08 fevereiro 2010



são 5 da manhã e estás inebriado pelo cheiro da noite, cercado por vultos negros que, num mesmo compasso, esconjuram fados e feridas, numa dança nocturna, espectral, ao som das malhas claustrofóbicas de rock mais ou menos pesado.

a noite encaminha-se a passos largos para o seu fim. pensas para contigo, como no filme ou no disco ou no livro, 'Deus meu, que faço eu aqui?'. mas sabes perfeitamente o que fazes, nesse tenso diálogo interior entre um lado mais hedonista - easy going - e um lado bem mais escuro - reflexivo.

os teus amigos estão ali ao lado. ali mesmo ao lado. aqui mesmo ao lado. celebra-se uma coisa bonita e pensas na beleza muito especial destas noites. no milagre que é estarmos vivos, apesar de tudo. no milagre que é estares vivo, apesar de ti.

apetece-te escutar pulp - essa música vitalista e estupidamente comovente - e gnr, no seu brilhante 'piloto automático', canção que tem o raro condão de te fazer esquecer (quase) tudo.

o teu amigo, conhecedor profundo destes meandros também afectivo-musicais, desapareceu já, no seu passo sempre gentil, e conversa agora com o dj, seu amigo. a ideia: dar-te o que esperas ouvir, para fechar a noite. pulp ou gnr. pulp e gnr, quem sabe..

e, de repente, sem o esperares, soa o crepitar de guitarra que tão bem conheces, essa senha mágica para um outro mundo. agarras-te à parede o melhor que podes, enquanto o teu corpo, desobedecendo, te pede espasmo, espanto, pasmo, esperanto - uma linguagem universal, síntese de coração na ponta dos pés.

danças agora e tudo brilha, toda a matéria escura é agora luz. vês os corpos a rodopiar, as mãos a acenar, vês a dança de fantasmas transmutados numa outra coisa. no escuro, brilhando, as palavras assumem agora contornos precisos, rostos, são uma coisa impossível. mas como impossível se as vês, se flirtas com elas, se até consegues sentir o seu perfume?

as guitarras continuam o seu trabalho de precisão. do tecto, do céu, do espaço caem flores, psicadelismo e serpentinas e coisas outras, indefinidas e indefiníveis. não sabes nada e sabes tudo. não queres dizer nada e queres dizer tudo.

e o refrão - essa longílinea canção que é só refrão, como se de um mantra se tratasse - diz tudo:

wait
they don't love like i love you
they don't love like i love you

não sabes porquê ou para quê. mas isso tu sabes. sabes que

they can't love you like i love you.

abraças os teus amigos. explosão exterior e implosão interior.

são 5h30 da manhã. um espelho partido, atrás do bar, devolve-te a imagem do teu rosto rasgado em dois, dizendo-te:

- bem-vindo a casa, rapaz.