cadernos andaluzes
I. no dia no teu aniversário
toda a poesia é guerra, disse alguém
e quem sou eu para desdizê-lo?
por exemplo: hoje.
aqui, à sombra das laranjeiras e dos limoeiros,
bebendo nos lábios a fina luz da manhã,
contemplo séculos de história
e um complexo edifício-síntese,
combinando a memória do islão e do cristianismo
numa coexistência pacífica, comovente até.
qual o segredo?, perguntas-me.
e eu respondo-te: a ausência de seres humanos,
daqueles que estão ainda verdadeiramente vivos.
quer dizer: não é a completa ausência,
mas antes esse papel secundário
que todos os turistas desempenham
no grande esquema do mundo.
esta memória religiosa, arquitectónica,
mutuamente incrustada e indissolúvel,
faz-me lembrar eu próprio,
outra forma de dizer que me lembra a forma incontornável
como tomaste conta de mim.
por exemplo: hoje.
hoje, dia do teu aniversário, a centenas, talvez milhares,
de quilómetros de distância,
não deixas de estar aqui, e portanto de seres eu próprio,
tal como tudo o que ficou para trás e o que há-de vir
são extensões de uma essência presente qualquer,
como todo o amor que já morreu não deixará nunca de ser.
como tudo o que não há e que um dia houve ou um dia virá a existir.
nesta mesquita-catedral que me acolhe
em seus frondosos e intemporais braços,
é a ausência de vida quotidiana que permite um olhar doce,
desabitado de fantasmas e morticínios.
toda a poesia é uma jihad, uma guerra santa inclemente,
e agora sou eu que o digo.
entretanto, o dia entra em combustão,
o sol da andaluzia dá sinal de si,
regressam os passarinhos e o seu canto embalsamado.
cheira a verão, apesar de ser já setembro.
no dia dos teus anos, eu estava em córdoba,
e, tenho quase a certeza, um pedaço de ti também.
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