23 maio 2007

poetas cá de casa: albano martins

cumpro o meu destino como qualquer fonte

albano martins (nascido em 1930) é um poeta que descobri não há muito tempo e, começo por dizer, que me encanta intensamente.
lida alguma da sua (extensíssima) obra - muita da qual permanece na penumbra, por obra de edições de cariz quase regional, com tiragens e circulação muitíssimo circunscritas -, é absolutamente claro o seu percurso poético. como se de um ofício se tratasse, a sua prolixidade corresponde a um 'fazer da mão', a uma procura continuada e incessante da direcção (que não do sentido).

não sou especialista em literatura, apenas posso escrever a partir de 'impressões e emoções'.

diria que se cruzam múltiplos vectores na poesia de albano martins, sendo que, por paradoxo, dessa complexidade resulta em última instância uma simplicidade formal e de 'tese' - as suas obras recentes apontam para uma linguagem enxuta, descarnada, dando voz a um discurso recorrente (facto não incomum em muitos outros poetas e escritores 'tout court'), ainda que diverso no veículo-poema. como se a obra fosse um permanente 'work in progress', partindo do mais para o menos (estilisticamente), até que a redução à essência faça a sua aparição. exercício brilhantemente conseguido, em minha opinião, nos livros editados a partir da transição de século (1999 até aos nossos dias).

que elementos encontramos nesta poesia?

-falámos acima de um caminho rumo ao despojamento. impossível resistir a um certo travo orientalista - zen? -, feito de elementos simples, jogos tridimensionais em que só importa o homem, a natureza e a própria escrita. é entre esta constelação que se inscreve o sentido universal e metafísico; é esta a constelação que (d)escreve esse mesmo sentido;

-uma propensão para o aforismo. pequenos poemas completos parecem máximas em formato final e perfeito, como se fosse uma espécie de 'sabedoria universal e intemporal' que nos falasse através desta poética;

-simbolismo mesclado de uma espécie de candidez telúrica. a terra, a natureza, as plantas, o corpo: figurações a um templo extremamente simples e contudo fulgurantes. uma espécie de 'back to basics', como último reduto da verdade, do sentido. e, uma vez mais de forma aparentemente contraditória, uma figuração da complexidade pela extrema simplicidade;

-uma claríssima ética e um subtil (e puro) erotismo.

já vão longas as palavras. fiquemos com alguns exemplos do que atrás se quis canhestramente dizer, ilustrados por aquilo que importa - a poesia em si. todos os poemas foram extraídos dos seguintes livros:

'escrito a vermelho' (1999)
'assim são as algas' (2000 - antologia)
'palinódias, palimpsestos' (2006)

- todos editorial campo das letras


vim
para saber
se eras tu
a quem dei
o meu nome

que não
que não sabes,
dizes.
também
a água não sabe
e nunca
diz não, e nunca
se desdiz.

lembra-te: ainda há pouco
havia à beira
do caminho
algumas pétalas. agora
há lama e nela
afundas os sapatos. e outro
caminho não conheces. e outro
também não há.

à maçã
não lhe perguntes
quem é.
outra forma
não há
de lhe reconhecer
o sabor

não digas
beijo, diz a boca. não
digas rio, diz a fonte. diz
apenas.

quando a porta se abriu,
perguntaste quem era.
não se pergunta ao amor
que nome tem.

pertence-te
ser homem, afirmar
todos os dias que tens
um compromisso: ser claro
e brando como a luz
e, como ela,
necessário. e não deixar crescer à tua porta
ervas daninhas.

assim me deito
sobre a ternura
este é o meu leito
e a minha lura.