no início dos anos oitenta, ao passar da quarta classe para o antigo 'ciclo preparatório', iniciei uma fase importante da minha vida, a qual consistia, em termos muito simples, na frequência de estabelecimentos de ensino fora da minha localidade, normalmente a cerca de 20 kilómetros. passei os 7 anos seguintes (do 5-º ao 11-º ano) nesta espécie de rotina: acordar bem cedo, stress familiar com a logística matinal, ir a correr para a paragem do autocarro, aguentar o frio não raras vezes a rondar os zero graus, meia-hora de viagem e, por vezes, de folia, chegada às aulas pelas 8h20 / 8h30. regresso a seguir ao almoço ou, em certos dias de certos anos escolares, ao final da tarde.
voltando ao início dessa fase da minha vida, para uma criança com 9 para 10 anos, ver-se de repente numa escola com meninos e meninas às centenas, vindos de todos os arredores da vila (hoje cidade) que constituía a centralidade do concelho, foi um pequeno choque. sem nada de anormal, mas mentiria se não dissesse que custou esse período de habituação, para mais feito sózinho, uma vez que nessa altura, por obra e graça da famosa 'telescola', nenhum dos meus amiguinhos me acompanhou na aventura (juntar-se-iam dois anos depois, na transição para o 7-º ano, o que muita alegria me deu - o 'gang' estava de volta!).
nesses dois anos em regime quase solo (olá pedro, olá paulo, olá jorge - os meus amigos da altura que, apesar de mais velhos ou mais novo, no caso do último, me ajudaram a adocicar esses tempos em que me faltavam companheiros de brincadeira), lembro-me muito bem do senhor antónio.
o senhor antónio era o cozinheiro da cantina dessa escola e vivia não longe da nossa casa de família - era 'um dos nossos', por assim dizer.
conhecia o meu pai e, adivinho hoje, não me espanta que o meu pai tenha pedido ao senhor antónio para 'deitar-me um olho', de vez em quando. talvez imbuído dessa responsabilidade, um dia, ao ver que eu não ia à cantina (penso que para aproveitar a hora de almoço em passeios exploratórios clandestinos pelas redondezas - descobrir o mundo..), veio ter comigo e perguntou-me se havia algum problema, se era bem tratado, coisas assim.
quando mudei de escola, do 6-º para o 7-º, ainda que na mesma localidade, as minhas irmãs (mais novas) fizeram o mesmo circuito. dessa vez, por vezes o senhor antónio dava-lhes boleia, no seu carro de sempre: um humilde citroen ax azul escuro.
ao longo dos anos e já reformado, dedicava-se a uns trabalhos no campo, entre outros afazeres próprios da vida numa aldeia da beira alta. à porta de sua casa, passava uma estrada - hoje quase 'mainstream', mas durante muitos anos um mero atalho em terra batida -, que eu usava para poupar tempo e/ou fazer umas curvas mais 'racing', aproveitando as potencialidades do tal piso em terra batida. via-o muitas vezes, pelo canto do olho. outras tantas, via-me ele a mim, que passava já crescidinho, e acenava, cumprimentando-me e eu a ele, naquele ritual que só quem viveu fora das grandes cidades conhece.
nunca mais falámos - de conversar.
..
ontem, em conversa familiar de ocasião, soube que o senhor antónio morreu há quinze dias.
fiquei quase transtornado, sem perceber bem porquê.
ao conduzir para o trabalho, há pouco, lembrei-me de uma coisa. diz assim (e todos vós a reconhecerão, melhor ou pior):
bem-aventurados os que dão a mão ao mais pequenino dos meus irmãos, porque deles é o reino dos céus.
é só isto que tenho a dizer.
um abraço, senhor antónio. até sempre. e muito obrigado pelo conforto que nos deu, quando dele mais precisávamos.
voltando ao início dessa fase da minha vida, para uma criança com 9 para 10 anos, ver-se de repente numa escola com meninos e meninas às centenas, vindos de todos os arredores da vila (hoje cidade) que constituía a centralidade do concelho, foi um pequeno choque. sem nada de anormal, mas mentiria se não dissesse que custou esse período de habituação, para mais feito sózinho, uma vez que nessa altura, por obra e graça da famosa 'telescola', nenhum dos meus amiguinhos me acompanhou na aventura (juntar-se-iam dois anos depois, na transição para o 7-º ano, o que muita alegria me deu - o 'gang' estava de volta!).
nesses dois anos em regime quase solo (olá pedro, olá paulo, olá jorge - os meus amigos da altura que, apesar de mais velhos ou mais novo, no caso do último, me ajudaram a adocicar esses tempos em que me faltavam companheiros de brincadeira), lembro-me muito bem do senhor antónio.
o senhor antónio era o cozinheiro da cantina dessa escola e vivia não longe da nossa casa de família - era 'um dos nossos', por assim dizer.
conhecia o meu pai e, adivinho hoje, não me espanta que o meu pai tenha pedido ao senhor antónio para 'deitar-me um olho', de vez em quando. talvez imbuído dessa responsabilidade, um dia, ao ver que eu não ia à cantina (penso que para aproveitar a hora de almoço em passeios exploratórios clandestinos pelas redondezas - descobrir o mundo..), veio ter comigo e perguntou-me se havia algum problema, se era bem tratado, coisas assim.
quando mudei de escola, do 6-º para o 7-º, ainda que na mesma localidade, as minhas irmãs (mais novas) fizeram o mesmo circuito. dessa vez, por vezes o senhor antónio dava-lhes boleia, no seu carro de sempre: um humilde citroen ax azul escuro.
ao longo dos anos e já reformado, dedicava-se a uns trabalhos no campo, entre outros afazeres próprios da vida numa aldeia da beira alta. à porta de sua casa, passava uma estrada - hoje quase 'mainstream', mas durante muitos anos um mero atalho em terra batida -, que eu usava para poupar tempo e/ou fazer umas curvas mais 'racing', aproveitando as potencialidades do tal piso em terra batida. via-o muitas vezes, pelo canto do olho. outras tantas, via-me ele a mim, que passava já crescidinho, e acenava, cumprimentando-me e eu a ele, naquele ritual que só quem viveu fora das grandes cidades conhece.
nunca mais falámos - de conversar.
..
ontem, em conversa familiar de ocasião, soube que o senhor antónio morreu há quinze dias.
fiquei quase transtornado, sem perceber bem porquê.
ao conduzir para o trabalho, há pouco, lembrei-me de uma coisa. diz assim (e todos vós a reconhecerão, melhor ou pior):
bem-aventurados os que dão a mão ao mais pequenino dos meus irmãos, porque deles é o reino dos céus.
é só isto que tenho a dizer.
um abraço, senhor antónio. até sempre. e muito obrigado pelo conforto que nos deu, quando dele mais precisávamos.
4 Comments:
...
também não sabia!
:-((
..
gi.
às vezes sinto-me indigno de merecer a tua amizade.
por ela, enquanto tua escolha consciente e pela tua coragem, como se diria nessa aldeia, BEM HAJA
até sempre
"Onde quer que encontre uma criança, derrame sobre ela todo o seu carinho, estenda-lhe a mão para ajudá-la a crescer.
Em cada criança, existe um dia novo que surge para a felicidade do mundo.
(...)jamais olhe com indiferença para uma criança: facilite ao máximo a estrada que ela vai percorrer e semeie de flores o caminho que ela palmilhar."
uma página ao acaso de 'minutos de sabedoria' de c.t.pastorino
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