que tristeza, que abandono, que.
a minha musa
é mais casta do que eu
e só bebe água mineral.
furtiva, insolente, caprichosa,
às vezes desaparece-me de casa
durante meses. apetece-me
bater-lhe. mas talvez a culpa
seja minha. passo tanto tempo
a coçar a cabeça ou no terraço
a ver passar os aviões.
é natural que se farte de mim,
raramente estou em casa
quando chega, prefiro dormir
a ver televisão com ela
sentada nos meus joelhos.
amiúde me pergunto
se compensam os tormentos
a que me força.
meteu na cabeça fazer
de mim poeta, quando
o que eu gostaria era de ser
aviador. (mas tenho medo
das alturas, e ela sabe-o.
aproveita-se da minha debilidade.)
obriga-me a ficar de olhos abertos
durante o sono, a estudar os
caninos que a vida me mostra,
o manual dos elementos, a história
calamitosa dos meus erros.
é preciso ter estômago
para tanta solidão. não admira
que muitas vezes a traia
com a helena, com o bourbon
dos amigos, com o voo violeta
do jacarandá no largo do viriato.
mas não adianta, não sente ciúmes,
ela própria me empurra
para os braços do mundo.
é tão exigente, tão snob, tão
tinhosa. por ela, não havia
domingos nem feriados,
não havia verão. era sempre
toda a vida um quarto escuro
com filmes de série B e
uma banda sonora de tiros, soluços,
gargalhadas de teatro anatómico.
marca-me duelos – é louca! –
com temíveis espadachins,
à vista dos quais a minha alma
treme dos pés à cabeça. diz que
me faz bem sangrar um bocado,
que é minha amiga, talvez.
fria, severa, calculadora,
tenta o que pode para contrariar
a minha natureza ruidosa,
paciente, sentimental.
diz que é uma porcaria
escrever com lágrimas, recita
mallarmé, levanta-se de noite
para me rasgar os poemas.
não é fácil aturá-la.
só para me irritar, muda
o nome de todas as coisas:
se vê um massacre chama-lhe
acre de terra lavrada,
vê um mendigo chama-lhe
trigo, vê uma porta
e chama-lhe susto.
às vezes pergunto-me
se não será parva.
a verdade é que não sou feliz
com ela, apenas um pouco
mais solitário.
mas sem ela – vejam que
tristeza, que abandono, que.
josé miguel silva
(e um abraço meu).
é mais casta do que eu
e só bebe água mineral.
furtiva, insolente, caprichosa,
às vezes desaparece-me de casa
durante meses. apetece-me
bater-lhe. mas talvez a culpa
seja minha. passo tanto tempo
a coçar a cabeça ou no terraço
a ver passar os aviões.
é natural que se farte de mim,
raramente estou em casa
quando chega, prefiro dormir
a ver televisão com ela
sentada nos meus joelhos.
amiúde me pergunto
se compensam os tormentos
a que me força.
meteu na cabeça fazer
de mim poeta, quando
o que eu gostaria era de ser
aviador. (mas tenho medo
das alturas, e ela sabe-o.
aproveita-se da minha debilidade.)
obriga-me a ficar de olhos abertos
durante o sono, a estudar os
caninos que a vida me mostra,
o manual dos elementos, a história
calamitosa dos meus erros.
é preciso ter estômago
para tanta solidão. não admira
que muitas vezes a traia
com a helena, com o bourbon
dos amigos, com o voo violeta
do jacarandá no largo do viriato.
mas não adianta, não sente ciúmes,
ela própria me empurra
para os braços do mundo.
é tão exigente, tão snob, tão
tinhosa. por ela, não havia
domingos nem feriados,
não havia verão. era sempre
toda a vida um quarto escuro
com filmes de série B e
uma banda sonora de tiros, soluços,
gargalhadas de teatro anatómico.
marca-me duelos – é louca! –
com temíveis espadachins,
à vista dos quais a minha alma
treme dos pés à cabeça. diz que
me faz bem sangrar um bocado,
que é minha amiga, talvez.
fria, severa, calculadora,
tenta o que pode para contrariar
a minha natureza ruidosa,
paciente, sentimental.
diz que é uma porcaria
escrever com lágrimas, recita
mallarmé, levanta-se de noite
para me rasgar os poemas.
não é fácil aturá-la.
só para me irritar, muda
o nome de todas as coisas:
se vê um massacre chama-lhe
acre de terra lavrada,
vê um mendigo chama-lhe
trigo, vê uma porta
e chama-lhe susto.
às vezes pergunto-me
se não será parva.
a verdade é que não sou feliz
com ela, apenas um pouco
mais solitário.
mas sem ela – vejam que
tristeza, que abandono, que.
josé miguel silva
(e um abraço meu).
4 Comments:
Ao contrário dela, nunca quis ser musa. Mas foi o que sempre fui à distância. Nunca passei disso. As as musas também são de carne e osso e têm também coração...
É caso para se dizer, que tristeza, que abandono, que
das musas e do inatingível.
das musas e do inatingido.
- a condição da musa no seu olimpo: adorada cá de baixo e tão triste, senhora, lá em cima.
que.
(o que vale é que os dias não estão para musas e talvez isso seja bom para elas, de certa maneira oblíqua).
Outro sorriso despontou...
Enviar um comentário
<< Home