01 fevereiro 2007

estória com sotaque

o homem, recentemente indultado (natal tropical é assim) pelo presidente daquela república - indultado e brasileiro -, não chegou a gozar um dia inteiro sua recém-devolvida liberdade.
no mesmo dia em que a prisão o largou, foi apanhado pela polícia - por denúncia anónima (e de voz sumida), alguém comunicou um pequeno roubo de igreja.
confrontado com a evidência material - material e de bom corte - do seu gesto, o moço alegou em sua defesa: ' a vítima não apresentou queixa (e posso provar!). além disso, que tempos são estes em que um homem não pode mais fazer um esforço extra para melhor se apresentar junto da sua amada ? onde pára o cavalheirismo ?; para onde foram todas essas maneiras gentis qu'a gente aprendeu olhando o cine clássico no telão de domingo à tarde ?'.
'raio de profissão rolou pr'a mim!' - ruminou o polícia que o algemou (algemando-se a si próprio, de certa maneira). 'roubar fato a defunto dá boa chapa na capa de jornal, é certo. mas prender o cara é golpe baixo - afinal, a vítima não se queixou; o aparente-e-reincidente criminoso foi antes vítima do seu amor e da sua esforçada pose.. mas que sentido faz tudo isto ?'.
'jorge - porque foi você fazer besteira, logo agora, logo agora??!??!!?' - soluçava a mulher de traços tristes, sentada numa cadeirinha na sala de visitas da penitenciária estadual, dias depois.
'sereia, não esquenta, não! o próximo natal vem logo aí. e você havia de ver o bonito que eu 'tava. para você, sereia! que homem qu'é homem arruma-se pr'a sua mulher, como se todos os dias fossem domingo. e, pr'a falar verdade, ia jurar que o cara lá me piscou o olho do caixão, me dizendo: 'oh rapaz, você aí, tranquilo, que não vou mesmo precisar do paletó! e assim sempre deixo mais um bocadinho de mim pertinho de uma mulher bonita. um pequeno consolo para minha longa viagem. um dia você vai entender, moço, quer apostar?'.
o objecto do roubo já não foi devolvido ao seu legítimo mas inconsequente proprietário - voltar a vesti-lo era agora uma improbabilidade. remetido para a quermesse social da polícia, foi arrematado por um sujeito que mordia palavras baixinho: 'raio de profissão esta, que rolou pr'a mim..'.