01 junho 2010



"sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda a caminho da morte, certa. não me coube em herança qualquer deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. tão pouco me legaram o disfarçado furor do céptico, a astúcia do racionalista ou a ardente candura do ateu. não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo que duvido, nem os que fazem o culto da própria dúvida, como se esta não estivesse, também esta, rodeada, de trevas. seria eu, também, o acusado: o ser humano tem uma necessidade impossível de satisfazer.

como posso assim viver a felicidade?
procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta. quase sempre atinjo o vazio, mas, de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo, sopro dum vento que mal sobe pela árvore.
debruço-me.
tenho-a! mas tenho o quê, entre os dedos?
se sou solitário – uma mulher amada, um desditoso companheiro de viagem. se sou um poeta ou prisioneiro – um arco de palavras que com assombro reteso, uma súbita suspeita de liberdade. se sou um ameaçado pela morte ou pelo mar – um animal vivo e quente, coração que pulsa sarcástico; um recife de granito bem sólido.
sendo tudo isso, é sempre escasso o que tenho!
as formas de consolo: se procuro umas, outras há que me perseguem sem que eu as convoque. sussurram odiosas. enchem-me o quarto de murmúrios.
o prazer: 'entrega-te sem restrições'!
o talento: 'usa-me tão mal como a mim mesmo'!
a minha sede de gozo: 'só os gulosos sabem viver'!
a solidão: 'despreza os homens'!
este desejo de morte: 'fere, mata'!"


stig dagermann, in  “a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer”