15 novembro 2010

estava na exacta esquina onde se cruza a avenida com a ruazinha de bairro. esperava, como sempre, alguma coisa ou alguém. uma forma de combater o torpor da vida e, de certa forma, a malaise da cidade ao domingo. ela apareceu de repente e pediu-me para a ensinar - non sense, diparei de imediato. eu não tenho nada para ensinar a ninguém, muito menos a quem ainda tem futuro. não quero deturpar, enviesar, influenciar, o que cresce por si. ela argumentou com trinta e quatro poderosos argumentos, ainda que eu só me lembre de três (os olhos azul-celeste e o sorriso novecentista). o desfecho até um petiz o era capaz de intuir - my fair lady is back in town. como comédia, farsa, tragicomédia ou drama, é o que se verá. tudo isto se passou assim e tudo isto se passou de maneira completamente diferente. de forma que eu lá segui viagem, de assobio tosco na curva dos lábios e de mãos nas algibeiras vazias. quando confiam em nós, como nos velhos romances de formação, em que jovens rapazes e jovens donzelas adquirem um carácter mais ou menos exemplar, mas nós não confiamos em nós próprios, fazer o quê? eram estes os meus pensaementos enquanto deslizava pela avenida, mirando as montras. de súbito, estanquei, perante o vidro perfeitamente polido de uma drugstore. era eu ali, perante o juiz mais implacável - eu próprio, pois claro. metia-me medo a fisionomia da desconfiança talhada no meu rosto. acordei deste pensamento ao som das badaladas de uma igreja qualquer das redondezas, que não via (mas que não precisava de ver, para saber que era dali que vinham as badaladas que me haviam despertado). por mim, na rua, passavam homens e mulheres e homens e mulheres, como sempre passam por nós nas ruas das grandes cidades. eram os primeiros anos do século em que me fiz homem. e o país, o meu país, era grande e permitia a um rapazola sonhar - essa coisa sem preço, tal o valor.. saber isto era como almoçar um frango, daqueles de que só as velhotas conhecem os segredos culinários e que transformam de uma carne comum num faustoso repasto. pensei para comigo que talvez dali a 100 anos, num país qualquer da europa, alguém perceberia exactamente o que eu sentia, aquele subterrâneo turvelinho que, em qualquer ponto da cidade, me saía ao caminho sem sequer pedir licença. que pensamento mais disparatado, ocorreu-me, felizmente. e enquanto trincava uma maçã vermelha como os tecidos que certa manhã vi na tinturaria da avenida das acácias, lembrava-me daqueles olhos azuis-celestes e daquele sorriso novecentista e do meu novo papel de professor e pensava como a vida é bela mesmo quando temos tantas angústias e tantas dúvidas e temos apenas dezoito anos e estamos sózinhos na grande cidade como sózinhos estamos perante o mundo e tudo é afinal harmonioso porque vivemos finalmente do e para o momento - essa espécie de religião do novo século.
chamo-me jim, e a esta cidade, no ano da graça de 1910, alguns chamam nova iorque.