03 setembro 2010


claro que me lembro. estávamos no carro, nesses dias 'of wine and roses', em que i.trip era uma palavra nova, recém-inventada. a música que descobríamos era frenética, uma comoção permanente, ou não fôssemos ambos seres filhos dessa necessidade avassaladora de identificação - e a música, talvez entre todas as artes, é uma projecção fabulosa de todas as nossas cores interiores. claro que me lembro. estávamos no carro e por entre descobertas e descobertas e descobertas - pastilha elástica sabor a canela, o sabor a que sabiam os teus beijos -, escutei pela primeira vez a banda que havia de ser, algum tempo depois, a banda de uma geração. nunca mais gravaram nada assim e nunca mais gravarão, já se sabe. mas esse disco - 'funeral', de sua graça, suprema ironia - e alguns EPs anteriores (como o desta canção que aqui trago) fizeram dos arcade fire uma banda única. a intensidade da sua música, a entrega nos seus concertos - quem esteve em paredes de coura usa a palavra epifania, não raro.. -, toda essa furiosa conjugação de beleza e pungência e urgência e amor e violência fizeram desse disco, desta banda, desses dias.. a thing of its own kind.

todos nós conhecemos lugares onde não vão carros, onde não chegam aviões, onde não se vêem barcos. todos nós conhecemos lugares sem carros. esses lugares sagrados a que um dia voltaremos, em memória do que fomos ou em ensaio para o que viremos ainda a ser - pontos luminosos rasgando os céus vindouros.

mais não sei dizer, mas sei que é isto que sinto ao escutar os arcade fire, anos depois, e ao lembrar o sabor a canela e lágrimas e sonhos queimados.

ou de quando a poesia é música e a música é a vida e, tudo junto, se transforma num demolidor 'wall of sound'. numa 'devastação inteligente' (herberto helder). e eu, lá dentro (ou dentro de ti), a sonhar..