- olá. obrigado, desde já, por nos conceder este tempinho. diga-nos, porque é que chama a leonard cohen 'o incomparável senhor cohen'?
- porque merece que os adjectivos, no seu caso, sejam transformados em substantivos. neste caso, 'incomparável' é nominativo, uma propriedade daquilo que ele é. espero que não me pergunte porque o chamo de 'senhor', minha senhora.
- penso que não é preciso, que todos entendemos. lembra-se de quando travou conhecimento, pela primeira vez, com leonard cohen?
- perfeitamente. por acaso, sim. teria 14 para 15 anos e, num ano muito especial da minha vida de adolescente a caminho de jovenzinho, um professor de filosofia, david de seu nome, emprestou-me uma velhinha cassete com os seus 'personal favorites', as canções de que gostava mais. penso que, pouco tempo depois, me emprestou aquele célebre livrinho da colecção 'rei lagarto' (assírio & alvim), edição bilingue com muitos dos poemas musicados pelo leonard conhen, nos seus discos. amor à primeira vista, se assim se pode dizer. (risos).
- com quinze anos, calculo que, fazendo uns cálculos por alto, ainda apanhou as ondas, ainda que já desvanecentes, da cena urbano-depressiva. é natural que leonard cohen apele a quem, por essa altura, adoptava a tal postura dos modernos e urbanos 'vencidos da vida'. é por aí que surge leonard cohen?
- sim e não. sim, porque o lado denso da música, a importância das palavras, naturalmente que de certa forma rima com os movimentos associados quer ao lado mais 'joy divisionano', quer a bandas de som mais jovial, mas igualmente profundas no sentido último (à cabeça os 'the smiths'). não podemos esquecer ainda um certo carácter grave e solene das bandas da editora 4AD, por exemplo. toda esta predisposição estética (e quase semiótica) naturalmente que ajudou no processo de recepção da música de leonard cohen. quero, contudo, frisar que tal não chega como factor explicativo. leonard cohen levava muitas coisas mais além - curiosamente, sendo cronologicamente anterior a elas. a palavra 'gravitas', o negrume existencial e a catarse permanente do lado mais lunar da existência em geral, e do amor em particular, eram, na altura, coisa nova. já conhecia outras coisas, mas não com esta força, com tal grau de perfeição, se é que é a palavra certa. foi como o olhar que pela primeira vez se cruza com uma catedral, inultrapassável no seu peso metafísico e ao mesmo tempo no seu carácter de construção intrinsecamente humana. ou, dito de outra forma, há coisas que, instintivamente, sentimos que atingiram um grau de exactidão que nos deslumbram e assustam. aqueles sentimentos, articulados daquela forma, musicados naquele registo, cantados com aquela expressividade especial.. não encontrava em mais ninguém. encontrei em poucos mais, passados vinte anos, coisas parecidas, mas sempre um bocadinho aquém. é esta a diferença e é esta a razão da palavra senhor. senhores há poucos. (risos).
- uma provocação: mas é só música..
- pois, pois é. tal como a vida é só vida. e o amor quatro letras. pois.
- era uma provocação..!
- sim, mas não muito inteligente.
- passemos a outra perspectiva: leonard cohen faz sentido para quem tem hoje 15, vá lá, 20 anos? o que acha que uma pessoa desta idade pensa / sente / experimenta, ao ouvir um disco (no MP3, claro) que associa aos 'cotas'?
- a pergunta é um bocadinho melhor, obrigado. uma sugestão: faça a pergunta aos seus filhos ou sobrinhos. mais a sério, acho que um autor como leonard cohen sempre terá o seu público, eventualmente menos, como dizer, 'alternativamente mainstream'. mas que sentido faz questionar o sentido das obras de arte? é como perguntar se kafka faz sentido, ou as pinturas de vermeer ou hopper. todas as respostas serão meramente especulativas, projecção com um olho no retrovisor da nossa própria experiência e, se quisermos ser mesmo exigentes, irrelevantes. o tempo dirá. talvez já não a nós.
- vai ao concerto, amanhã?
- não, senhora. há coisas que é melhor deixarmos como estão. cá dentro, quero dizer.
- medo da desilusão?
- medo da ilusão.
- e da velhice?
- sim, e da velhice. porque não dizê-lo.
- os nossos heróis que envelhecem e morrem, de certa maneira. incomoda-o?
- sou humano, claro que sim.
- algum comentário sobre as excentricidades de leonard cohen, dos seus retiros budistas aos problemas, ao que parece graves e sérios, com desfalques, por parte de antigos colaboradores próximos?
- os mesmos que o senhor cohen faria sobre as suas ou as minhas excentricidades. mind your own business. o senhor cohen é um meio, não tem biografia. é um veículo transmissor do 'great scheme of things'.
- provocação, novamente: paleio 'new age'? é para fazer equipa com os desvarios zen dele?
- você tem alguma piada, há que reconhecer. estava a brincar. a resposta certa é um simples não. não, não tenho comentários. acho que se chama vida, essas coisas que nos acontecem. a nós e a ele.
- sim, mas a si e a mim ninguém nos conhece.
- diga isso lá em casa, aos seus amigos, familiares e colegas de trabalho. teria uma bela supresa. talvez a uma escala mais reduzida e sem cobertura pelos media. mas na sua essência não muito diferente.
- um disco de eleição?
- songs of love and hate. escutem-no. não é bem música, é uma experiência, como hoje se diz. com o marketing certo, teria vendido bem.. (risos).
- e uma ca.. (interrompe)
- canção? se gosto mais do papá ou da mamã? olhe, minha boa amiga, diria assim: há perguntas que não se fazem.
- de onde vem esse seu feitio?
- do facto de pensar que seria desta que a entrevista era inteligente. e de nunca ser desta, no final. mas valeu o esforço.
- (silêncio)
- ah, escreva aí, que o senhor cohen somos nós. é um espelho terrível, porque lúcido e articulado, de tudo aquilo de que temos medo: o vazio existencial, a falta de sentido, o desamor, a errância amorosa, a comédia de enganos, o desespero de certos dias, o frio de certas camas, a inexpressividade de certos pares de olhos, o medo do monstro que vêmos no espelho um dia nos comer. dito de forma especialmente bela, quase religiosa. ou seja, um abismo belo. terrificamente belo.
- (silêncio)
- mas, se acha muito negro, denso, etc e tal, sempre lhe digo que o senhor cohen, por outro lado nos faz sentir que não estamos sózinhos. que, por muito que o neguemos ou que o escondamos atrás do voraz ar do tempo, a todo o tempo outros seres humanos experimentam a mesma angústia. por paradoxal que pareça, isso é lindo, poderoso, solar. uma máquina formidável de humanidade. conhece muitas?
- obrigado.
- obrigado a ele, o incomparável senhor cohen..
- porque merece que os adjectivos, no seu caso, sejam transformados em substantivos. neste caso, 'incomparável' é nominativo, uma propriedade daquilo que ele é. espero que não me pergunte porque o chamo de 'senhor', minha senhora.
- penso que não é preciso, que todos entendemos. lembra-se de quando travou conhecimento, pela primeira vez, com leonard cohen?
- perfeitamente. por acaso, sim. teria 14 para 15 anos e, num ano muito especial da minha vida de adolescente a caminho de jovenzinho, um professor de filosofia, david de seu nome, emprestou-me uma velhinha cassete com os seus 'personal favorites', as canções de que gostava mais. penso que, pouco tempo depois, me emprestou aquele célebre livrinho da colecção 'rei lagarto' (assírio & alvim), edição bilingue com muitos dos poemas musicados pelo leonard conhen, nos seus discos. amor à primeira vista, se assim se pode dizer. (risos).
- com quinze anos, calculo que, fazendo uns cálculos por alto, ainda apanhou as ondas, ainda que já desvanecentes, da cena urbano-depressiva. é natural que leonard cohen apele a quem, por essa altura, adoptava a tal postura dos modernos e urbanos 'vencidos da vida'. é por aí que surge leonard cohen?
- sim e não. sim, porque o lado denso da música, a importância das palavras, naturalmente que de certa forma rima com os movimentos associados quer ao lado mais 'joy divisionano', quer a bandas de som mais jovial, mas igualmente profundas no sentido último (à cabeça os 'the smiths'). não podemos esquecer ainda um certo carácter grave e solene das bandas da editora 4AD, por exemplo. toda esta predisposição estética (e quase semiótica) naturalmente que ajudou no processo de recepção da música de leonard cohen. quero, contudo, frisar que tal não chega como factor explicativo. leonard cohen levava muitas coisas mais além - curiosamente, sendo cronologicamente anterior a elas. a palavra 'gravitas', o negrume existencial e a catarse permanente do lado mais lunar da existência em geral, e do amor em particular, eram, na altura, coisa nova. já conhecia outras coisas, mas não com esta força, com tal grau de perfeição, se é que é a palavra certa. foi como o olhar que pela primeira vez se cruza com uma catedral, inultrapassável no seu peso metafísico e ao mesmo tempo no seu carácter de construção intrinsecamente humana. ou, dito de outra forma, há coisas que, instintivamente, sentimos que atingiram um grau de exactidão que nos deslumbram e assustam. aqueles sentimentos, articulados daquela forma, musicados naquele registo, cantados com aquela expressividade especial.. não encontrava em mais ninguém. encontrei em poucos mais, passados vinte anos, coisas parecidas, mas sempre um bocadinho aquém. é esta a diferença e é esta a razão da palavra senhor. senhores há poucos. (risos).
- uma provocação: mas é só música..
- pois, pois é. tal como a vida é só vida. e o amor quatro letras. pois.
- era uma provocação..!
- sim, mas não muito inteligente.
- passemos a outra perspectiva: leonard cohen faz sentido para quem tem hoje 15, vá lá, 20 anos? o que acha que uma pessoa desta idade pensa / sente / experimenta, ao ouvir um disco (no MP3, claro) que associa aos 'cotas'?
- a pergunta é um bocadinho melhor, obrigado. uma sugestão: faça a pergunta aos seus filhos ou sobrinhos. mais a sério, acho que um autor como leonard cohen sempre terá o seu público, eventualmente menos, como dizer, 'alternativamente mainstream'. mas que sentido faz questionar o sentido das obras de arte? é como perguntar se kafka faz sentido, ou as pinturas de vermeer ou hopper. todas as respostas serão meramente especulativas, projecção com um olho no retrovisor da nossa própria experiência e, se quisermos ser mesmo exigentes, irrelevantes. o tempo dirá. talvez já não a nós.
- vai ao concerto, amanhã?
- não, senhora. há coisas que é melhor deixarmos como estão. cá dentro, quero dizer.
- medo da desilusão?
- medo da ilusão.
- e da velhice?
- sim, e da velhice. porque não dizê-lo.
- os nossos heróis que envelhecem e morrem, de certa maneira. incomoda-o?
- sou humano, claro que sim.
- algum comentário sobre as excentricidades de leonard cohen, dos seus retiros budistas aos problemas, ao que parece graves e sérios, com desfalques, por parte de antigos colaboradores próximos?
- os mesmos que o senhor cohen faria sobre as suas ou as minhas excentricidades. mind your own business. o senhor cohen é um meio, não tem biografia. é um veículo transmissor do 'great scheme of things'.
- provocação, novamente: paleio 'new age'? é para fazer equipa com os desvarios zen dele?
- você tem alguma piada, há que reconhecer. estava a brincar. a resposta certa é um simples não. não, não tenho comentários. acho que se chama vida, essas coisas que nos acontecem. a nós e a ele.
- sim, mas a si e a mim ninguém nos conhece.
- diga isso lá em casa, aos seus amigos, familiares e colegas de trabalho. teria uma bela supresa. talvez a uma escala mais reduzida e sem cobertura pelos media. mas na sua essência não muito diferente.
- um disco de eleição?
- songs of love and hate. escutem-no. não é bem música, é uma experiência, como hoje se diz. com o marketing certo, teria vendido bem.. (risos).
- e uma ca.. (interrompe)
- canção? se gosto mais do papá ou da mamã? olhe, minha boa amiga, diria assim: há perguntas que não se fazem.
- de onde vem esse seu feitio?
- do facto de pensar que seria desta que a entrevista era inteligente. e de nunca ser desta, no final. mas valeu o esforço.
- (silêncio)
- ah, escreva aí, que o senhor cohen somos nós. é um espelho terrível, porque lúcido e articulado, de tudo aquilo de que temos medo: o vazio existencial, a falta de sentido, o desamor, a errância amorosa, a comédia de enganos, o desespero de certos dias, o frio de certas camas, a inexpressividade de certos pares de olhos, o medo do monstro que vêmos no espelho um dia nos comer. dito de forma especialmente bela, quase religiosa. ou seja, um abismo belo. terrificamente belo.
- (silêncio)
- mas, se acha muito negro, denso, etc e tal, sempre lhe digo que o senhor cohen, por outro lado nos faz sentir que não estamos sózinhos. que, por muito que o neguemos ou que o escondamos atrás do voraz ar do tempo, a todo o tempo outros seres humanos experimentam a mesma angústia. por paradoxal que pareça, isso é lindo, poderoso, solar. uma máquina formidável de humanidade. conhece muitas?
- obrigado.
- obrigado a ele, o incomparável senhor cohen..
1 Comments:
A Verdade exposta, sem mais. Fantástico.
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