todos os dias a mesma meticulosa rotina: levantar às 6.30, esticar as pernas, ainda sentado na cama de corpo e meio, abrir o olhar. de chinelos e ainda em pijama, tratar da higiene matinal com garbo e mão firme. barba finamente escanhoada, a água de colónia importada do oriente - hábito que ficou de outra vida -, o cabelo impecavelmente alinhado. o rosto de clark gable sem o sorriso, poderia quase dizer-se (e diziam-lhe, não raro, nos botecos que frequentava e, ainda mais recorrentemente, nos corredores das bibliotecas). o café e a meia-torrada, preto aquele, quase loura esta. a pouca manteiga e sempre e só manteiga. a colher de açúcar medida com olho clínico, os comprimidos para manter calado o médico amigo. escolher o fato, sempre o fato, entre os 12 naipes escuros possíveis - o preto em todas as suas gloriosas cambiantes, melhor dizendo. as camisas brancas, entre o algodão mais comum, a fina mistura de fibras naturais comprada em londres, o linho solar e setentrional, resquício das antigas índias. gravata escura. sapatos finos e engraxados, polidos, daquela forma que já só as estrelas de cinema usam. um passeio a pé, esticar outra vez as pernas, aquela meia-hora das 7h30 às 8h00, em que a noite passa o testemunho ao dia. voltar a casa, à pequena garagem, resplandecente nos detalhes de limpeza maníaca. sentar, ajustar espelhos e bancos, pela trigésima vez no mês de 30 de dias. dar à chave, acelerar suavemente, confirmar que a mecânica ainda cumpre as leis que a sustentam nos livros técnicos. dar vida ao velho ford galaxy, reluzente como se acabasse de sair de um museu onde fosse estrela maior, e assim merecesse todos os cuidados. navegar pela cidade, o tempo suspendido, o 'suspension of belief' activo (aquele mecanismo que no cinema nos permite acreditar e, assim, sentir o que estamos a ver, sem estarmos sempre a pensar nos inescapáveis mecanismos de simulacro). conduzir com souplesse. imaginar sair da mulholand drive directamente para os altos e baixos de são francisco, daí passar para as curvas do mónaco, para o ruído geométrico de nova iorque - e algures cruzar o rio de janeiro, ali mesmo, do outro lado do rio tejo. a geografia também suspensa. navegar, o acelerador impassível, a caixa de velocidades por usar, o trânsito desviando-se a cada cruzamento, as auto-estradas libertas. olhar pela janela a meia-haste, o rádio obsoletamente belo, sempre na estação certa. a música a meia-voz, a constante adequação da banda sonora ao estado de espírito de cada lugar já lá atrás.. rasto de luz e som, nitidez contra fundo difuso, graciosidade cinematográfica, poetry in motion, como naquela canção antiga do cliff richard ainda jovem e ainda não sir (sim, mais vale ser-se um senhor intenso que mais um sir por extenso - sorrir com o naif humor interior). pelo caminho, reparar nos que choram. e são tantos, tantos. dar novos usos à álgebra, querer ser o senhor da subtracção ou, pelo menos, da mais justa e talvez possível divisão. oferecer o perfil, no fato lustroso e elegantemente escuro, a quem olha de fora aquele carro como nenhum outro. aquele carro - sussurra-se - que navega as ruas, as estradas, sem uma oscilação, uma hesitação, um gesto mecânico brusco. todo ele é continuidade, serenidade, um flow ininterrupto. abrandar nos semáforos, soprar e pegar-lhes as cores do arco-íris, fazer deles uma coisa outra. voltar aos que choram e estender a mão, ainda dentro do carro, curando-os de si próprios. fazer da rotina uma missão, transformar a banalidade na excepcionalidade, fazer, dia após dia, florir os milagres em cada esquina - fazer disso normalidade. conduzir de volta a casa, àquela garagem exacta, à casa frugal. passar na biblioteca ou na universidade ou no boteco - declinações de uma única e mesma coisa. cumprimentar os amigos, os companheiros de rotinas materiais e afagos existenciais. de volta a casa, despedir-se do fiel ford galaxy dos anos sessenta, acariciar o seu corpo encerado, dizer obrigado por nunca me falhares, nem nos dias feriados e nas cinzentas tardes de domingo. entrar em casa, fazer a lida necessária, preparar o jantar, por entre bach e miles davies. na mesa de mistura - discreta marca de modernidade num tempo há muito sem calendário operativo -, criar uma música nova, talvez a voz de Deus. olhar os livros em volta, a segurança dos livros em volta. fechar os olhos, fumar um cigarro aromático como já só no sri lanka se encontra. imaginar mundos. e pensar: se isto não fosse possível, como seria feia a vida. nesse mundo alternativo, haveria talvez um ford galaxy moderno, de novíssima geração. e fatos coloridos, de fibra sintética. haveria música? haveria café forte e preto? haveria aquele tabaco chegado de outros impérios? haveria a frugalidade como verbo? haveria milagres, como os que, dia após dia, acontecem? seria possível curar os outros de si próprios? a resposta, as respostas, nunca as conheceria - sabia isso muito bem. afinal, esse mundo que dentro da sua mente congeminava, era mera especulação. nunca o saberia. mas não se importava, viveria sem nada, em qualquer sítio e em qualquer tempo. aos demiurgos improváveis apenas uma coisa pediria: que não lhe tirassem o velhinho ford galaxy, companheiro de todas as horas. sem ele, como poderia fazer os meus milagres? até sem milagres ele viveria. mas.. e os outros.. mas.. e os outros?
adormeceu em paz.
4 Comments:
O máximo! o máximo! genial.
É como se um dia fosse a repetição clonada do que o antecede. Os meus dias também são assim. Concordo contigo, que da banalidade consegue-se também extrair a excepcionalidade, porque há coisas pequeninas que só se revelam a nós, os que erramos sózinhos. Fumemos outro cigarro juntos esta noite. Dois estranhos e dois cigarros solitários.
dois estranhos, dois cigarros. e a valsa do imenso adeus começa já, na mera e improvável possibilidade de qualquer encontro.
ainda agora te conheci - a ti que não conheço - e já te perdi.
afastemos o cabelo desalinhado, inspiremos longamente, jazzisticamente, uma baforada de um cigarro. lá em cima, as estrelas. e, no fumo de um cigarro imaginado, como nas velhas chícaras de chá orientais, impérios nascem e impérios morrem. crisálidas entontecidas à solta, borboletas feridas de morte, a irrelevância da beleza. e, contudo, algures numa esquina de uma palavra, algures por entre a intersecção do fumo e os lábios de alguém, algures na quadragésima pauta incompleta num museu dedicado a bach, algures num elevador de paris onde ainda brilha a jeanne moreau que amámos intensamente em noventa minutos, algures em todos estes sítios, espécie de constelação, quase quase vislumbramos um sentido. e nessa fracção de segundo, nesse instante fulminante, o rosto abre e, ali ali ali, vemos que, afinal, vale a pena. ou quando fazemos amor e rebentamos a chorar, o mais próximo que estivémos de sair daqui, deste turvelinho rasca e sem história. desmentir jorge de sena ('não há como acabar com a porra desta tristeza' - citado de cabeça e actualizado para o jargão actual).. isso é que era.
perdidos no sonho do centeio, à espera, à cata, vasculhando lixo e luxo, ideias e feitos, grandiosidade de fancaria, quase quase quase que estivemos lá.
fazemos o que podemos e pedimos desculpa por não fazermos acontecer milagres. voltamos ao cigarro, voltamos ao computador, pousamos. ground control to major tom, the circuit's dead, can you hear me, can you hear me, major tom..
tell my wife / tell my life
i love her / them very much
she knows / they now.
dois estranhos, dois cigarros solitários. e, quase jurávamos, que uma borboleta parou no ar e, descrevendo uma impossível série de loops, disse:__________________
__________________________________
flores.
gi.
notinha
um bocadinho desarrumada. quase suspensa. quase embaraçada.
(dentro e fora de tempo)
mas é que há linhas de palavras tuas que se precipitam para dentro de nós
letra a letra .... e sem que o corpo aprenda (que não aprende nunca mas isso tu já sabes) a arte da fuga.
brilho cortante.
brilho cortante.
brilho cortante.
aqui.
aqui.
aqui.
olha gi...
voltinha de ford galaxie
mar adentro,
um dia destes, em geito de grito
roubado à vida.
beijinhos e assim
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