e é então que entras na sala e te sentas, muito direito, como se uma força centrífuga e centrípta - ao mesmo tempo, nota bem - se te sugasse e expelisse - ao mesmo tempo, nota bem. na parede em frente, esse oráculo de sempre, vai começar a projecção. o filme chama-se 'a single man' e, brincando com a semântica, pensas nos diferentes significados que a expressão pode ter, na forma como a traduzirias para a tua língua. notas que qualquer que seja o ângulo, a expressão é sempre, como dizer, ajustada, apropriada, adequada, um casaco de corte preciso que assenta totalmente num corpo que se diria nascido para tal casaco. o filme, entretanto, já começou. e é um filme que, no fundo, é um gigantesco post antes de exister such thing. a diferença é a impossibilidade realista de ele ser narrado como é narrado. mas isso, já sabes, deixou de ser impossível a partir de meia-dúzia de obras de arte modernas. no fundo, visto do céu, é uma possibilidade como outra qualquer. uma possibilidade, por mais improvável que seja, não deixa de ser uma possibilidade. nunca foste bom a matemática, sorris interiormente agora, e já não te lembras se a lógica também. não interessa muito, o filme já arrancou há minutos. segues a vida de geo(rge), essa óptima interpretação de um actor que conheces e que nunca admiraste verdadeiramente. mas agora é uma coisa diferente, uma possibilidade improvável (lá está..). sózinho, carrega o filme aos ombros, todo ele é elegância, coolness triste, sofisticação gelada. e, no entanto, no entanto há um turbilhão manso, conformado, um vulcão gelado que teima em persistir, contra toda a probabilidade. segues o rosto de geo(rge), as suas mil tonalidades, as suas duas mil cambiantes para a palavra tristeza. já sabemos agora que foi feliz, profundamente feliz. que é viúvo agora de um homem, dezasseis anos interrompidos brutalmente, como sempre são. soletras v-i-ú-v-o com prazer e pensas que neste novo mundo vais ter que te habituar à ideia de veres um homem ou uma mulher viúva, sobrevivente, de outro homem ou de outra mulher, respectivamente (a ordem é importante, lá vem a matemática, outra vez). segues o filme com o olhar, com tudo o que tens à mão. o design de produção é obscenamente perfeito, ou não fosse o filme obra de uma ilustre designer de roupa. os fatos - suspiro -, os objectos, aquele tempo em que ainda era possível.. disparate, vês aquele tempo, a partir deste tempo. como sempre foi, como sempre será, a posição do observador determina a própria observação. sabes isso, não sabes? o filme continua, denso, interior, num registo falsamente arrastado, como se geo(rge) nos escancarasse as suas portas mais interiores. o filme é belo e trágico - reparas na redundância das palavras. deixas aqui pistas, mas não mais que isso, para que quem te lê ganhe balanço e vá ver este teu 'homem singular'. todos os homens são-no, não é verdade? este é mais um. que te explica algo irreproduzível em série, mas, ao mesmo tempo, num golpe comum em obras intimistas, é também do todo que fala, de todos nós. horas depois, embalado ainda pelos fotogramas que procuram encaixar-se no sítio certo, sabes já que não é um filme enorme, mas que é um filme tocado por alguma coisa que te fala baixinho. horas depois, estás em tua casa, deitado num sofá, às voltas com um livrinho chamado 'aula de poesia'. pensas em muitas coisas. pensas, por exemplo, que 'aula de poesia' seria um belíssimo subtítulo para o filme, mas que não seria apreensível para noventa por cento do target do filme. e pensas também, uma e outra e mais uma e outra vez, nas possíveis declinações da expressão 'a single man' se vertidas para português. no fundo, sabes bem o que queres dizer a ti próprio - e esta noite que nunca mais passa.
19 fevereiro 2010
e é então que entras na sala e te sentas, muito direito, como se uma força centrífuga e centrípta - ao mesmo tempo, nota bem - se te sugasse e expelisse - ao mesmo tempo, nota bem. na parede em frente, esse oráculo de sempre, vai começar a projecção. o filme chama-se 'a single man' e, brincando com a semântica, pensas nos diferentes significados que a expressão pode ter, na forma como a traduzirias para a tua língua. notas que qualquer que seja o ângulo, a expressão é sempre, como dizer, ajustada, apropriada, adequada, um casaco de corte preciso que assenta totalmente num corpo que se diria nascido para tal casaco. o filme, entretanto, já começou. e é um filme que, no fundo, é um gigantesco post antes de exister such thing. a diferença é a impossibilidade realista de ele ser narrado como é narrado. mas isso, já sabes, deixou de ser impossível a partir de meia-dúzia de obras de arte modernas. no fundo, visto do céu, é uma possibilidade como outra qualquer. uma possibilidade, por mais improvável que seja, não deixa de ser uma possibilidade. nunca foste bom a matemática, sorris interiormente agora, e já não te lembras se a lógica também. não interessa muito, o filme já arrancou há minutos. segues a vida de geo(rge), essa óptima interpretação de um actor que conheces e que nunca admiraste verdadeiramente. mas agora é uma coisa diferente, uma possibilidade improvável (lá está..). sózinho, carrega o filme aos ombros, todo ele é elegância, coolness triste, sofisticação gelada. e, no entanto, no entanto há um turbilhão manso, conformado, um vulcão gelado que teima em persistir, contra toda a probabilidade. segues o rosto de geo(rge), as suas mil tonalidades, as suas duas mil cambiantes para a palavra tristeza. já sabemos agora que foi feliz, profundamente feliz. que é viúvo agora de um homem, dezasseis anos interrompidos brutalmente, como sempre são. soletras v-i-ú-v-o com prazer e pensas que neste novo mundo vais ter que te habituar à ideia de veres um homem ou uma mulher viúva, sobrevivente, de outro homem ou de outra mulher, respectivamente (a ordem é importante, lá vem a matemática, outra vez). segues o filme com o olhar, com tudo o que tens à mão. o design de produção é obscenamente perfeito, ou não fosse o filme obra de uma ilustre designer de roupa. os fatos - suspiro -, os objectos, aquele tempo em que ainda era possível.. disparate, vês aquele tempo, a partir deste tempo. como sempre foi, como sempre será, a posição do observador determina a própria observação. sabes isso, não sabes? o filme continua, denso, interior, num registo falsamente arrastado, como se geo(rge) nos escancarasse as suas portas mais interiores. o filme é belo e trágico - reparas na redundância das palavras. deixas aqui pistas, mas não mais que isso, para que quem te lê ganhe balanço e vá ver este teu 'homem singular'. todos os homens são-no, não é verdade? este é mais um. que te explica algo irreproduzível em série, mas, ao mesmo tempo, num golpe comum em obras intimistas, é também do todo que fala, de todos nós. horas depois, embalado ainda pelos fotogramas que procuram encaixar-se no sítio certo, sabes já que não é um filme enorme, mas que é um filme tocado por alguma coisa que te fala baixinho. horas depois, estás em tua casa, deitado num sofá, às voltas com um livrinho chamado 'aula de poesia'. pensas em muitas coisas. pensas, por exemplo, que 'aula de poesia' seria um belíssimo subtítulo para o filme, mas que não seria apreensível para noventa por cento do target do filme. e pensas também, uma e outra e mais uma e outra vez, nas possíveis declinações da expressão 'a single man' se vertidas para português. no fundo, sabes bem o que queres dizer a ti próprio - e esta noite que nunca mais passa.
2 Comments:
Filipa Leal, autora de "A Inexistência de Eva"?
Olá, Valter Ego (ou será valter hugo?)..
Gosto bastante da Filipa Leal, em especial daquele poema com que se apresentou ao mundo. Diz assim:
'A Cidade esquecida'
Ela disse: Sou uma cidade esquecida.
Ele disse: Sou um rio.
Ficaram em silêncio à janela
cada um à sua janela
olhando a sua cidade, o seu rio.
Ela disse: Não sou exactamente uma cidade.
Uma cidade é diferente de uma cidade
esquecida.
Ele disse: Sou um rio exacto.
Agora na varanda
cada um na sua varanda
pedindo: Um pouco de ar entre nós.
Ela disse: Escrevo palavras nos muros que pensam em ti.
Ele disse: Eu corro.
De telefone preso entre o rosto e o ombro
para que ao menos se libertassem as mãos
cada um com as suas mãos libertas.
Ela temeu o adeus, disse: Sou uma cidade esquecida.
Ele riu.
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Mas não, o textinho em causa é assinado por este plumitivo - ou seja, por mim.
Flores e obrigado pela visita,
gi.
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