eu ligava então o computador e repetia desoladamente o gesto de sempre
procurando no génio alheio uma ponta de redenção para o meu esforçado poema
a primavera anunciava-se lá fora, contornando esquiva a esguia janela,
mas os meus dedos não sabiam, nesses dias, procurar o pólen improvável
que sempre nasce do esforço mais devotado, quase a possível terminação
para quem sempre sonhou com a taluda (o contrário, infelizmente, seria
todo um outro poema, com pouca cor, algum choro e decerto ranger de dentes).
por entre erros de métrica e formalismos inestéticos, os dedos martelavam
impiedosamente esse betão que podem ser as letras, em dias maus, quando
revelam todo o seu mau fígado e pior coração. coisas da ordem dos factos,
tentava convencer-me, dedilhando o teclado e varrendo, nunca é demais dizer,
o tal génio alheio, os tais que têm coisas para escrever vindas do turbilhão,
do desalinho da alma, do escuro que brilha. felizes esses infelizes, escrevem
coisas com estética e preceito. pior seria, tu como eu sabes bem, escrever
sempre em esforço, ter algures no deserto interior um oásis em potência, mas
nem arte nem ciência para o fazer florir, pelo menos em tempo útil. por isso
te chamas inverno, mesmo gostando de verão, mesmo se tantos encontram o teu
lugar muito mais nos outonais campos da primavera (ou será ao contrário..?).
coisas da ordem dos factos, incontornáveis tal como escrever esta palavra
- ia dizer: nestes tempos. melhor seria lembrar o ruy belo e a sua famosa e
solene declaração, cheia de pujante atitude, em vez da pusilânime contenção
que a vida moderna aconselha. sim, rui, também eu 'odeio este tempo detergente'. ironia biográfica, se porventura conhecessem quem por detrás deste matraquear
esforçado displicentemente se esconde. ironia? só da mais fina. que o tempo não
está para cedências ao deus menor da velocidade sem sal. e assim nos quedamos,
em castelhano e tudo, que o tempo escasseia e o poema sobeja. devaneios à sexta
quem os não tem? fica assim manco o poema, à falta de um encerramento condigno.
como a vida que teima em equilibrar-se em menos pernas do que as que te são devidas
pelo grande vendedor de ilusões. vende detergente, velocidade, ferro em brasa,
coisas sem préstimo ou essencialidade. resta a escrita, o esforço, o resto
que a ninguém aproveita, velharias civilizacionais. resta uma casa, um rosto,
a distância murada para a fealdade, um nome, uma ideia louca. resta-te a liberdade.
3 Comments:
Gi!
Obrigado.
Obrigada, pelo seu génio alheio, "o tal génio alheio, os tais que têm coisas para escrever vindas do turbilhão,
do desalinho da alma, do escuro que brilha. felizes esses infelizes, escrevem
coisas com estética e preceito"
resta-me a liberdade e a paciência de aguardar que o meu jardim um dia floresça, e deixe de ser eternamente inverno
carmezim,
para o bem e para o mal, quase nada é 'eternamente eterno'. haverá algumas - e ainda bem -, mas não seguramente esse 'inverno' de que fala.
tal como as flores, também as estações interiores obedecem a alquimias misteriosas. a estação nova chegará, como chega sempre. às vezes, sob outras formas, assim saibamos ter o olhar flexível e o coração aberto.
um abraço.
gi.
Enviar um comentário
<< Home