28 julho 2010


'o risco da língua na pele (por dentro dela) é o risco
que correm os dias de se tornarem belos.'


'o mundo não acaba no frio dos teus ossos (pensa ela)' é o assombroso título de um livro de poemas da senhora rosa alice branco que, de certa maneira, me tem preenchido estes dias. ler poesia é saber que se corre sempre o risco da inscrição - a poesia como tatuagem emocional, perigosamente indelével.

este livro tem passagens que causam sobressalto, estremecimento, toda uma míriade de sensações subjectivas que nos causam uma constelação de impactos.. bastante objectivos.
mais do que brincar com palavras (que é o que eu faço, bem vistas as coisas), é tempo de dar tempo e espaço a quem faz da escrita uma forma de preciosa alquimia.

senhoras e senhores, a palavra portanto, e sem mais delongas, a rosa alice branco, na primeira pessoa. porque, como bem sabemos, 'o mundo não acaba (mesmo) no frio dos teus ossos (pensa ele)'..


é assim que respira (nele), assim que propaga
o dia no seguinte como um mapa aberto
para o tempo. não é disso que se morre:
de não haver explicação para o que sabe.
a morte deve ser outra coisa que inventámos:
dar um nome ao que falta, salvar alguém de costas.
ela volta o rosto (nas mãos dele) atira os olhos
ao chão para sentir a pedra, a larva no copo,
o cheio da página no livro aberto a meio.
sente o cheiro (dele?) nessa folha. pergunta
onde estará o próximo capítulo como se escrever
o adiasse. salta as páginas, tropeça num amor
que desconhece. um, nómada do outro,
andam pelos dias colados à pele que despem
à tardinha. um órgão, um sentimento, uma linha
em verso: tudo se confunde num só corpo.
beija-lhe o pé (que agora é ela),
faz a cintura com as mãos, desfaz as pernas,
com a exactidão dos dentes.
rangem as entranhas, arrancada a carne
pelos cabelos, e adormecem esventrados
nos sabores do verão. mas não é a morte
que destece o corpo. a morte é o que inventámos
para não cuidarmos dela. nómadas de tudo
(e mesmo deles) saltam com rãs sobre cerejas.
parece dia no lençol caído, o dia a levantar-se
em desalinho com um beijo colado na dobra.
o risco da língua na pele (por dentro dela) é o risco
que correm os dias de se tornarem belos.
página ilegível.tingida pela carne das cerejas.
saúda até à última letra, ao primeiro gemido
(que arde deles) na almofada da manhã seguinte.

--

(..)
as mães sempre chamam pelos filhos.
quando sabem que a ora do almoço findou
continuam a vê-los entrar pela porta
com sorriso de criança endiabrada.
depois que todos se levantam da mesa
elas estilhaçam o prato contra o coração
e continuam mães
com os olhos cansados e as solas gastas
de esperar ao frio para todo o sempre.

--

(..)
quem podia adivinhar que o teu corpo
era a alavanca do meu?

--

(..)
que ninguém suspeite
da doçura deste amor: a única violência indispensável.

--

sentados na relva, os meus cabelos nas tuas mãos
anelavam os dedos de silêncio
e estar assim nunca foi tanto e te amei mais.
gostava de saber porque estavam húmidos os olhos
dos patos. talvez soubessem que os nossos ossos pesam menos
que o sonho de voar. os cisnes escondem todo o drama
da existência no pescoço. desconfia dos cisnes, meu amor,
que eu tenho asas e deslizo sobre ti como uma ave partida
em tu e eu. mas com o sol da tarde e a minha cabeça
deitada em ti e tu inteiro no colo que era meu
a realidade a pino entrou a correr no parque
e apeou-se em nós para colher abrigo.
mas ela pedia com o olhar e com palavras
e nós sabíamos tudo: quanto queríamos sofrer
e de que dor (se riem eles) tirar todo o prazer
e logo o dar. talvez haja suor nos olhos dos patos,
e o teu sal a temperar-me a carne, a forçar
ervas aromáticas com os dedos lambuzados
de saliva nos meus olhos. e ficava a ver-te
quando tremias de calor ou cobria-te mais
dentro da boca. descalça. sobre as uvas de antes,
os meus pés dardejavam a fermentação do vinho
que tingia a roupa. ao rubro dentro do vestido.
realidade suculenta a dança. é assim que engano a lei
da gravidade com os ossos de ave a resistir ao peso
e vivo ao rés do solo onde te encontro no festim do riso.
lá fora a relva está chovida. sacudo as asas para te voar.

--

(..)
a única ilusão verdadeira
é o meu corpo a escorrer no teu. tudo, tudo em nós
é líquido e é isso que não sabes ser.
nada disto é muito claro. escreverei
até ser manhã também em mim.
as cerejas luzem a acordar para a ignorância.
mas respiro e tenho ainda um beijo por dar.