13 dezembro 2010

em 1953, douglas sirk, imigrado na américa, após a ascensão e queda do III reich, na sua pátria natal, deu uma entrevista a um pequeno jornal de artes do tenessee ('art inc.'). contava ele, mestre, para muitos incontestado, do melodrama, que, por esses dias, tinha em mãos um argumento imbatível, bem capaz, na sua opinião nada isenta, de mudar a história do 'scripting' americano (o que equivaleria, ontem como hoje, muito provavelmente a mudar a história mundial do guionismo para cinema, 'tout court'..). o jornalista-entrevistador não conseguiu arrancar a douglas sirk qualquer elemento adicional sobre o que estaria por detrás daquela revelação, deixada cair ao sabor do acaso ou meramente por descuidada displicência.

décadas depois, um sobrinho-neto de douglas sirk, ao remexer num velho sótão familiar, encontrou (parece uma cena de filme, o que tem a sua graça, convenhamos) um caderno manuscrito, assinado, logo na capa, pelo seu famoso tio realizador. com a curiosidade própria dos rapazes-sobrinhos-netos-de-uma-personalidade, ralph edward sirk, leu logo ali todo o 'script'. falava, em traços largos, de um mundo em que todos os seres humanos tinham por companhia uma máquina chamada 'the heart companion', espécie de cão-guia biónico, dotado de inteligência emocional artificial, capaz de, qual oráculo moderno, os ajudar a atravessar as tumultuosas tempestades omnipresentes em todas as relações humanas.

ralph espantou-se primeiramente com o que lhe parecerem ser óbvias incongruências, impossibilidades gritantes. o seu emérito tio-avô nunca havia escrito na vida o mais pequeno texto que se aproximasse dos géneros ficção científica, fantástico, histórias sobre utopias e distopias. por outro lado, o conceito de inteligência artificial não havia ainda sido inventado - seria dos robots? haveria robots, na época em que o seu tio-avô presumivelmente teria escrito aquelas páginas?

a exegese e a hermenêutica vieram então dar as suas doutas palavras. especialistas em douglas sirk, vindos da europa e do japão, debruçaram-se sobre a grafia, o estilo, o tom, o léxico, a semântica, os padrões, as mais subtis inflexões da escrita. dissecado o manuscrito, não havia dúvidas: era um genuníno 'script' assinado pelo homem dos melodramas. arriscaram-se dichotes como 'mera brincadeira entre filmes a sérios', 'esboço quase primário', 'ideias para desenvolvimento posterior', 'um momento de fraqueza', 'um pastiche metafórico'. voltaram assim descansados para as suas bibliotecas e escritórios, um pouco por todo o mundo. o cânone estava intacto.

douglas sirk, dietmar ainda em alemão, havia sido engenheiro de formação e, diziam os seus assistentes, tinha um raciocínio matemático aguçado. o 'script' que então escrevera era, afinal, um quase livro infantil, escrito para os seus dois filhos, com o mui nobre ojectivo de eles poderem 'crescer, acreditando no futuro'. pensou em escrever uma parábola sobre a doença e o milagre da cura universal, mas os seus genes calvinistas não o permitiram (isto, sabe-se porque o confessou, ainda em vida, muitos anos depois desses tempos de jovem pai..). tendo afastado a saúde enquanto tema e ficando por tocar o instável domínio da metafísica (difícil de abordar, mesmo para um ser dotado como sirk), restaram as relações humanas, em geral, e o amor romântico entres dois seres humanos, em particular. douglas sirk, como prova a sua obra cinematográfica, soube como poucos entretecer os planos metafísico e das ultra-complexas relações humanas, pelo que não admira terem sido exactamente estes os eixos avaliados para o 'script' de que temos vindo a falar, mesmo que destinado a ser lido por petizes.

como escrever sobre tema tão delicado e variado, ainda por cima numa óptica positiva e, como se não chegasse, para crianças (seres ainda tocados por uma certa capacidade de maravilhamento, a que alguns, tolamente, chamam ingenuidade)? a resposta chegou sob a forma do 'script' (que afinal não era bem um 'script'), encontrado tantos anos depois pelo seu sobrinho-neto ralph.

no topo da primeira página, em letra longilínea e sóbria, reinava majestosamente o título: 'the heart companion'.