16 abril 2007

do amor kamikaze

este fim-de-semana fui ao cinema. apetecia-me muito ir ver um filme recém-estreado, chamado 'climas', vindo da, cinematograficamente quase desconhecida, turquia.

que se passa neste filme? acompanhamos uma história muito simples - uma narrativa exterior em progressão linear, diríamos - que nos mostra, do exterior, a evolução dessa outra história ('o plano interior'): a relação amorosa entre um homem e uma mulher.

não é injustificado, como faz parte da crítica, associar este cinema a nomes sagrados como antonioni (o exterior que simboliza o interior das personagens) ou bergman (na dureza-justeza da máquina cinematográfica, seca e sem contemplações por aquele homem e aquela mulher).

a narrativa mostra-nos 3 estações de uma relação - que nos remetem para 5, uma vez que entramos de rompante numa cena que 'vem de trás' (há um passado) e saímos para um futuro. é, pois, um cinema de passagem o que nos é dado ver. como, se por momentos, quais deuses ou demiurgos, pudéssemos dar corpo a à expressão 'gostava de ver como as coisas acontecem'.

os 3 'actos' mostrados no filme revelam-nos:

a) umas férias de verão, algures no litoral turco, subitamente interrompidas pela 'consciência da perda' (algo que não funciona, os diálogos que não fluem, os silêncios que ganham expressividade);

b) o outono chuvoso em istambul. agora sózinho, o protagonista deambula pela sua (nova) vida. acompanhamos as suas rotinas - episódica amizade com um um colega-professor na mesma faculdade onde dá aulas de arquitectura; a preparação das aulas; a visita às livrarias da cidade e esse sintomático retomar de uma (antiga, percebemos) relação carnal com uma outra mulher (vinda do passado, portanto); é tempo de chuva, que cai sem parar e de céus cinzentos;

c) o terceiro andamento passa-se numa cidadezinha do interior, sob um manto de neve e um frio que enregela os ossos (e a alma). neste retiro emocional, talvez numa expectativa de que o frio congele o coração, para melhor o preservar das agruras, a ex-namorada do nosso homem vai trabalhando, há longos meses, na rodagem de uma série de televisão. o protagonista, no que parece ser um impulso, vai ao seu encontro, de forma desajeitada mas que nos parece urgente, em busca de uma reconciliação, um recomeço ('sou um homem novo', 'mudei muito nestes últimos tempos' - diz-lhe ele).

assim descrito, nada vemos de especial. quantas vezes foi filmada esta história ? quantas vezes nos foi mostrada este linha narrativa ? e no entanto..

e no entanto é um filme que nos mostra uma coisa como se a víssemos pela primeira vez. há uma secura em todo o filme, uma quase ode à banalidade insuportável - para nós que a vemos em progressão - com que se decompôe uma coisa que raia simplesmente o milagre: o amor entre um homem e uma mulher, o 'plot' simples e mais complexo de toda a história do cinema (como da arte):

alguns elementos superlativos do filme:

a) os rostos. aqui estamos no domínio de bergman em estado puro. diálogos banais (realistas, logo) são acompanhados por uma expressividade em estado de graça. a protagonista mostra-nos os seus estados de alma (ou de coração) através de transições faciais que, mais do que virtuosas, nos comovem. da alegria simples ao desalento mais profundo, em grandes planos que nos interpelam. lágrimas que caem porque só as lágrimas podem falar, quando o resto se cala;

b) as ruínas. o protagonista aproveita a vida para ir fotografando elementos para as suas aulas e para a sua nunca acabada tese. que fotografa ele ? ruínas (logo a abrir), um templo antigo (a fechar). enquanto fotografa ruínas que outros homens deixaram (e outro tempo), faz da sua vida uma outra espécie de ruína. para que outros homens - nós, espectadores? - a possamos ver. é uma espécie de jogo de espelhos, e nós somos, então, uma espécie de espectadores futuros daquela ruína, enquanto vivemos e, porventura, construímos as ruínas que outros hão-de, por sua vez, observar;

c) o absurdo. quase no final do segmento inicial, já em silêncio, e depois das 'palavras que matam' terem sido pronunciadas, os dois voltam da praia ao hotel à beira-mar, numa lambreta. no meio do silêncio e dos ziguezagues, ela poê-lhe as suas mãos a tapar os olhos dele, precipitando-os numa queda. o sentido de que amor e morte são irmãos-siameses ocorre-nos, tal como nos ocorre que a morte do amor só pode ser interrompida pela morte (metafórica) dos amantes. o absurdo ainda, numa cena fantástica passada já no segmento final: ela procura-o, de madrugada, num hotelzeco onde ele está hospedado. sem grandes palavras, deita-se na sua cama. passamos para o que percebemos ser já manhã, ele sentado numa mesinha de ocasião, olhando o céu glauco lá fora. ela acorda, levanta-se. trocam palavras de circunstância (como se fosse possível haver palavras de circunstância, naquela circunstância..). ela conta um sonho, em que voava, em que pairava sobre um cemitério, de onde a mãe lhe acenava ('afinal está viva' - o amor?). vê-se, e ela diz-lhe explicitamente, que o sonho a fez sorrir. ele escuta-a e responde simplesmente: 'a que horas tens que começar a trabalhar? é melhor irmos andando. vou pagar-te um belo pequeno-almoço e depois vou para o aeroporto. que te parece?'). o rosto dela passa de uma alegria quase infantil para as trevas mais negras. parece-nos que vêmos uma lágrima. ela diz 'está bem' (e queria dizer: 'vai-te embora, mantém os teus planos sem mim, aceita o que te disse ontem (passado), quando recusei a tua re-aproximação e ignora os sonhos e o meu-teu sonho (presente) - isso, sê literal..'). sabemos que há um fosso de gelo entre o dito e o não-dito; há uma pulsão de morte que faz o seu caminho, como se existisse nela e nele uma formidável e imparável máquina de guerra.

não vamos falar muito da elegância visual do filme. da justeza de todos os seus planos. no facto de pressentirmos que há aqui quem queira dizer, quem saiba o que dizer e como o dizer exactamente. chama-se a isto cinema a sério, dizem-nos.

vamos só lembrar esse plano final - assombroso plano final - e citar de memória as palavras do crítico do jornal 'público' que, rendido como nós, escreveu: 'um avião cruza o céu cortando a neve. lá em cima, ele; cá em baixo, olhando para cima, ela. cai a neve, que se mistura no rosto dela com as lágrimas que restam. um homem e uma mulher apagam-se - dissolvem-se - e fica só a neve'.

ou do amor-kamikaze.

1 Comments:

Blogger Sofia Viseu said...

já vinha de lá com curiosidade em ver o filme; agora ainda tenho mais (:

terça-feira, abril 17, 2007 4:47:00 da tarde  

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