13 fevereiro 2008

da janela do carro, descendo a íngreme avenida, o trânsito obriga a abrandar, naquele típico pára-arranca lentíssimo de certas horas em certas cidades. do lado de fora dos serviços públicos, o olhar meio perdido e o corpo vergado (desistente ia escrever, por amor à verdade, mas estes tempos não estão nem para a verdade nem para o amor, quanto mais para..), o bigode toscamente escanhoado, o cabelo em desalinho, o rosto fechado, a roupa já só no limite da dignidade, a meia-idade naquela idade em que pesa pela idade toda, todos os indícios coerentemente apontando numa direcção. se fosse um produto, dir-se-ia perfeito no seu 'marketing-mix' completamente harmonioso, tristemente harmonioso, desgostosamente consistente. encostado ao murete que suporta a grande janela do lado de fora, o homem parece um homem emoldurado. por moldura a sinaléctica do serviço-repartição, encabeçada, à laia de legenda, por um slogan daqueles que as centrais de comunicação criam a velocidade sónica e abandonam a velocidade super-sónica: 'igualdade de oportunidades'.
(ainda bem que o trânsito obriga a acelerar o passo motorizado. permanecer ali seria insuportável - pensamos como sempre pensamos; e fazemos como sempre nada fazemos).

da janela do carro, parado nos semáforos que se espreguiçam na manhã, vemos o rapaz de todos os dias distribuir pelas janelas entreabertas dos outros carros o gratuito jornal d'ocasião. o rapaz é gingão, hábil na dança por entre os carros, como se fosse toureiro numa praça cheia de animais bravos, vencendo-os uma e outra vez com graciosidade e souplesse. entretido com o leitor de mp3, imagina-se vencendo na arena, a glória dos aplausos, o bruá reservado aos vencedores. o rapaz, por certo acabado de desferir mais um golpe certeiro no touro com estrela na ponta do 'capôt', acerca-se da carrinha de nove lugares que está ao nosso lado. nos 20 segundos seguintes, o vidro do lado do pendura, baixa generosamente e, lá dentro, percebemos irem três, quatro, meia-dúzia de pessoas de idade avançada. o rapaz inclina-se para dentro do vidro e esquece por momentos o bruá do público que nas bancadas da arena clama por ele, pela sua arte quase tauromáquica, pela sua elegância 'in motion'. pergunta 'como está a senhora; então e a sua filha; então e..', numa sequência de perguntas com resposta, que denotam respeito, atenção e carinho. no carro ao lado, perguntamo-nos como é possível, em tão poucos segundos, nas sequências aceleradas de contactos brevíssimos para mera entrega de um jornal, estabelecer AQUELE tipo de contacto, AQUELE tipo de relação. o cérebro, esse gajo frio, pensa logo em hipóteses: 'por certo que se conhecem de outro lado, seria impossível', por entre outras hipóteses que tentam arrumar o sentido e a (im)plausabilidade do que acabámos de ver.
(ainda bem que o trânsito obriga acelerar o passo motorizado - permancer ali seria, mais do que suportável, um imperativo categórico. e isso, e isso meus caros, obrigar-nos-ia a, à maneira de sempre, a agir. e, todos o sabemos, os tempos não estão para grandes acções, principalmente daquelas que são dignas de caixa alta).

quando a lenda ultrapassa os factos, publique-se a lenda. john ford colocou esta frase célebre, um quase aforismo, na boca de uma das suas personagens, como o seu cinema todo, 'bigger than life'.
quando o coração vê mais do que o cérebro, publique-se em letra de sangue. vermelho e quente. torrencial. providencial. letal.

2 Comments:

Blogger Abssinto said...

Grande "curta". Havias de escrever mais disto, Gi. abraço

quinta-feira, fevereiro 14, 2008 12:35:00 da tarde  
Blogger Nuno Guronsan said...

E falando em corações bigger than life, o teu, meu caro, é bem grande e as palavras que debita são de uma beleza que (me) nos arrebata da primeira à última letra...

Faço minhas as palavras do Abssinto (outro que tal...), tens mesmo de fazer isto mais vezes...

Abraço.

quinta-feira, fevereiro 14, 2008 8:00:00 da tarde  

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