02 janeiro 2010

nuno rocha morais partiu cedo. deixou-nos um único livro, póstumo, de seu nome 'últimos poemas' (edições quasi). na realidade, os seus últimos poemas foram os primeiros a serem, formalmente, dados à estampa - trocadilho semântico óbvio, não fosse a funda tristeza biográfica associada.

nuno rocha morais morreu aos 34 anos. e disse isto:


ao teu lado, mudo.
suponho que pousei a mão
no teu ombro, não sei,
ausentes ambos,
tu do ombro, eu da mão.
lá fora, não muito longe
do vidro, a manhã passa
e é calma, tristeza, fim.

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por exemplo, as jovens estónias,
para quem o futuro foi um conceito ilegal,
têm pressa, pressa de tudo.
para elas, o tempo é, de facto,
uma relatividade do espaço,
que bebem em longos tragos –
hoje, paris, amanhã, o nepal,
depois de amanhã, a austrália.
não se querem enredar em nada,
nem Deus, nem amor, nem casas.
aprendem a exprimir sentimentos em francês
servidos por um escanção,
mas gostam de dizer que não têm alma,
nunca tiveram – proibida durante décadas,
acabou por definhar, desistir
destes corpos altos, esguios,
produto de um qualquer pacto com o diabo.
embora tão bálticas, não por isso menos gregas;
cépticas, custa-lhes a crer que o sol italiano
seja tão incondicional na sua graça,
que o céu possa ser tão sem censura.
foram amamentadas a convicções profundas
e agora não acreditam em nada,
não acreditam sequer na sua vida passada.

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venha, por favor, senhora bishop,
voando por sobre o cemitério
fronteiro à minha janela,
por ruas sem sintaxe,
por entre árvores que aqui se refugiam
para poderem envelhecer.
estarei à sua espera
quando, à meia-noite,
o parapeito da minha varanda
for a amurnada de um quarto
que vira de bordo e se prepara
para dobrar o cabo horn.
venha, por favor, senhora bishop,
o salto mortal da elipse,
revele o segredo da amputação impassível
que anula a força centrípeta de um eu,
o iceberg de fogo em constante naufrágio,
o mastro no topo do qual temos de adormecer.
venha, por favor, senhora bishop,
deixe-se invocar, com um sorriso complacente,
pela sua própria fórmula
emprestada de outros
(e traga a senhora moore).
ensine como a geografia é a ciência
de reconhecer os lugares dentro de nós
e como o facto de serem concretos
nos exprime e poupa ao etéreo –
as palmeiras que não prestam vassalagem
ao vento em key west
ou o medo profundo que o barroco esconde
em algumas cidades brasileiras
ou a contida verdura da nova escócia.
mostre como o mar aprendeu com os tubarões
a caçar ilhas,
que desaparecem debatendo-se
num furacão de espuma
e logo as águas cicatrizam;
mostre como assim preda o seu verso
num filão de minérios sensíveis.
venha, por favor, senhora Bishop,
prove que a única fantasia
é supor a existência de um real
que não seja fabuloso.

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brinquei, pela calada, em sítios proibidos-
na eira, no coradouro, perto das orquídeas.
na eira, quando o milho era ouro,
perto das orquídias, flores difíceis e petulantes,
no coradouro, quando a roupa branca
secava à brandura do ar,
que depois se estendia ao corpo.
e então tinhamos, eu e os meus primos,o perfume dos anjos,
como nos chamavam, com a desrazão do amor,
avós e tias. mas os anjos,
se outros há para além da nossa melhor natureza,
brincam em sítios proibidos,
como nós no coradouro,
onde também jaziam os ossos de cães amados,
tentam atravessar a pé o pousio das águas,
sem saberem que o rio pode ser
um mal tranquilo,não menos predador.
apenas sofrem de nódoas negras sem metafísica
e de um leve tremor da primeira sombra sexuada.
em breve começamos a roubar fruta e beijos,
brincando sempre à socapa em sítios proibidos,
mas incapazes de conter o alvoroço-
então avós e tias chamavam-nos
demónios, diabretes, mafarricos.
a infância começava a ser uma impostura,
não sabíamos ainda, não ainda,
que já tinhamos sido expulsos do paraíso.
 
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que não acabes nunca de me esquecer
(a memória como um dente-de-leão
que resiste a todos os sopros,
um lume de partículas suspensas
pairando como luz num dia de Verão,
enxames crepusculares sobre um curso de água).
que indelével seja qualquer coisa,
um cristal de noite, o resto de um riso,
uma cintilação na nebulosa de instantes
em que acordámos juntos
e percebemos, num misto de alívio e alegria,
que o amor não tinha acabado ainda,
que ainda não nos deitáramos a perder.

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não se cansa o ramo
pese embora tanta neve -
assim o amor por ti.