16 outubro 2008


até deus ser reinventado pelo extremo exercício da beleza*


dizem aqui ao lado, que digo?, zombam
que a poesia é matéria ilusória,
não sacia a fome, não mata a sede e
se porventura formos metafóricos
mesmo o espírito é discutível, menina.

dizem aqui ao lado, que digo?, rosnam
que a poesia é altamente perigosa,
ilusão alienante que faz lembrar
aquela matéria que nas bds da infância
se chamava o ouro dos tolos, menina.

dizem aqui ao lado, que digo?, cospem
que a poesia e os seus promitentes poetas
são uma cambada de vencidos da vida
frequentadores de modernos pardieiros estéticos
à falta de trabalho e melhor ocupação, menina.

dizem aqui ao lado, que digo?, hesitam
que o problema é afinal outro:
- poesia? nada contra, menina.
o problema é já não se ser menina,
o problema é chegarmos aqui,
trinta anos, umas assoalhadas algures,
trinta e um anos, um carro vistoso,
trinta e dois anos, um emprego bafiento,
trinta e três anos, a idade de Cristo..

a partir daqui, menina,
já estamos a mais.
a partir daqui, menina,
já somos a menos.
finam-se as possibilidades surreais,
enterram-se os sonhos de grandeza,
louvam-se as minúsculas alegrias,
cultivam-se as rimas que não riem
e os risos que não rimam.

o problema da poesia é simples:
não serve para nada, é dandismo puro,
devaneio de quem pode pensar em algo mais
que a bucha e os trocos do dia.
neo-realismo pós-moderno,
manuel de freitas, sem profundidade
josé miguel silva, sem latitude
dizem aqui ao lado, que digo?, acusam.

tristes patetas,
e, o pior de tudo, impotentes
estes poetas dos trinta anos.

liguei a televisão
espreitei a selecção da albânia
pensei no que seria
se tivesse nascido em tirana.
vi o nosso treinador perdido,
impotente,
sem saber o que fazer.
aposto que é rapaz para mais de trinta anos.

desligar a televisão,
desligar dos jornais,
desligar a rádio,
desligar o mundo.
ir treinando, em vida, em jogo,
eles e nós,
a não qualificação.

o problema da poesia, vendo bem,
não é ser nada.
o problema da poesia
é dizer o nada,
na esperança louca e fugidia,
de que o extremo exercício da beleza*
seja, afinal,
uma janela.

passado, presente e futuro,
guarda de honra e exército,
puros-sangues,
galgos por inventar,
cores impossíveis,
uma saída.

mas há uma saída, menina?**



* verso adaptado de herberto helder
** verso adaptado de rui pires cabral

com profundo respeito e admiração.