24 junho 2008

lembras-te da terrinha, com o castelo circular - imaculado, perfeito, solar -, contorno traçado pelo lápis divino?
lembras-te do presépio vivo, pungente memória de longas tarde ao sol (nem sempre fáceis, nem sempre amáveis), quando fazias da vi(d)a-sacra um outro modo de vida?
lembras-te de caminhar, teus passos seguindo o caminho circular interior - interior em sentido múltiplo, como poucas vezes alguma vez esta palavra poderá significar?
lembras-te de recitar em voz alta um dos clássicos gregos, talvez Platão, se a memória, essa improvável meretriz, não falha? e de como nesse dia percebeste, como nunca antes, como nunca depois, o que faz de um clássico um clássico?

sim, eu lembro-me.
passei por lá, em passo motorizado, estugado, fugidio. aquele passo com que tentamos fintar o nosso próprio fantasma (nós-outros-noutro-tempo-nosso).
olhei, muito ao de longe. nas silhuetas que jurava estarem lá, via-nos a nós próprios, como se desta janela aqui nos olhasse nessoutro tempo lá.
sim, eu lembro-me.

e, para ti, para te mostrar que ainda respiro, espalho mais umas palavras ao vento, em memória desses dias ainda solares antes da tempestade que tudo destruiu. e que quase, quase, quase nos consumiu. foi por pouco, mas sobrevivemos. antes vivos e com fantasmas a tiracolo do que____________________________________.

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a memória é agora um montão de brasas fumegantes no meio de uma paisagem desolada. os dias são barcos que se afundam lentamente rasgando a pele do mar, com seu fundo lamento que faz tremer o pano do horizonte.

o ruído da cidade concentra-se na minha cabeça, e anuncia com sua oxidada monotonia o sarmentoso passo da vida. fica para trás a terra ao atravessar esta porta; para trás, muito para trás ficam as vozes afogadas pelo açoite do tempo.

o espelho da noite abre-se às trevas do mundo.

anoitece. a bruma destrói a paisagem onde tem sentido esta casa e deixa-la vazia, oca, esperando que a quietude do momento acolha algum milagre.
o solo que pisas enche-se de fendas.

a recordação é uma arma inútil, o hóspede definitivo de uma fogueira que nunca se apaga. as brasas de outros dias repousam a teu lado vás para onde fores. como é possível que não me tivesse dado conta de que o meu coração também ardia?

o próprio incêndio acalma a tua espera. o eco de um latejar assegura o regresso a uma casa habitável.

que é esta serena força que dilata a alma e a liga à vida?

chega o momento de ver em silêncio o trânsito dos dias felizes até outra morada.

habitamos uma paisagem de cartão onde a vida não é mais do que uma caixa de sapatos esquecida no fundo do armário. um dia descobrimo-la quase sem querer e esforçamo-nos por ver os tesouros que contém: o valor de uma palavra, o calor de um abraço, a vida de um amigo. coisas que não cabem numa caixa de cartão e que, por isso, às vezes fazem estalar as suas frágeis paredes construídas com nomes que o pó vai ocultando.

no que fica do mundo, alguns homens constróem paredes que escoram com madeiras partidas. um deles coloca uma flor num vaso de cristal.

é impossível não ver, a cena repete-se em todas as partes. um sopro de vento destruirá quanto criaram com suas mãos.

para além do bosque a tarde prolonga-se, aguarda uma luz diferente, mais alta.

a casa está deserta neste instante em que a luz se concentra no terraço. pousas delicadamente a tua mão sobre o meu ombro e reconciliam-se estas horas de outono com as densas neblinas de outro tempo. passamos assim os dias, em sua lentidão, pressentindo a frágil frialdade do mundo, sem reparar na poeira escura e húmida que cresce sem remédio à nossa volta.

que rumor é esse que alivia a nossa espera e que faz com que se aninhem aves no peito como o faziam noutro tempo? ilumina-se o mundo com esse gesto simples, com esse tremor da pele nua que nunca foi tão transparente.

às vezes desvanece-se a névoa e é azul e dourada a alegria.



ANTONIO SÁEZ DELGADO, in 'DIAS, FUMO'

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[um dia disseste: estás todo aqui, neste livrinho. isto és tu, isto foste tu que escreveste através de alguém.
sim, eu lembro-me.]