gata está agora à minha frente e o que mais marca é a clareza translúcida dos seus olhos (do seu olhar). tem um metro e sessenta e pouco, arrasta duas muletas que pouco préstimo oferecem, sem que se perceba muito bem porquê, veste de forma normal, colete por cima de t-shirt, por cima de umas calças de ganga clara. sapatos correctos, relógio aceitável, cabelo bem cortado. gata é romeno e quando o encontrei era ainda um quase indigente, um habitante vindo da mittle-europa em busca do eldorado ou de coisas mais simples. gata era cozinheiro de grande hotel, lá na sua terra natal, uma cidadezinha não longe da capital do seu país. pai de filhos, um dia encontrou a sua mulher em manobras menos lícitas com outro homem. ao contar-me isto a clareza dos seus olhos desaparece por uns momentos, dando lugar ao que parecem ser outros olhos. outro homem, ocorre-me. gata continua a sua história: bem vê, a mulher de uma vida, mãe dos seus 3 filhos, enrolada na cama com um homem que, por acaso.. era um seu amigo. como é que um homem recupera de uma coisa assim? - fita-me nos olhos. e foi este o caminho ínvio que o trouxe até portugal. nesses dias, eu era ainda um repórter pouco habituado às regras da profissão, que, aliás, não exercia, em bom rigor. limitava-me a sair de casa, todas as manhãs, com um pequeno caderno A5 enfiado na algibeira, um lápis usado e um telemóvel. deitava-me ao caminho e seguia sem destino, cidade fora, cidade dentro, olhando as pessoas nos olhos. acontecia-me de tudo, é bom de ver, ao atirar-me aos outros com tal frontalidade. as pessoas perdôam tudo, ou quase tudo, mas raramente perdôam um olhar directo, olhos nos olhos. as miúdas pensavam que eu as cobiçava (e cobiçava algumas, quando me distraía do meu afazer de repórter amador), os homens mais velhos praguejavam comigo, os jovens ameaçavam-me em voz alta. mas eu, que era jovem, nada fazia para inverter essa minha febril rotina diária - encontrar pessoas de carne e osso e pele e espanto e por aí fora. às vezes, calhava encontrar alguma, como no dia em que conheci gata. gata repetia, olhando-me para detrás dos olhos: como pode um homem sobreviver a uma coisa assim? há coisas fundadoras de grandes amizades masculinas. este segredo humilhante, dilacerante, de gata foi o início da nossa amizade. ao longo dos últimos anos, cada vez mais embrenhado na minha não-profissão, fui encontrando gata, pelas esquinas e recantos da cidade. trata-me por menino, e sou-lhe grato por isso. descobrimos juntos a nossa admiração comum por um clube de futebol, por certos treinadores e outros tantos jogadores. e pelas manhãs bem madrugadoras da cidade. e pela cidade em si. e pelo olhar claro e limpo, num caso filtrado por um par de olhos azuis marinhos, noutro caso filtrado pela negra neblina que por vezes me envolve. gata encontrou uma mulher nova, alugou dois quartos, num prédio de bairro, por cima de um café frequentado por junkies amenos. está-se bem, menino, atira-me ele, vezes sem conta, baralhando-me as emoções que nem sempre acompanham a positividade que sempre o acompanha a ele. gata, romeno, sessenta anos, pai de três filhos, ainda não avô, casado em regime de para que é que o papel interessa, adepto fervoroso do meu clube de futebol, ex-cozinheiro no restaurante de um grande hotel, é um lisboeta perfeitamente assimilado. de vez em quando, diz-me ele, bate uma certa saudade. mas a tv cabo, devidamente quitada num tugúrio da almirante reis, dá-lhe acesso às dores e alegrias da terra que deixou para trás, com notável nitidez e aceitável qualidade no som. não tem fantasmas, este meu amigo, nem sequer aquela imagem terrível (a palavra é minha) que lhe mudou a vida. é assim, menino, um homem tem tudo, para descobrir que não tinha nada. é assim, menino, um homem sem nada pode ainda ter tudo. até um país novo, com amigos novos, sol e bom futebol, o amor de uma boa mulher. gata fala-me com serenidade, como um pai a um filho. acho que é contra as regras do bom jornalismo envolvermo-nos com os objectos da nossa investigação. mas eu nunca quis ser bom jornalista, antes um formidável repórter, daqueles que escrevem umas linhas e dobram, do outro lado do mundo, uns quanto leitores seguros de si, em quatro. no fundo, gata mostrou-me que era possível. e isso é, em termos felinos e ao mesmo tempo humanos, dizer-nos para acreditarmos naquela coisa das sete vidas. que todos temos, bem ou mal escondidas, dentro de nós. mas temos.
24 maio 2010
gata está agora à minha frente e o que mais marca é a clareza translúcida dos seus olhos (do seu olhar). tem um metro e sessenta e pouco, arrasta duas muletas que pouco préstimo oferecem, sem que se perceba muito bem porquê, veste de forma normal, colete por cima de t-shirt, por cima de umas calças de ganga clara. sapatos correctos, relógio aceitável, cabelo bem cortado. gata é romeno e quando o encontrei era ainda um quase indigente, um habitante vindo da mittle-europa em busca do eldorado ou de coisas mais simples. gata era cozinheiro de grande hotel, lá na sua terra natal, uma cidadezinha não longe da capital do seu país. pai de filhos, um dia encontrou a sua mulher em manobras menos lícitas com outro homem. ao contar-me isto a clareza dos seus olhos desaparece por uns momentos, dando lugar ao que parecem ser outros olhos. outro homem, ocorre-me. gata continua a sua história: bem vê, a mulher de uma vida, mãe dos seus 3 filhos, enrolada na cama com um homem que, por acaso.. era um seu amigo. como é que um homem recupera de uma coisa assim? - fita-me nos olhos. e foi este o caminho ínvio que o trouxe até portugal. nesses dias, eu era ainda um repórter pouco habituado às regras da profissão, que, aliás, não exercia, em bom rigor. limitava-me a sair de casa, todas as manhãs, com um pequeno caderno A5 enfiado na algibeira, um lápis usado e um telemóvel. deitava-me ao caminho e seguia sem destino, cidade fora, cidade dentro, olhando as pessoas nos olhos. acontecia-me de tudo, é bom de ver, ao atirar-me aos outros com tal frontalidade. as pessoas perdôam tudo, ou quase tudo, mas raramente perdôam um olhar directo, olhos nos olhos. as miúdas pensavam que eu as cobiçava (e cobiçava algumas, quando me distraía do meu afazer de repórter amador), os homens mais velhos praguejavam comigo, os jovens ameaçavam-me em voz alta. mas eu, que era jovem, nada fazia para inverter essa minha febril rotina diária - encontrar pessoas de carne e osso e pele e espanto e por aí fora. às vezes, calhava encontrar alguma, como no dia em que conheci gata. gata repetia, olhando-me para detrás dos olhos: como pode um homem sobreviver a uma coisa assim? há coisas fundadoras de grandes amizades masculinas. este segredo humilhante, dilacerante, de gata foi o início da nossa amizade. ao longo dos últimos anos, cada vez mais embrenhado na minha não-profissão, fui encontrando gata, pelas esquinas e recantos da cidade. trata-me por menino, e sou-lhe grato por isso. descobrimos juntos a nossa admiração comum por um clube de futebol, por certos treinadores e outros tantos jogadores. e pelas manhãs bem madrugadoras da cidade. e pela cidade em si. e pelo olhar claro e limpo, num caso filtrado por um par de olhos azuis marinhos, noutro caso filtrado pela negra neblina que por vezes me envolve. gata encontrou uma mulher nova, alugou dois quartos, num prédio de bairro, por cima de um café frequentado por junkies amenos. está-se bem, menino, atira-me ele, vezes sem conta, baralhando-me as emoções que nem sempre acompanham a positividade que sempre o acompanha a ele. gata, romeno, sessenta anos, pai de três filhos, ainda não avô, casado em regime de para que é que o papel interessa, adepto fervoroso do meu clube de futebol, ex-cozinheiro no restaurante de um grande hotel, é um lisboeta perfeitamente assimilado. de vez em quando, diz-me ele, bate uma certa saudade. mas a tv cabo, devidamente quitada num tugúrio da almirante reis, dá-lhe acesso às dores e alegrias da terra que deixou para trás, com notável nitidez e aceitável qualidade no som. não tem fantasmas, este meu amigo, nem sequer aquela imagem terrível (a palavra é minha) que lhe mudou a vida. é assim, menino, um homem tem tudo, para descobrir que não tinha nada. é assim, menino, um homem sem nada pode ainda ter tudo. até um país novo, com amigos novos, sol e bom futebol, o amor de uma boa mulher. gata fala-me com serenidade, como um pai a um filho. acho que é contra as regras do bom jornalismo envolvermo-nos com os objectos da nossa investigação. mas eu nunca quis ser bom jornalista, antes um formidável repórter, daqueles que escrevem umas linhas e dobram, do outro lado do mundo, uns quanto leitores seguros de si, em quatro. no fundo, gata mostrou-me que era possível. e isso é, em termos felinos e ao mesmo tempo humanos, dizer-nos para acreditarmos naquela coisa das sete vidas. que todos temos, bem ou mal escondidas, dentro de nós. mas temos.
1 Comments:
sim, é possível
e
sim, temos
belo texto. é por estes e por outros que não deve deixar de o fazer...
(gatarenascida;)
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