falamos, claro, de 'caos calmo', um estupendo filmezinho italiano, de 2008, realizado a partir do livrinho homónimo. nani moretti, desta vez como actor, dá corpo, alma, fácies e gravitas a pietro, executivo de sucesso numa das empresas da vida, que é fintado pelas ironias da mesma vida, ao salvar uma mulher de morrer nas águas do mar, para, pouco depois, se deparar com a morte da sua própria mulher, mãe da sua filha ainda pequena. até aqui, nada de especial, para além do tom claramente 'pesado' do mote. o que se segue é uma reacção de pietro face à reversibilidade / irreversibilidade de certos factos - conceitos que, nas aulas, a sua filha aprende e, no fundo, explica ao próprio pai -, através de uma decisão que tem tanto de infantil (negação) como de absoluta maturidade (escolha): passar os dias sentados num banco de jardim, fronteiro à escola da própria filha. o resto da vida - as noites, os fins-de-semana, certas rotinas familiares - continua, mas os dias mudaram. é este 'deslocamento' físico - que é, acima de tudo, 'cosa mentale' - que constitui o golpe de asa do livro-agora-filme. pietro descobre, na sua nova rotina, aparentemente sem acção, uma nova rede de afectos - passivos e activos. a deslocação para esse não-lugar passa a ser a chave para a sua própria sobrevivência, feita agora de prioridades claras (a filha, as suas escolhas e não-escolhas profissionais, os laços com o irmão, a importância do seu novo mundo - o menino deficiente que todas as manhãs acena e espera que o carro de pietro (o mundo?) devolva o aceno, através do piscar do alarme; a jovem mulher que, dia após dia, passeia o cão e que rapidamente faz desse momento diário um ritual de subtil observação mútua, num flirt minimalista lindo de se ver, etc.). imparável nas suas voltas e contra-voltas, o desfile de colegas, chefes, etc. que, vindos do mundo material das empresas, se deslocam até àquele banco de jardim para discutirem com pietro - um homem a braços com uma das mais terminais dores que se pode ter - as contingências empresariais. como se só um homem no fundo do poço, tivesse a autoridade para lhes dizer o que fazer. mas pietro nada lhes diz, escuta-os apenas. e eles dir-se-ia que nem nisso reparam, saindo das conversas mais aliviados, mesmo que de pietro pouco tivessem verdadeiramente escutado. belíssima metáfora para o solipsismo narcisista em que (quase) todos vivemos, por estes dias. pietro, reconstrói-se, ao recusar uma parte do mundo. salva-se, adivinhamos, através do efeito do tempo, que serve de máquina reveladora para ele próprio, porque baseado num acto de bravura (mesmo que percebido como quase insano por muitos), muito mais imperativo do que propriamente estóico. pietro faz o luto, recolhendo-se, mas sempre dedicando todos os cuidados, num registo emocional controlado, à sua filha. nesse jogo seco e quase isento de emoção, entre pai e filha, é o não-dito que impera, o jogo dos olhares e gestos sobrepondo-se à violência da articulação pela linguagem. num filme feito de detalhes, onde pouco parece acontecer, lugar ainda para salientar coisas como o passeio nocturno de carro pela cidade, até já não ser possível continuar mais e as lágrimas irromperem com violência. o carro é hoje, na nossa civilização, um lugar onde acontecem muitas coisas, merecendo bem mais atenção sociológica e psicológicamente do que aquela que lhe reservamos. impossível não referir também o sonho erótico, sexual, que pietro tem com a mulher que salvou das águas, e que originou em itália um debate aceso em torno do direito da 'persona' criada por nani moretti a ter uma vida sexual activa. ou de como, mais uma vez, as imagens são o mundo real, por contraponto ao mundo real que, a pouco e pouco, se vai desintegrando. nani moretti é assim um património público italiano, como tal sem direito a torpedear a figura de representação colectiva que lhe foi sendo atribuída, resultado dos muitos filmes em que aparece como personagem-actor-autor-pessoa, combinando biografia e ficção. voltamos ao filme: 'caos calmo' é um filme. e um livro. e nós, espectadores, sentados num banco de cinema, num sofá lá de casa, num banco de jardim, vemos ou lemos algo que pode bem ser a nossa própria realidade desmultiplicada, como num jogo infinito de espelhos, que nos devolve a nossa própria imagem. ou de como todos somos pietro, tantas vezes.
11 abril 2010
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4 Comments:
Tive o grato prazer de ler o livro e, num sábado de noite, ver no Canal 2 o filme com o mesmo nome, e que vc tão bem descreve. Gostei, o que nem sempre é verdade quando se aprecia muito o livro que suporta o filme.
Porque ver um filme (também) sobre morte não chega, abalancei-me ao que veio a seguir; "O quarto do meu filho" (seria assim mesmo?) com o mesmo Moretti, desta vez como pai de um jovem adolescente que morre a fazer mergulho.
Revi-me em ambos, por motivos que serão mais ou menos claros a quem me conhece.
Desde há algum tempo que a morte e o silêncio são temas muito interessantes. "Negritudes" ou uma forma de buscar o seu inverso?
Abraço.
Um dia depois de ter visto o caos calmo,vi este.estupendo,também.
http://www.youtube.com/watch?v=Sku1qEqzmNc
Ah,e aceitei a tua sugestão.Ainda fui a tempo de apanhar o single man nos cinemas ;)
...
Amigos,
Como sabem, só muito excepcionalmente interajo, via resposta directa a 'comments'. Talvez seja uma questão de estilo - seguramente que é uma questão de escolha. Nem que seja circunstancial.
Em todo o caso, as V/ palavras merecem.. algumas palavras. Vamos a elas.
a) JB: provavelmente, vimos o mesmo filme, no mesmo exacto momento, sem o sabermos. Eu sei que sou um bocadinho 'poético por excesso' (chamo-lhe mais natureza, mas admito todas as possibilidades), mas acho revelador tal facto. Não li o livro, apesar de o conhecer das minhas leituras de fim-de-semana e dos meus périplos pelas livrarias da vida. Há muito que os tinha (livro e filme) debaixo de olho. Consumou-se agora. É um belíssimo filme e fico contente que ache que está à altura do livro. Questão de afectos. Quanto ao outro filme, é exactamente esse mesmo 'O Quarto do Filho', realizado, neste caso, pelo próprio Moretti. Desta vez, optei por não (re)ver o filme, nem eu próprio sei bem porquê (minto: sei exactamente). Há uma cena que nunca esqueci: o gesto do pai em tentar entender o mundo do filho, através da música. A canção é sublime, ('by this river', de brian eno). Faz-me pensar na importância dos gostos - diz-me o que te faz vibrar, brilhar, estremecer, dançar, sonhar e eu dir-te-ei quem és. Mas isto levar-nos-ia muito longe..
b) lysa: continuas a 'saber das coisas que merecem ser sabidas', como sempre soubeste. Falas de 'A Melhor Juventude', uma série de televisão italiana que, coisa rara, chegou ao cinema. Neste caso, não tem que enganar - é um filme (ou série ou seja lá o que for) lindo. Todos estes filmes têm uma coisa fundamental: não são sobre a vida; são, isso sim, a própria vida. Ou de como as subtilezas semânticas nos conduzem até à substância das coisas. Obrigado, ainda, por teres 'seguido' a minha recomendação. 'A Single Man' é, num estilo diferente, um belo pedaço de cinema. Tal como, e fica a dica, o mais recente de Alain Resnais, 'Ervas Daninhas', ainda que não seja consensual. Tem uma coisa linda - é cinema que transborda liberdade, inventividade, golpe de asa contra aquela coisa que nos maça: o chamado 'óbvio ululante'.
Ou então somos nós a sonhar.
Flores aos dois, pela gentileza dos V/ comentários.
gi.
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