29 dezembro 2010


6 fragmentos, 6 espectros, 6 estilhaços - 1 homem

1. nunca uma árvore pode ser derrubada, quando a melodia da tarde envolve o tronco, a copa, as folhas dispersas pelo céu, recortando nuvens, e um rasto de luz fica preso à sombra projectada no solo, pouco antes de o sol desaparecer completamente.

2. sem o céu das latadas de verão, guardo as estrelas da noite que a cidade esconde, porque talvez alguém se vá embora de vez, conduzindo um chevrolet de 1940, ou qualquer outro carro de carroçaria vermelha, a brilhar, cheia de cromados deslumbrantes, como num anúncio onde uma mulher exibe um sorriso de nácar.

e nem sequer uma palavra, um postal de aniversário, um toque de lápis que limite a boca.

3. já passa das quatro da manhã e não consigo dormir. a escuridão prolonga-se no meu peito cheio de suor e taquicardia, a noite passa como um flashback imprescindível para compreender o resto do filme. no sonho acordado, correm aquelas imagens condensadas nas pessoas conhecidas, mas que não são elas, são outras disfarçadas de mim, uma florescência.
levanto-me e ligo a televisão. passeio a insónia pela publicidade aos utensílios de cozinha, aos instrumentos de tortura de perder peso, e talvez memória, com imagens de o antes e o depois, como se fosse possível a mudança anunciada em sonhos cabalísticos ou nos sonhos onde se voa sobre uma montanha, e que nos fazem acordar em grande aflição, a perder o pé.
daqui a pouco tenho de acordar de vez e esquecer-me de mim, meia hora no chuveiro, ensaboar-me três ou quatro vezes, distraído, sem reparar no corpo, na carne, na flacidez do tempo.
(muita gente pensa que eu sou um anjo alinhado pelo meridiano de greenwich, com uma flor acorrentada no bolso do colete.)

4. tremia-lhe a garganta com a vibração do comboio. chegou a casa alarmado com a explosão do próprio corpo que enfrentara no dia em que foi às sortes.
e no domingo, com as gargalhadas à volta, bebeu o vinho que lhe tingia as despedidas.
sentiu na pele a farda de caqui, o peso da mauser, o despropósito das botas.

5. tornou-se igual à cidade que viera habitar. tinha dentro de si espaços novos e rectilíneos, bairros com casas todas iguais, habitações fechadas em pátios, zonas de utilização pública.
e pedaços degradados, ruínas de lojas cadentes, à espera de trespasse ou liquidação total.

6. às seis horas, arrumava os papéis da secretária, cobria a máquina de escrever com uma capa de pergamóide e saía entre até-amanhãs, sem contabilizar as beatas num cinzeiro esmaltado.
quando chegava à rua, olhava uns plátanos, sobranceiramente, e distraía-se no recorte das folhas – memória de uma infância arborizada.


antónio ferra

1. a 3. in 'estação suspensa', europress, 2009;
4. a 6. in 'bio grafia', europress, 2010

[via blog 'bibliotecário de babel' - obrigado, josé mário silva, por mais esta descoberta]