17 abril 2007

short story (a ghost story)

nunca como nos últimos tempos, tinha tido tanta dificuldade em ter uma ideia. um esboço de uma ideia. um início de uma ideia. para quem vive das ideias - ou da transformação das ideias numa coisa a que chamam script no seu jargão profissional -, as coisas não estavam a correr bem. definitivamente.

tinha tentado de tudo. escrever de madrugada, escrever durante o dia, escrever ao desvanecer do dia. escrever à mão, escrever no computador, ditar para o pequeno gravador de voz que recuperou do fundo de uma das suas muitas gavetas. tentou escrever enquanto via televisão, tentou escrever enquanto escutava as sonatas de bach, tentou escrever enquanto lia poesia em doses industriais. tentou escrever deitado no sofá, sentado na cama. em casa, na praia, no alpendre. mas nada parecia funcionar. não acreditava no famoso e tão glosado 'bloqueio do escritor'. talvez porque não se visse a si próprio como escritor, tão-só um assalariado das letras, uma espécie de mercenário bem pago, como são todos os mercenários, sempre impecavelmente vestido nos seus cinzentos-preto - que mudavam para pretos-cinzento, quando queria estar mesmo 'au point'.

andava nesta tentativa de colocar a criatividade ao serviço da criatividade, desconhecendo porventura o sentido matemático da dupla negação, fazia semanas. a par deste seu esforço, procurava não esquecer o bê-à-bá do bom guionista.. ter sempre à mão papel e lápis. ou qualquer outra coisa que sirva para registar um pensamento, uma pista, uma especulação racional ou uma centelha emocional, normalmente as fontes de onde jorra o caprichoso fio da escrita de ficção.

nessa noite, como de costume, pousou o caderninho de apontamentos e o lápis de ocasião na mesinha de cabeceira. puxou do livrinho mais à mão - uma tentativa de tradução recente para a sua língua de um dos obscuros poetas portugueses que aprendera recentemente a apreciar - e, em menos de um fósforo, adormeceu.

não se lembrava muito bem, horas depois, enquanto acordava, de todos os sonhos que tivera. enquanto rapaz, passava dias acordado a sonhar (isto é, desperto da 'vida sem graça'); agora, já mais velho, dava por si a sonhar noites a fio. sorrira mais do que uma vez com esta espécie de troca (- a idade é tramada..). trocara-lhe, no fundo, os seus sonhos solares (sonhos de futuro) por sonhos nocturnos (sonhos já só especulativos). e tinha uma certa piada pensar que era esta mesma pessoa, este mesmo homem, que passava os dias a tentar criar sonhos para os outros. vidas cheias de pedigree, aventuras existenciais, amigos para sempre, mulheres fatais, efeitos especiais que adornavam existências de outra forma pouco mais do que banais. e nada há de pior do que a banalidade. era assim - e por isso - que se tinha tornado o mestre das personagens impossíveis; só ele, o alquimista do alfabeto, detinha o segredo dos diálogos que varrem uma plateia, das metáforas linguísticas que entontecem de emoção o chefe-de-família cinquentão por entre as frestas do jornal, espreitando a televisão. só ele possuía o dom de encantar, criando artifícios poderosos, argumentos imbatíveis, vidas literalmente de sonho (para melhor servirem os seus metafóricos propósitos).

não se lembrava particularmente bem dos sonhos dessa noite. lembrava-se, contudo, de que, algures durante o estado de vigília, se ter quase levantado e, mesmo sem ver, rabiscado qualquer coisa no caderninho. enquanto tomava progressiva consciência deste facto (?), as suas mãos procuraram ávidamente o papel, na esperança de que, finalmente, as palavras rabiscadas fossem, enfim, a tão procurada inspiração.

não sem uma ponta de emoção - que sempre o acompanhava quando escrevia algo que lhe parecia mesmo bom; ou tão-só quando lhe ocorria uma pista mental para uma ideia que o tempo viria a demonstrar estar à altura dele próprio e da lenda viva em que se havia tornado no meio em que vivia -, dirigiu os seus olhos para as marcas impressas dessa madrugada. e, sem esperar, de um frémito, leu o que antevia ser, sem dúvida, a sua próxima grande ideia. o velho instinto tardara, mas, como um fiel amigo, não falhava:

boy meets girl
boy loses girl
boy gets girl back


(ele há coisas que fazem espécie).

1 Comments:

Blogger Nuno Guronsan said...

Clássico...

A ideia e as palavras que ficaram para trás. Bonitas, as usual.

Abraço, Gi.

terça-feira, abril 17, 2007 4:34:00 da tarde  

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