07 julho 2008


daniel blaufuks


do crepúsculo se diz muita coisa, como muita coisa se diz de todas as palavras que nos transcendem. o crepúsculo pode ser uma janela temporal, definida pelo cruzamento entre as horas do dia e uma certa combinação de luz e cores no horizonte visual, como pode corresponder a um estado de espírito particular. com retorno (o chamado crepúsculo transitório) ou sem retorno (quando uma espécie de doçura mansa e desencantada anuncia o fim, ainda não exactamente à vista, mas já mais do que um pressentimento). tudo o que tem a remota possibilidade de oferecer dúvida metafísica incomoda. mais vale deixar a coisa sossegada, não vá o crepúsculo olhar-nos nos nossos próprios olhos. diz-se muita coisa do que se não conhece, muita coisa se diz do que é inapropriável.


era mais ou menos a hora em que o crepúsculo reinava majestosamente pelos céus, quando pediu o primeiro gin tónico, numa esplanada-miradouro que, em majestade visual, rivalizava com a beleza desse céu à espera da noite descendente. o gin tónico era uma bebida nova, uma paixão adolescente num mar já adulto - mar alto, portanto -, descoberta de um verão já passado mais ainda próximo. em adolescente, não gostava de gin tónico e lembrava-se bem de ver os amigos gabarem-se das proeza etílicas próprias desses dias de brasa ('bebi sete gin tónicos' e coisas afins). nesses dias, costumava pensar que nem um beberia, nem sequer se lho pagassem, quanto mais pagar por aquela mistela, quanto mais beber sete copos de tal zurrapa.. nesses dias o fósforo estava ainda intacto, e com ele o tempo, e com o tempo aquela coisa das certeza absolutas gravadas na pedra. those were the days of youth.

ruminava nestes pensamentos de bolso, quando o vulto se aproximou. havia seguido a sua movimentação desprovida de ruído pelo canto do olho, mas, fechada a cara num gesto que gritava 'não', pensava estar a salvo. não estava, claro. nunca se está a salvo.

o homem, entre os trintas e os quarentas, de pele uniformemente tisnada pelo sol de julho (ou de outros julhos, talvez), era de estatuta normal, magro (naquele magro seco de carnes), cabelo moreno doirado, mão finas, olhos indefiníveis. andava com cadernos amarrotados, canetas de feltro, marcadores, sacolas - uma panóplia indistinta e improvável - a tiracolo. podia ser um artista levemente detached das coisas do mundo.

- boa noite, atirou naquele jeito swingante que todo o brasileiro por devoção tem.
- boa noite.
- o senhor me desculpe, mas podia me ajudar? estou desempregado e vendo estas coisinhas.. (o olhar acompanhou o rol de objectos, montra improvisada e portátil).
- peço desculpa, mas não, não estou interessado (já a mão remexia subtilmente na carteira, em busca de uns trocos, que ele nunca se habituara a negar o que quer que fosse, desde que lhe pedissem com modos).
sem palavras, tirou umas moedas e estendeu a mão. o outro homem aceitou, sem uma palavra, numa espécie de compromisso tácito que só dois homens que entendem o que é a dignidade podem celebrar sem palavras.
- o senhor sabe, 'tá difícil. não arrumo emprego de jeito nenhum - continuou o homem-que-era-vulto-há-segundos-atrás.
- e o senhor faz o quê? ou melhor, o que sabe fazer?
- pintura. pintor.
- ah, artista..
- pinto paredes, tectos, coisas assim.
- pois, está difícil para todos, nesta cidade. entendo muito bem.

segundos depois, pegou ele na conversa.
- porque, em vez de trabalhar nesse tipo de coisa, não tenta outro emprego? agora, no verão, há muitas esplanadas, cafés, restaurantes que decerto precisam de mão-de-obra. o senhor vá até à avenida da liberdade e comece numa ponta e acabe noutra, sem desistir a meio. ou na avenida almirante reis. aposto que, ao final do dia, encontrou emprego.
- agradeço muito, mas sabe.. estou também ilegal. uma história complicada, talvez se resolva agora, mas complicada.
enquanto pensava no quão complicadas são sempre todas as histórias que lhe chegam, teve um flash e contrapôs:
- escreva num papel o seu telemóvel, se souber de alguma coisa, eu contacto.
- agradeço muito, caro senhor, mas comi meu celular. isto é, tive que vender para poder comer. não tem sido fácil.
- pois, não é fácil. faça assim, procure uma cabine telefónica com número. escreva esse número. procure perceber a que horas do dia tem menos movimento. escreva o número em papelinhos, com indicação de um período de uma hora. esse passa a ser o seu telemóvel, o seu número, uma forma de contacto personalizada e gratuita para si. entendeu?
- sim, sim. entendi. muito obrigado.
- ah, e já agora, telefone-me a dizer o número e a hora. nunca se sabe.
- senhor, muito muito obrigado.

calmamente, o homem fez um leve aceno com a cabeça, deu as boas noites e afastou-se, no seu passo, nem lento, nem rápido.

dias depois, ainda com a memória do raio do gin tónico nas papilas gustativas ('gosto mesmo disto no verão, quem diria..!'), recebeu um telefonema. gentil, mas curto, numa economia notável de palavras que não de educação e cordialidade, o homem do outro dia lá lhe deu um número que ele adivinhou ser de cabine telefónica, e a indicação de uma hora particular. anotou num dos muitos papelinhos que sempre trazia nos bolsos e voltou a mergulhar na sua vida.

as semanas passaram como sempre passam.

brincadeira de um íssimo amigo seu, deu por si num estúdio de televisão. toda a gente lhe dizia que devia fazer vida de ir a concursos. não que fosse particularmente inteligente ou hábil no raciocínio, mas tinha uma espécie de fundo cultural invulgar, que tanto lhe permitia discutir filosofia do século vinte, como falar de generais romanos que o tempo esqueceu, música pop ou analisar todos os melhores jogadores dos últimos cem anos da sua equipa de futebol de eleição. e foi assim, muito contrariado e com promessas de deixar de falar ao seu íssimo amigo, que se viu naqueles preparos, ligeiramente maquilhado, rodeado por carpintaria de feira por todos os lados, luzes a piscar, máquinas de fumo, uma mini-multidão de figurantes de ocasião.

- então é assim um estúdio de televisão. deprimente.. - foi o seu pensamento imediatamente anterior a começar uma música pré-gravada infernal.

o concurso lá seguiu os seus trâmites. com mais ou menos dificuldade, foi passando as etapas, ultrapassando pela esquerda e pela direita os outros concorrentes.

- a classe média deve ser isto - pensava para consigo..

de repente, após o que lhe pareceu um suplício, deu por si, na última pergunta. valia umas massas, não o célebre milhão de verdinhas dos 'estates', mas uma boa maquia, em tradução local, mesmo assim.

- se ganhar, o que vai fazer com o dinheiro?
- nada.
- nada? como assim? não tem sonhos? desejos?
- sim, claro que sim.
- então?
- nenhum deles envolve dinheiro.

a esta altura já o apresentador bem conhecido lutava, num esgar dissimulado, para não se chatear. afinal, o surrealismo não tem lugar em 'prime time'. estes intelectuais 'dandies'.. era todos para o campo pequeno e soltar os toiros. pensamento interessante, para quem sorri com taxímetro ligado.

- pois bem, temos aqui uma pessoa diferente. pense melhor, uma viagenzita, um carrito novo, quem sabe..
- pensei melhor! de facto, sei o que faria ao dinheiro.

o apresentador suspirou de alívio e o brilho voltou a inundar-lhe a face.

- se ganhar, divido-o em mil partes e durante mil noites entregarei uma milésima parte a quem provar merecê-lo.

o apresentador cortou secamente para intervalo. suava copiosamente. coisas dos directos, está bem de ver.

após um curto intervalo, era tempo da 'grande pergunta'.

a pergunta era sobre um pintor da escola italiana, daqueles que das abóbodas fizeram milagres de cor e emoção.

não sabia a resposta, percebeu logo ali. o tema não era o seu forte e, que diabo, alguma dificuldade haveria de existir para poder deitar a unha a tão generosa maquia. conformava-se com a derrota.

- já não tem ajuda do público, já não pode eliminar hipóteses nesta fase do concurso. resta-lhe um telefonema. diga-me, a quem vai recorrer?

a duzentos à hora, pensava para consigo: isto do directo é complicado. baralham-se-me os números na cabeça e dos pré-gravados ninguém domina o tema. e francamente falar em directo para alguém.. que constrangedor.. que dirão amanhã, lá no trabalho? ao menos que perdeu de pé, sem recorrer a ajuda. lembrou-se do general custer, impecável fitando a derrota suprema, em 'little big horn'. era o seu 'hara-kiri' metafísico. na televisão. que pós-moderno.

para disfarçar os nervos daqueles intermináveis segundos de 'countdown', remexia os bolsos. sem querer, já sem se lembrar, encontrou um papelinho com um número de telefone e uma hora. era aquela hora, mais ou menos.

- afinal, quero o telefonema! - disse em cima do limite.
- muito bem, vamos a ele. e quem vai ser o feliz ou a feliz contemplada?
- um amigo. é surpresa.

o apresentador vacilou, uma vez mais. mas, sob a pressão do directo, o telefonema lá se fez.

o resto é história, mito, lenda urbana. do outro lado, atendeu uma voz doce e com sotaque. disse que não se lembrava do nome de quem lhe ligava mas que sim, que conhecia o programa, da mesa de café em que matava as horas. sabia a resposta, era fácil, tinha sido um dos mestres que mais havia estudado, havia anos. que era pintor, daqueles que restauram obras de arte, havia viajado para a cidade para participar no restauro dos frescos de um hotel de luxo. a partir daí, uma série de complicações simplesmente complicaram-lhe a vida. o apresentador, apesar do taxímetro, era um animal de palco, um 'entertainer' maior e logo ali pressentiu o furo. estendeu a conversa o quanto pôde. havia ali história.

quando saíu do estúdio, ligou para a cabine. ninguém atendeu. nunca mais ninguém atendeu. procurou-a, através do número, observou-a dias a fio, contratou um detective privado. nada, o homem que havia respondido parecia ter-se simplesmente desvanecido.

era agora a 365-ª noite em que saía à rua e entregava uma milésima parte do prémio a quem, no seu entender, a merecia (mesmo que por mero palpite, claro está).

com o seu próprio dinheiro, viajou para itália. foi ver com os seus próprios olhos a obra do autor que, por interposta pessoa, havia valido uma resposta certa que por sua vez havia valido um dinheirito jeitoso que por sua vez estaria a valer uma noite decente a mil semelhantes seus a quem o infortúnio batera à porta.

quando os turistas japoneses e americanos começavam a desaparecer, aproveitava aquela meia-hora pré-crepúsculo para se sentar e ali ficar, em silêncio absoluto, olhando aquele tecto tingido pelo dom e pela graça. repetiu 5 dias o mesmo gesto, a mesma intenção, com aquele olhar que só quem cumpre uma promessa tem. ao quinto dia, antes de partir para o aeroporto, descobriu uma coisa: uma das faces pintadas naquele tecto parecia-lhe estranhamente familiar. mas estava muito longe, demasiado longe para a sua visão alcançar com precisão. pediu emprestado um binóculo 'made in taiwan' e..

o resto é história, mito, lenda urbana. acordou num centro médico, nas imediações do museu. na boca, um gosto a gin tónico. na memória, aquela imagem. dentro de si, uma coisa inarticulável.

já no avião, pálido e atarantado, mergulhou no 'ipod' e tentou dormitar. em modo 'shuffle', antónio variações cantava-lhe baixinho ao ouvido: 'dar, dar e receber; dar, dar e receber'.



e foi assim.
contaram-me esta história e eu conto-a agora, a quem teve a paciência para me ler até aqui.
é uma história lisboeta com um travo italiano. ou uma história italiana com um cravo lisboeta na lapela.
quem ma contou, jurou pelos seus santinhos: é toda verdade. que a verdade está sempre nos olhos e no coração, por isso quem pode convencer-nos de que esta verdade é menos verdade do que outra qualquer verdade?


(dedicado ao d., companheiro de tantas horas negras e de outras tantas lânguidas e doces.)

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

a paciência é uma mais valia,quando no final ficamos com um sorriso no rosto,que antes não estava cá...

:)

segunda-feira, julho 07, 2008 4:37:00 da tarde  

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