemos bem se percebemos o que testemunhámos ou até o que nos aconteceu. "two-lane blacktop" é um filme matricial dos anos setenta, mostrando, em 1971, essa terra de ninguém que sempre são as transições entre décadas. ou entre etapas da vida. ou entre mitos sobre as etapas da vida. ou entre vidas.
palmas para mr. hellman.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

‘Quando chegar ao fim dessa estrada infinita, esta continuará e ela (a jovem) nunca deixará de avançar, de coração vazio.’
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quinta-feira, abril 14, 2011 1:48:00 da tarde  

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