15 abril 2010

andrei tarkovsky

vês, por exemplo, a mulher da limpeza urbana, numa pausa oficial ou a si própria oferecida, em pé, dir-se-ia que toda ela imóvel, olhando a montra alta de um fotógrafo de rua, daqueles antigos, parando demoradamente o olhar em cada foto tipo passe. quem foi esta pessoa? quem será esta pessoa? como será verdadeiramente esta pessoa? como será hoje esta pessoa? será ainda viva esta pessoa? quantas destas crianças são felizes? quantos destes casais ainda estarão casados? na mão, uma sandes feita com pão de forma barato, daqueles de supermercado - pequeno luxo que são sempre os pequenos prazeres; grande prazer que vem sempre de mão dada com os pequenos luxos. tempo, hoje, é luxo, convém não esquecer. e segues.

vês, por exemplo, aquele (aquela?) mendigo, enroscado em cobertores que adivinhas nauseabundos, seguro que estás na distância - física, social, psicológica - entre ti e aquela pessoa. reparas, pelo canto do olho, em qualquer coisa. talvez no facto de que ela está imóvel, deitada, ao longo da faixa de meio metro de largura que separa duas entradas de garagem de um qualquer prédio da cidade. adivinhas - apesar de os não veres - carros a sair e a entrar, passando tangentes por aquela pessoa. quantos alguma vez pararam ou pararão o carro? e segues.

vês, por exemplo, naquela esquina de cidade que em tempos foi tão importante para ti, um homem de idade. páras, para lhe dar prioridade na passagem. ele, de súbito, aproveita a tua hesitação - és humano, pensa ele - para te abordar e, na passada, contar a história do costume: aposentado, a pensão é uma miséria, não chega para comer. pensas, numa fracção de segundo, que o casaco está razoavelmente limpo, que a gravata é de um preto antigo e elegante. oscilas entre o repúdio (mais um que vive disto e que me vai enganar) e a compaixão (que porra de mundo é este?). tiras 5 euros da carteira - uma nota novinha em folha, saída um par de horas antes de um dos ATMs da vida - e passas-lhos para a mão. ele fica espantado, sem saber o que dizer, mas lá consegue articular um "Deus lhe pague". e segues.

Deus meu, nunca me ponhais ao comando de uma revolução. acho que só acabaria quando acabasse comigo - e este raio de fato janota que custou mais do que o salário daquela mulher, a reforma daquele homem idoso e as moedas diárias daquele mendigo ou mendiga. tudo somado, quero dizer.

diz então um: claro que não, a culpa é dos indigentes. um sujeito com tino, com inteligência e raça, safa-se sempre. construamos o sucesso e façamos rifas para comemorar, sorteando viagens para os pobrezinhos. diz logo o outro: nada de contemplações, sociologismos de pacotilha, essa eterna desculpa com que parte de nós desculpamos tudo e todos. e assim, arrumamos, de uma só penada, a direita das coisas e a esquerda das coisas, todo o espectro político que nos inunda os dias.

eu, que estive quase nas trevas e voltei, vi quem por lá ficou. muitos eram bem melhores do que eu.

por isso, amanhã, um dia destes, andem pela cidade a pé, olhem à vossa volta. por cada desvalido em que repararem com olhos de ver, deixem cair o emprego, depois a família nuclear, depois a família alargada, depois metade dos vossos amigos, depois metade da metade que ainda sobejou, depais parte da vossa saúde, depois parta da vossa circunstancial beleza. fiquem nús, metafóricamente, sejam apenas e só as pessoas que são por debaixo de tudo o que vos é circunstancial. agora que estão aqui, reergam-se. pensem nisto.

talvez saiam daqui Mulheres e Homens. talvez um de vocês ainda salve o mundo. nesse dia, estas palavras terão feito o seu caminho. e eu o meu.