20 abril 2007

era um país, como dizer, de espuma. era um país inventado todos os dias. um país que era só espaço; e que era só tempo. nos intervalos era outra coisa qualquer, mas uma coisa qualquer naquele sentido que é só puro sentido. e assim era sentido, do verbo sentir, sen-t-ir (tu, sem ter que ir a lado nenhum - tu, sem ter que sair de mim). era um país e uma casa, como dizer, de bruma. de bruma matinal que aparecia pela tarde, de nevoeiros tardios que apareciam cedo, de fumos de outro tempo que apareciam sempre a tempo. era, como dizer, a bruma de uma casa que era em si um país. na bruma desta casa deste país havia uma cama. uma cama, como dizer, de ternura. de ternura pela cama, pela casa, pelo país - e pela bruma. era uma ternura-bruma que se infiltrava por todos os espaços e por todos os tempos; era uma ternura sem geografia, meridiano ou equador. era só ternura a cama (que era uma casa (que era um país)). era uma ternura colorida, fragmentos de todas as cores inventadas por todas as crianças por inventar. uma ternura feérica, que é uma palavra que é uma cama. que é uma casa. que é um país. de bruma e ternura - e voltamos ao princípio, era só ternura. e nessa cama havia um corpo que eram três corpos. e esses três corpos - que eram uma bruma de ternura (ou uma casa; ou um país) - eram um homem, uma mulher e, a ordem não é o mais importante, um terceiro corpo etéreo. quer dizer, tinha as coisas que os outros dois corpos tinham, mas tinha mais uns pózinhos. há quem diga, e sempre assim foi, que esse terceiro corpo era só ternura. outros diziam que tinha a densidade da bruma, quando a bruma invade cada fresta da nossa cidade interior. havia também quem dissesse que era uma outra coisa - toda uma casa, um projecto de casa, reduzido à sua essência. todos os futuros numa coisa sem peso, quase imaterial. era um projecto poético, uma casa poema, um lar (palavra que já nos habituámos a não frequentar). mas havia quem fosse mais longe e visse ainda (e jurasse que via) todo um país (ou mesmo todo um universo) nesse terceiro corpo (que continha os outros dois mas, como já vos disse, era uma coisa outra). nesse projecto havia passáros pela manhã, havia café - sempre preto-preto, sempre forte-forte, sempre aromático-aromático -, havia música, muita música. livros de poesia espalhados pelo chão e sempre à mão, em cada recanto. havia ensaios visuais - esquissos, esbossos, tentativas, ensaios - espalhados pelas paredes. havia sempre fruta - laranjas, tangerinas, clementinas, essas frutas que são fruto das árvores que têm flores brancas (e que cheiram e sabem a futuro). e queijo no frigorífico. é altura de dizer que o frigorífico era dos poucos electrodomésticos dessa casa (que era um país, se bem se lembram) - era, portanto, um país de nova geração. um país sem desperdício, um país que dava de si, para que outros pudessem ter. um país utópico, como os colonos que demandaram as américas procuraram fazer, terra de sonho e de oportunidades. mas sem liberalismos desenfreados, que a política também é chamada para todos os países (que era uma casa, lembram-se?). neste país novo - diferente, único - as portas estavam sempre abertas, não se sabia o que era televisão (quer dizer, sabia-se, mas não se fazia dessa consciência de se saber uma necessidade de se ter). nesta casa, havia mil - juravam as visitas - candeeiros. escolas de design de todo o mundo procuravam, em vão, organizar excursões de jovens estudantes, havia anos. nesta casa, para além de candeeiros, havia também muitas cadeiras - a última das quais trazida do butão, esse longínquo reino dos himalaias. e vinho, vinho do mundo, vinho de todo o mundo, vinho que alimentava serões frugais - pão fresco caseiro, umas fatias de queijo, um bolo daqueles que sabem às nossas avós, café, pouco mais. de vez em quando, uma sopa e uma salada, uma peça de fruta. era uma casa-país, que tinha nela 3 corpos-projecto. uma casa de bruma e ternura, se bem estão lembrados. era uma casa, como dizer, interior. e era também uma casa gémea. gémea porque, embora situada no interior, era uma casa com vista para o mar. não muito longe dali, mas suficientemente longe dali, havia uma outra casa, gémea ou réplica da nossa casa interior. uma casa com o mesmo projecto de arquitectura, com os mesmos objectos, com a mesma ternura, apenas deslocada no espaço e no tempo, em função dos três corpos (que eram uma mulher, um homem e um terceiro corpo que era tudo o que eles eram e mais - estou certo de que estão recordados). estas duas casas, ambas interiores, eram o espaço de variação, a latitude e a longitude suficientes para que as camas fossem afinal a mesma cama; a casa afinal a mesma casa; o país afinal o mesmo país. era, como dizer, física e química em estado puro - uma obra de arte total, um pedaço de humanidade total, um projecto total. plural no singular, singular nesse plural-ele-mesmo-singular. era, como dizer, um sonho total. e eram as estações do ano, os risos das crianças dos amigos que os visitavam enchendo esse sonho. era a coragem, um monumento íntimo à coragem de se abdicar do passado para se apostar na elevação, na ascensão pela redução ao essencial - menos como mais, finalmente vivido. era, como dizer, um mundo feito de portas e janelas, um mundo que não mais se preocupava com a felicidade, quando podia escolher a alegria. um mundo-país-casa-cama-bruma-sonho, naquela curva que há muito procuramos em que as palavras deixam de ser o mais importante.

e onde as palavras que até vós levam este mundo nascido de uma gota de água que me abraçou esta manhã são uma tosca, inábil, imperfeita, impotente forma de dizer o indizível: um país por dizer, este país que trago dentro de mim; estas casas que me correm nas veias; estas camas em que respiro; estes corpos em que me projecto. um mergulho a pique no 'coração do sonho' de que falava o al berto, por entre auto-estradas que rasgam o peito, despojos avulsos da ternura em que me afundo e partículas da poesia de que me inundo.

chegar ao único sítio que importa.
o resto é a espuma dos dias.