tens 10 anos de idade de novo e corres para casa, nesses tempos em que menos era mais, ver a série m*a*s*h, um clássico da televisão americana. estás numa vila de província e aquele é o teu mundo, o avó álvaro, a avó teresa, a tia alzira - santíssima trindade, que Deus me perdoe mais esta -, os teus pais, as tuas irmãs, a família imensa de quinhentos primos mais ou menos por afinidade que gravitam à tua volta. és um menino, na transição dos 70 para os 80, mas um menino que é, não raro, apresentado e tratado como um adulto. nesses dias, em que a educação se fazia por instinto (e, às vezes, por amor) não havia cientificidade que substituísse o colo do teu avó, as receitas da tua avó, a protecção omnipresente da tua tia. hoje, todos estão algures, enfim reunidos, outra vez, interrompendo vinte anos em que a presença dos três foi-se desvanecendo entra a terra e ess'outra margem da alegria, pela qual rezas todos os dias para que exista. sempre gostaste desta musiquinha, na sua versão instrumental, porque tem nela a palavra que mais gostas - ternura. hesitas, talvez gostes ainda mais da palavra liberdade. ternura e liberdade, numa musiquinha, em versão instrumental de casino, que servia de genérico ao m*a*s*h? as pessoas pensarão o quê? mas tu não te preocupas com isso, tens 10 anos de idade, vives no interior do país, frequentas a igreja, a escola pública, jogas à bola, corres pelos atalhos, dás-te com gente de todo o tipo, nessa tua vocação de abraçar os extremos que sempre tiveste em ti. não podes ainda saber o que vais ser, não podes ainda saber o que a vida te reserva. sabes apenas que tens em ti qualquer coisa que não entendes muito bem, qualquer coisa que te faz ler compulsivamente livros que não são para a tua idade (lembras-te da noite em que devoraste kafka mais o seu 'o processo'? se ele o havia escrito, diz a lenda e o seu amigo e editor póstumo max brod, numa noite, o mínimo que te é exigido é que o leias numa noite. tens 10 anos de idade e nessa noite a leitura de um livro tornou-te instantâneamente adulto. anos depois, muitos anos depois, perguntar-te-ão: 'de onde te vem esse permanente sentimento de perda?'. é a pergunta exacta, e tremes por perceber que te perceberam. lembras-te da frase do ruy belo ('conhecer-te é já perder-te') e engoles em seco, como tantas e tantas vezes tens feito, vergado por dentro e dobrado em efeitos de origami interior que nenhum artista poderia reproduzir). mas tens 10 anos, apenas 10 anos, gloriosos 10 anos, e com o frio na cara - essa sensação que sempre adoraste -, corres, corres, corres para casa, para a tua família, para os braços da grande-eterna-casa. ligas a televisão mágica, nesses tempos sem escolha entre mil canais que não servem para nada, e mergulhas no campo, estás no vietname, o ambiente é paradoxalmente distendido, apesar da guerra à volta. é uma estratégia de sobrevivência, pensas. dizes para contigo: rapaz, lembra-te disto, ser-te-á útil mais tarde. a música começa e, de súbito, disparas numa espécie de experiência mística. menos de 1 minuto depois, tens os olhos marejados de lágrimas e ninguém repara, ninguém percebe. mas alguém percebe sempre e coloca-te nos seus joelhos e diz-te: 'gosto de ti'. e desse gosto de ti, dessa primeira letra e dessa última letra, entendes que o teu nome 'g+i=gi' é afinal tudo o que tens de saber sobre ti e o que os outros terão de saber sobre ti. muitos anos depois, pensas, tens 10 anos ainda, muitos anos depois será este o abre-te sésamo, a senha mágica, o santo graal, a alquimia superlativa: 'gosto de ti, gi'. e sabes que essa será sempre, sempre, sempre a porta de entrada no teu reino. tens 10 anos, a musiquinha do genérico continua a tocar, nunca esquecerás a melodia. nunca percebeste, nesses tempos sem internet, mas com tanto mais e melhor do que toda esta parafernália de novos ricos sem mundo, que a canção se chamava 'suicide is painless'. dizes assim: como é possível ser-se são estúpido e dar um nome tão terrível a uma canção? depois, depois, pensas melhor e vem outra vez ruy belo ao teu encontro ('suicido-me nas palavras'). tens 10 anos e projectas-te no tempo, pensando que um dia vou pensar e sentir e escrever e ser assim. não conheces o futuro, nunca leste poesia, ruy belo quase quase que o apanhavas ainda vivo e viçoso, o vietname tinha sido logo ali atrás, há bocadinho. pensas que uma escrita sulfurosa, súlfurica, barroca, em combustão, te pode salvar. nada te pode salvar. colocas os verbos no futuro - tentas o perfeito, o imperfeito, o mais-que-perfeito, nada rima como deve ser, nada sôa bem ao teu ouvido exigente. sonhas em línguas eslavas, sentes em esperanto e pensas que, apesar dos teus 10 anos e de viveres num mundo em miniatura, o que te caía mesmo bem era um milagre qualquer. 'lady and bird', num inglês que apenas intuis, assaltam-te por dentro. será esse o milagre? veremos o que o futuro nos reserva, pensas. amanhã vou jogar à bola, porreiro, pá. vou-me cansar, extenuar, parar de pensar, parar de sentir. viver a 100, a 200 à hora, pé na tábua, sempre a fundo, sempre em risco de incêndio. pode ser que me esqueça de sentir, pode ser que ande mais depressa do que correm os espectros que me tentam apanhar. tens 10 anos e não sabes, não entendes, não percebes. afinal, é só uma musiquinha, não é avô, avó, tia? e no sorriso terno deles, mergulhas a fundo nos vales bem-aventurados da infância, homem-pássaro que se adivinha nesse menino de dez anos.
pôrra, pá, tenho tantas saudades vossas. mas tantas.
5 Comments:
Eu também 'gosto de ti,gi' :)
Um texto bonito, lido assim numa tarde de calor, ao fim de agosto... Devia ser recomendado como receita médica para qualquer tipo de depressão...
O gosto por ti, Gi, é algo de muito fácil, por seres assim, como és...
Abraço.
"Outside
The circus gathering
Moved silently along the rainswept boulevard.
The procession moved on the shouting is over
The fabulous freaks are leaving town."
("The Carnival is over" - Dead Can Dance)
sM*A*S*Hing
akele
grazie a tutti!
totus tuus..
:-)
gi.
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